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Opinião

2024 : 60 anos do golpe e 50 anos da morte de frei Tito

2024 : 60 anos do golpe e 50 anos da morte de frei Tito

Artigo por RED
07/04/2024 05:30 • Atualizado em 09/04/2024 21:36
2024 : 60 anos do golpe e 50 anos da morte de frei Tito

De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris

Este ano, o Brasil está relembrando com reportagens, filmes, livros, conferências e celebrações oficiais os 60 anos do golpe militar de 1° de abril, que inaugurou uma ditadura sanguinária de 21 anos.

O dia 10 de agosto marcará meio século da morte do frade dominicano Tito de Alencar Lima que, preso, torturado e destruído psiquicamente nas salas de tortura, se enforcou na França, no verão europeu de 1974. O dever de memória nos leva a contar sua vida e seu engajamento com os dominicanos de São Paulo, aliados da Ação Libertadora Nacional, ALN, grupo de resistência criado por Carlos Marighella.

No prefácio do livro Um homem torturado – Nos passos de frei Tito de Alencar, de minha autoria e de Clarisse Meireles, lançado em 2014 pela editora Civilização Brasileira, o filósofo Vladimir Safatle escreveu : “Ao narrar a história de frei Tito a partir de um estudo exaustivo, Leneide e Clarisse fazem, no entanto, mais do que a reconstrução de processos históricos. Em certo momento, elas lembram desta afirmação feita por um torturador a Tito: ‘Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis'”.

“Na verdade, continua Safatle, tal frase sintetizava de maneira precisa a natureza da violência e da máquina criminosa produzida pela ditadura brasileira. Fazer as coisas sem deixar marcas visíveis, ou seja, tirar as marcas da violência da visibilidade pública, apagá-la e, com ela, apagar as histórias que tal violência destruiu. A ditadura brasileira foi, até agora, bem-sucedida nessa sua empreitada e graças a tal sucesso ela conseguiu, de certa forma, nunca ter terminado. Neste contexto de invisibilidade e esquecimento forçado, o uso da memória é um ato político maior, pois impede que o tempo possa extorquir reconciliações meramente formais”.

Preso com outros dominicanos em novembro de 1969, Tito escreveu, em fevereiro de 1970, o relato de sessões de tortura, dirigidas pelo capitão Albernaz e, anteriormente, pelo delegado Sérgio Fleury. O texto saiu clandestinamente da prisão de São Paulo e foi publicado na revista americana Look e na italiana L’Europeo. Por este texto, a Look recebeu o prêmio de reportagem do ano de 1970, atribuído pelo New York Overseas Press Club, associação da imprensa estrangeira de Nova York.

Segundo Jean-Claude Rolland, o jovem psiquiatra que, em Lyon, com grande lucidez acompanhou Tito no auge do seu tormento, entre 1973 e 1974, “a barbárie que leva certos homens à prática da tortura contamina automaticamente todos os seus contemporâneos. Ela faz de cada um de nós cúmplices virtuais. Há, no fundo de nós mesmos, muito recalcada, uma capacidade de destruir o outro e o torturador apenas ativa essa capacidade de destruição”.

Nos meses que passou no convento Sainte-Marie de la Tourette, perto de Lyon, depois de fracassar na tentativa de se inserir nos estudos na universidade e no Couvent Saint-Jacques, em Paris, Tito conviveu de perto com o jovem dominicano Xavier Plassat que conta no livro Um homem torturado: “O Fleury raramente o deixaria quieto e, nestes meses que compartilhamos, Tito alternaria constantemente entre o entregar-se e o resistir. Era como se estivesse acuado entre as paredes desse novo ‘corredor polonês’: morrer vivendo, viver morrendo. Cumpria-se a louca promessa que recebera durante as sessões reais de tortura”.

Segundo palavras do próprio Tito, registradas pelos companheiros de cela : “Quiseram me deixar dependurado toda a noite no pau de arara. Mas o capitão Albernaz objetou: ‘Não é preciso, vamos ficar com ele mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia’”.

Depois de passar pelo inferno da segunda série de torturas no início de 1970, frei Tito tentou se matar cortando as veias. Foi salvo in extremis, depois de internado no hospital militar de Cambuci. O ex-frei Roberto Romano conta no livro Um homem torturado:

“O arcebispo Agnelo Rossi telefonou às autoridades, governador e comandante militar, e autorizaram uma visita a Tito no hospital. O arcebispo indicou dom Lucas Moreira Neves, que fora dominicano antes de ser sagrado bispo. Ele foi lá e viu Tito torturado, à beira da morte. Mais tarde, quando o advogado dos dominicanos, Mário Simas, pediu que dom Lucas dissesse na 2a Auditoria Militar de São Paulo que tinha visto Tito torturado, dom Lucas negou-se dizendo que tal testemunho prejudicaria sua atividade pastoral”.

Roberto Romano acrescentou : “Como disse um autor do século XIX: ‘A Igreja é de fato divina,  caso contrário, os homens já teriam acabado com ela’”.

Sequestro e liberdade

Colocado na lista dos 70 prisioneiros politicos a serem trocados pelo embaixador suiço Giovanni Enrico Bücher, Tito aceitou deixar o país a contragosto. Sabia que os que eram libertados através de sequestros tinham de assinar um documento que os bania do território nacional. Na foto dos setenta diante do avião que os levaria a Santiago, em pleno governo Allende, Tito está triste e abatido, em contraste com a euforia da maioria dos companheiros.

Em Santiago, ele deu um depoimento para dois cineastas americanos Saul Landau e Haskel Wexler para o documentário Brazil: a report on torture (Brasil : um relato sobre a tortura). Ele conta das torturas e de sua tentativa de suicídio cortando as veias “para denunciar assim que o Brasil não é mais somente o país do samba, do futebol e de Pelé mas é também um grande campeão da tortura”.

Ao receber Tito na emergência psiquiátrica do hospital de Lyon pela primeira vez, o psiquiatra Jean-Claude Rolland descobria o psiquismo destruído de uma vítima de tortura. Começava ali o acompanhamento de um sofrimento atroz do que ele chama de « sintomas-testemunho ». Nem a faculdade de medicina nem sua prática de psiquiatra o tinham preparado para casos como o de Tito.

Depois de passar quase um ano em consultas no hospital com o Dr. Rolland, atormentado pelas alucinações nas quais revia Fleury ameaçando seus pais e suas irmãs de tortura, Tito tenta se suicidar com uma dose de remédios. Mais uma vez é internado e salvo.

A loucura está no torturador

No mês de agosto de 1974, um camponês viu um corpo pendurado numa árvore. Terminava ali o suplício e as torturas de Tito, revividas em seu sono e em seus momentos de alucinações, nos quais revivia as ameaças e as torturas dos porões da ditadura.

O Dr. Rolland nos disse nas diversas entrevistas que fizemos com ele : “Hoje, penso que a loucura está no torturador. É preciso ver a tortura como uma loucura. Alguns militares que torturaram na Argélia ficaram loucos. Só se pode fazer isso exercendo uma distorção mental muito grande. Albernaz, um dos torturadores de Tito, lhe disse: ‘Quando venho para a Operação Bandeirantes, deixo meu coração em casa’. Isso mostra que são seres divididos, como se houvesse uma cisão”, avalia o médico.

Na pedra tombal de frei Tito, no cemitério do Convento Sainte-Marie de la Tourette, onde seu corpo descansou por nove anos, está escrito em francês e em português :

“Frei Tito de Alencar Lima, O.P. 1945-1974- Frei da Província do Brasil, encarcerado, torturado, banido do país, atormentado até a morte por ter proclamado o Evangelho lutando pela libertação de seus irmãos. Tito descansou nesta terra estrangeira. No dia 25 de março de 1983 ele foi trasladado para sua terra de Fortaleza onde descansa com seu povo”. “Digo-vos que se os discípulos se calarem, as próprias pedras clamarão” (Lucas, 19 : 40).

Em março de 1983, depois de uma missa de corpo presente na catedral de Lyon, co-dirigida pelo bispo brasileiro Dom Tomás Balduíno, Frei Tito voltou à sua terra de Fortaleza.

Seu antigo colega do convento Sainte-Marie de la Tourette, Xavier Plassat, se instalou no Brasil onde mora até hoje e coordena o Programa da Pastoral da Terra contra o trabalho escravo.


*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.

Artigo publicado em Carta Capital.

Fotos do acervo da autora.

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