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Opinião

50 anos da chegada de frei Tito de Alencar ao Convento Sainte-Marie de la Tourette

50 anos da chegada de frei Tito de Alencar ao Convento Sainte-Marie de la Tourette

Artigo por RED
28/02/2023 05:35 • Atualizado em 01/03/2023 18:12
50 anos da chegada de frei Tito de Alencar ao Convento Sainte-Marie de la Tourette

De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris

Um homem torturado em seu último porto

No Brasil, durante o regime dos generais (1964-1985), a tortura era negada por todos os representantes do Estado, civis e militares, mas fazia parte do arsenal da ditadura e era o método privilegiado nas sessões de interrogatórios dos militantes de esquerda, inclusive dos padres e frades das ordens católicas, considerados “subversivos” pelo regime.

Depois de ter passado quatorze meses na prisão em São Paulo, sido torturado durantes semanas e ter sido salvo in extremis de uma tentativa de suicídio, Tito de Alencar chegou a Paris em 1971.

Foi em janeiro de 1971 que seu nome fora colocado na lista de 70 prisioneiros políticos que deveriam ser libertados em troca do embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher, sequestrado (ou capturado, como preferem alguns) em dezembro de 1970 por grupos revolucionários. Tito embarcou com os 69 prisioneiros políticos para Santiago, banidos do território nacional por decreto. Ele estava triste e abatido.

Muitos brasileiros se perguntam hoje como depois de uma longa e cruel ditadura – que gerou tanto sofrimento, mortos, desaparecidos e milhares de exilados – o Brasil pôde eleger Jair Bolsonaro, em 2018, um ex-militar saudoso
daquela ditadura e cujo herói é um dos torturadores mais conhecidos daquele período. Em seu governo que terminou de forma inglória em 31 de dezembro de 2022 – não passou a faixa presidencial ao sucessor e fugiu alguns dias antes do fim do mandato – havia mais generais que no governo Castelo Branco, o primeiro ditador da lista de generais que governaram o Brasil a partir de 1964.

A resposta a esta pergunta. – como o Brasil pôde eleger um saudoso do regime militar e de seus torturadores – é, sem dúvida, o fato de não termos feito um trabalho de memória sobre a ditadura, de não termos julgado os responsáveis pela tortura, como fizeram nossos vizinhos, Argentina e Chile. Ao contrário, em 1979, o Congresso brasileiro votou a Lei de Anistia que garantia impunidade a todos os militares e agentes do Estado responsáveis por crimes contra a humanidade como a tortura e desaparecimentos de opositores à ditadura.

Os condenados da terra

No prefácio de meu livro A tortura como arma de guerra – da Argélia ao Brasil (Editora Civilização Brasileira, 2016), Vladimir Safatle cita uma socióloga americana Kathryn Sikkink. Segundo ela, no Brasil de hoje tortura-se mais que durante a ditadura. Mas as vítimas da tortura não são mais os estudantes, os comunistas, os socialistas, os intelectuais. As vítimas da tortura hoje são os negros, os pobres moradores de favelas, que são presos e sofrem durante anos a prisão sem processo, privados de justiça. São os « malditos da terra », os condenados por uma das sociedades mais injustas do planeta, resultado do colonialismo brutal que dominou o país durante séculos desde 1500.

O amigo mais próximo de Tito de Alencar em seu último ano vivido no Convento da Tourette (1974), o frei Xavier Plassat, desenvolve, desde 1989, um trabalho pastoral no Estado de Tocantis e coordena a campanha da Comissão Pastoral da Terra contra o trabalho escravo. No seu belo texto de apresentação da nossa biografia de Tito de Alencar, Um homem torturado – Nos passos de frei Tito de Alencar¹ Plassat escreveu :

“É necessário ouvir, restaurar e honrar com justiça as vozes abafadas e os sonhos desses resistantes e combatentes. Sem uma constante elucidação da verdade – em particular sobre as trevas mais trágicas de nossa história – se tornam incompreensíveis e insuperáveis as manifestações recorrentes de violência e barbárie que continuam a marcar nosso tempo, nas prisões, nas delegacias, nas favelas ou nos latifúndios : o assassinato de jovens, de posseiros, de negros, de indígenas, de migrantes, de travestis, de prostitutas ; o tráfico de pessoas, a escravidão a que elas são submetidas ; o confisco da esperança, a negação do bem viver”.

Vladimir Safatle nos estimula a testemunhar e a contar a História:

“Nesse contexto de invisibilidade e de esquecimento forçado, o uso da memória é um ato político maior pois impede que o tempo possa extorquir reconciliações puramente formais”, escreve o filósofo.

O amigo brasileiro mais próximo de Tito no Convento Saint-Jacques, em Paris, Magno Vilela, que deixou a ordem para se casar e vive hoje em São Paulo onde é professor de História, disse a Clarisse Meireles e a mim em seu depoimento para o livro :

“Antes do engajamento com Marighella, pensávamos que nossa generosidade e a força do Evangelho eram suficientes para transformer a realidade. Percebemos que os militares e os outros atores da ditadura também se
diziam próximos do Evangelho”.

Hoje, muitos dos que pertencem à extrema-direita no Brasil que destilam um discurso de ódio e de destruição do adversário político, visto como um inimigo a destruir, falam também do Evangelho.

Temos certeza de que não se trata do mesmo Evangelho da Libertação que entusiasmava os frades dominicanos próximos de Marighella. Grande número deles pagou este engajamento com tortura e exílio.

Alguns, como Tito de Alencar, pagaram com suas vidas.

É preciso não esquecer que o ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro disse que o erro dos militares brasileiros foi de não terem matado 30 mil “subversivos” como o regime de Pinochet.

O memoricídio (assassinato da memória) e a amnésia permitiram o apagamento da história do terrorismo de Estado instalado no Brasil de 1964 a 1985.

Esse memoricídio e essa amnésia foram construídos com determinação pela direita e pelos militares. E a Lei de Anistia – que nenhum presidente civil pôde revogar desde 1985 – garantiu a impunidade dos torturadores.

E, finalmente, foi a cumplicidade da mídia que neutralizou o fabuloso trabalho da Comissão Nacional da Verdade, cujo relatório foi entregue à presidente Dilma Rousseff dia 10 de dezembro de 2014.

Termino com as palavras de Tito de Alencar no fim de seu testemunho, no qual ele conta os atos de tortura de que foi vítima e que recebeu um prêmio nos Estados Unidos em 1970 :

“É preciso dizer que o que me aconteceu não foi uma exceção mas a regra. Raros prisioneiros políticos brasileiros não sofreram torturas indescritíveis. Muitos, como Chael Schreider e Virgílio Gomes da Silva, foram mortos sob tortura. Outros ficaram surdos, estéreis, ou guardaram outras sequelas físicas. A esperança desses prisioneiros políticos repousa na Igreja, a única instituição brasileira que não está sob contrele do Estado militar. Sua missão é de preservar e de promover a dignidade do homem. Onde quer que um homem sofra, é o Mestre que sofre. É tempo para os bispos de dizer BASTA à tortura e à iniquidade do regime antes que seja tarde demais.

A Igreja não pode calar-se. Nós carregamos as provas da tortura no nosso corpo. Se a Igreja não se voltar contra esta situação, quem pode fazê-lo ? Ou seria necessário que eu morra para que uma atitude forte seja tomada ? Neste momento, o silêncio é uma omissão. Se a palavra é um risco, ela é mais ainda um testemunho. A Igreja existe como sinal e sacramento da justiça de Deus no mundo.

Porque não queremos que ignoreis, irmãos, a tribulação que vivemos. Fomos esmagados para além de nossas forças, a tal ponto que desesperamos até mesmo de conservar a vida. De fato, pesava sobre nós ameaça de morte, afim de aprender a não depositar nossa confiança em nós mesmos mas em Deus que ressuscita os mortos. (2 Epístola aos Coríntios 1,8 e 9).

Faço este apelo e esta denúncia para evitar amanhã a notícia de outra morte sob tortura.

Assinado : Frei Tito de Alencar Lima, op, fevereiro de 1970.


*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.

¹Um homem torturado – Nos passos de frei Tito de Alencar (Leneide Duarte-Plon e Clarisse Meireles, Editora Civilização Brasileira, 2014).

Imagens cedidas pela autora do artigo.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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