?>

Opinião

Antissemitismo: realidade ou “intolerável chantagem”?

Antissemitismo: realidade ou “intolerável chantagem”?

Artigo por RED
07/11/2023 05:30 • Atualizado em 09/11/2023 09:01
Antissemitismo: realidade ou “intolerável chantagem”?

De LENEIDE DUARTE-PLON*, de Paris

Para o escritor e jornalista israelense Michel Warschawski, os países que declararam total apoio a Israel são “cúmplices de um crime contra a humanidade” diante do mundo.

“Quando o primeiro-ministro Ariel Sharon veio à França, disse-lhe que ele devia criar imediatamente um Ministério da Propaganda, como Goebbels”.

A frase é do presidente do poderoso lobby pró-Israel, CRIF (Conselho Representativo das Instituições Judaicas da França), Roger Cukierman, em entrevista ao jornal Ha’aretz, em setembro de 2001.

Os nazistas, citados como exemplo na boca de um defensor incondicional de Israel, é de arrepiar e revela o modelo que a extrema-direita israelense elegeu. No lugar do ariano puro, o supremacista judeu e sua ideologia racista, que justifica o apartheid em Israel para os 20% da população israelense de origem palestina. Eles são chamados de “árabes israelenses” pelos racistas judeus, já que, como Golda Meir, negam a existência de um povo palestino.

A frase do então presidente do CRIF é relembrada no livro “Antisémitisme, l’intolérable chantage : Israël-Palestine, une affaire française?” (Editions La Découverte, Paris 2003) que traduzi para o português com o mesmo título e foi publicado em 2004, pela editora Anima.

O livro é composto de artigos de nove intelectuais de origem judaica que constatam a manipulação feita pela propaganda israelense sempre que Israel se encontra em dificuldade: na França e em alguns países do Ocidente, desencadeia-se imediatamente uma campanha de denúncia de atos antissemitas para mudar o foco do debate e colocar os judeus da diáspora em posição de vítimas e lembrar um passado de perseguições.

Etienne Balibar, Rony Brauman, Judith Butler, Silvain Cypel, Éric Hazan, Daniel Lindenberg, Denis Sieffert, Marc Saint-Upéry e Michel Warschawski são os autores dos textos que não perderam a pertinência, apesar dos governantes serem outros.

No momento atual, um historiador e analista político explica o fenômeno como um ato de desvio de atenção. Para tirar o foco do horror dos bombardeios em Gaza e das denúncias de crime contra a humanidade, os lobbies pró-Israel na França e no mundo se ativam na denúncia de atos antissemitas.

A vitimização dos judeus é importante para não falar do que se passa em Israel-Palestina: uma guerra colonial na qual os israelenses são os opressores e ocupantes e os palestinos são os oprimidos e ocupados. O jogo de massacre já dura 75 anos.

A filósofa americana Judith Butler, que se apresenta no livro como uma “judia progressista”, se manifesta violentamente contra a degradante qualificação de “antissemita” que ela vê como um « instrumento de censura » que tem por objetivo abafar a solidariedade com os palestinos e intimidar os militantes da paz.

O escritor, editor e diretor das edições La Fabrique, Éric Hazan, vê uma confusão entre antissionismo e antissemitismo e aponta nas acusações feitas por quem qualifica de antissemitismo as críticas a Israel “uma paranoia cuidadosamente trabalhada”.

O escritor israelense Michel Warschawski, ativista pacifista e antissionista, fundador do “Alternative Information Center”, defende a transformação de Israel, de Estado judeu em Estado binacional.  Warschawski escreveu no seu texto do livro: “Deixar sem resposta esses porta-vozes autoproclamados da comunidade judaica utilizarem o antissemitismo para defenderem a indefensável política do governo israelense, é deixar, por um lado, banalizarem o antissemitismo e enxovalharem suas vítimas e, por outro lado, difamarem centenas de milhares de judeus que rejeitam com horror essa manipulação”.

Crime contra a humanidade

No jornal online Mediapart, Warschawski comentou em entrevista sua visão da guerra atual e dos bombardeios de Gaza:

“Vejo no Ocidente, sobretudo na França, debates de um nível lamentável, que não estão à altura da extrema gravidade do momento. Em vez de utilizar todos os canais possíveis para impor um cessar-fogo imediato, numerosos dirigentes políticos preferem declarar fidelidade a Israel. Aos olhos do mundo inteiro eles são cúmplices de um crime contra a humanidade”.

Para ele, Israel detém a solução do problema:

“Israel deve se retirar dos territórios ocupados. E não provocar uma nova Nakba (catástrofe, em árabe, em referência à fuga ou expulsão de suas casas de cerca de 760 mil palestinos durante a primeira guerra israelo-árabe, que coincide com a criação do Estado de Israel, em 1948). Um ministro do governo israelense declarou que era preciso terminar o trabalho de 1948. Ele é daqueles que pensam que teríamos deixado palestinos demais em nosso território. Essa ideia é uma obsessão do nosso governo que pensa em criar uma ocasião para limpar Israel e fazer um Estado judaico demograficamente, isto é, um Estado composto unicamente, ou quase, de judeus”.

“Essa ideia já está no texto da lei fundamental, votada há dois anos, que fala de Israel como povo-nação, como Estado-nação do povo judeu. Isso é totalmente contrário aos compromissos do jovem Estado de Israel para ser aceito na ONU, em 1949. Trata-se agora não somente de não mais reconhecer os direitos nacionais palestinos, mas também de se livrar deles o mais rápido possível. É terrivelmente grave”, acrescenta Warschawski.

Neonazistas no poder

O médico Rony Brauman, um dos fundadores da ONG “Médecins sans Frontières”, costuma falar do conflito Israel-Palestina como de uma “guerra totalmente assimétrica”, que envolve um dos exércitos mais bem armados do mundo e um povo que fabrica armas artesanalmente. Ele considera Israel um “guetto superarmado”, como escreveu no artigo do livro “Antissemitismo, a intolerável chantagem : Israel-Palestina, um affaire francês?” citado acima.

Num documentário recente chamado “Not in my name”, alguns judeus franceses, entre eles Rony Bauman, criticavam as arbitrariedades cometidas por Israel e os riscos da colonização. O título do filme retoma o nome de um grupo de judeus americanos que desaprovam a ocupação da Cisjordânia e de Jerusalém Leste por Israel e condenam a política de apartheid do Estado judaico. Eles não admitem que “os crimes de Israel contra o povo palestino, inclusive ignorando inúmeras resoluções da ONU, sejam imputados a todos os judeus do mundo”.

Por haver no mundo judeus que defendem a causa palestina e criticam Israel, é profundamente injusto combater a política israelense e o colonialismo atacando os judeus indiscriminadamente.

Poucos meses antes do 7 de outubro, o historiador israelense Daniel Blatman, em entrevista ao jornalista René Backmann, do site francês Mediapart, dizia que Israel estava vivendo a pior crise de sua história desde a criação do Estado, em 1948.

Depois do incêndio por colonos israelenses, em 26 de fevereiro, da cidade palestina de Huwara, na Cisjordânica ocupada – como represália à morte de dois colonos e depois de vários enfrentamentos e atentados anteriores entre israelenses e palestinos – Blatman, especialista do nazismo e do genocídio dos judeus, ousou fazer a comparação: os projetos políticos do primeiro-ministro Benjamin Netanyahou lembram o fim da República de Weimar, com a chegada de Hitler ao poder.

“Se homens como Bezalel Smotrich (ministro das Finanças) ou Yariv Levi, (ministro da Justiça) dirigissem grupos políticos hoje na França, na Alemanha ou em qualquer democracia ocidental, seriam considerados neonazistas. Eles não são de extrema-direita, estão muito além. Digo e insisto : são neonazistas”, completa o historiador do nazismo. Esses extremistas chamam  de “inimigo interno” os palestinos que têm nacionalidade israelense .

Para ele, a decisão de Macron de receber Nétanyahou em Paris, em fevereiro deste ano, foi “particularmente estúpida”.

“Foi o único chefe de Estado do Ocidente que recebeu o primeiro-ministro israelense depois da volta deste ao poder”.

Nem mesmo Biden havia recebido Nétanyahou em Washington, depois que ele voltou ao poder em dezembro de 2022, formando um governo de extrema-direita.

O presidente americano queria esquecer o problema palestino e preferia apostar nos famosos “acordos de Abraão”, herdados da administração Trump, que negociaram a normalização das relações de Israel com alguns países árabes.

A panela de pressão de Gaza explodiu sem que nem americanos nem israelenses esperassem.

E o mundo voltou a se interessar pela tragédia palestina que já dura 75 anos.

Gaza e a Palestina passaram a ser o centro do noticiário mundial. Esperemos que a solução do calvário palestino seja o que a ONU decidiu em 1947 com o Plano de Partilha da Palestina: um Estado Palestino, formado pela Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Leste – vivendo lado a lado com o Estado de Israel.


*Jornalista internacional. Co-autora, com Clarisse Meireles, de Um homem torturado – nos passos de frei Tito de Alencar (Editora Civilização Brasileira, 2014). Em 2016, pela mesma editora, lançou A tortura como arma de guerra – Da Argélia ao Brasil: Como os militares franceses exportaram os esquadrões da morte e o terrorismo de Estado. Ambos foram finalistas do Prêmio Jabuti. O segundo foi também finalista do Prêmio Biblioteca Nacional.

Imagem em Pixabay.

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

Toque novamente para sair.