Politica
O crescimento do Centrão e os Desafios da Esquerda hoje
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Em entrevista concedida para o Podcast Mesa de Debates, depois do primeiro turno das eleições municipais deste ano, o cientista político Benedito Tadeu César, especialista em partidos políticos e comportamento eleitoral, analisa o cenário político e vê as esquerdas frente a desafios que precisam urgentemente serem enfrentados. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista, cujo texto foi revisado e atualizado pelo autor após os resultados do segundo turno.
Mesa de Debates
Iniciaremos com uma pergunta: muitos estão comentando que quem se saiu fortalecido nas eleições foi o Centrão, que representa a direita e a extrema-direita. Como você analisa esse resultado e o fortalecimento dessas forças?
Benedito Tadeu César
Bem, eu não tenho dúvida de que os grandes vitoriosos foram os partidos que compõem o Centrão — prefiro chamá-los de Partidos de Negócios, que geralmente tendem à direita. Juntamente com a extrema-direita, eles controlam uma parte considerável das verbas do Orçamento Público da União que não são de vinculação obrigatória. A Constituição estipula várias áreas que devem receber verbas obrigatoriamente: saúde, educação e assim por diante. Cerca de 45% do que sobra está sob o controle do Centrão, que detém cerca de 70% do Congresso.
Isso os fortaleceu de maneira extraordinária nas últimas eleições, uma vez que conseguem transferir recursos do chamado Orçamento Secreto, que, embora tenha melhorado recentemente, continua existindo, além das Emendas Pix, que não exigem prestação de contas. Isso gera uma fonte quase inesgotável de recursos que são direcionados para municípios com base nos interesses dos deputados e senadores, mas especialmente dos deputados. Portanto, era razoavelmente previsível que obtivessem um resultado sólido nas urnas.
Entendo que não avançaram tanto quanto poderiam, mas ainda assim continuam em crescimento. Se analisarmos desde as eleições de 2020 até agora, até mesmo desde 2016, vemos que eles têm avançado de forma consistente. Eles já controlavam mais de 70% das Prefeituras e agora ampliaram seu domínio também nas Câmaras Municipais, hegemonizando cerca de 5000 das 5570 existentes no Brasil. Isso representa um capital eleitoral significativo.
Os vereadores funcionam como os grandes cabos eleitorais dos prefeitos e deputados e, com os prefeitos, também são essenciais para eleger governadores, senadores e até o presidente da República. Estão acumulando, portanto, um poder político considerável.
Contrapõe-se a isso o fato de a esquerda ter experimentado um pequeno crescimento, em comparação com pleitos anteriores, mas foi um crescimento bastante modesto. É importante lembrar que neste momento a esquerda detém a presidência da República. O Lula ocupa a Presidência, mas não podemos considerar que temos um governo de esquerda. É um governo de coalizão e, com a atual composição do Parlamento, é inviável que o governo federal possa implementar uma agenda de esquerda.
A Esquerda Também Tem Responsdabilidade Nos Resultados Das Eleições
Vejo muitas pessoas reclamando das pesquisas eleitorais, da mídia e das questões financeiras, com as verbas nas mãos do Centrão e da extrema direita. Contudo, há aspectos que são, sim, responsabilidade da própria esquerda, que ainda não conseguiu desenvolver uma comunicação social eficaz. Esperávamos que a vitória do Lula gerasse algum instrumento para potencializar os milhares de canais alternativos que existem de forma autônoma, mas isso nunca aconteceu. No governo, não há um esforço direcionado para fortalecer essa comunicação, e as realizações do governo federal são, em grande parte, mal divulgadas.
Não adianta somente culpar a mídia tradicional. Cada um tem sua postura. Ou a esquerda cria os seus próprios instrumentos e atua com competência, ou não adianta lamentar os insucessos. É a velha máxima que se relaciona ao futebol: “Já combinou com os russos?” Cada grupo está jogando seu próprio jogo. Reclamar que os outros estão se saindo bem não resolve. Temos que trabalhar para vencer.
No entanto, percebo que estamos falhando em vários aspectos, incluindo na escolha de candidatos e na relação com os eleitores. Temos atualmente o menor índice de desemprego desde que esse dado começou a ser medido com a atual metodologia, mas a maior parte da população desconhece essa informação. As pessoas que estão empregadas tendem a achar que tudo é um resultado exclusivo de seus próprios esforços, sem levar em conta a atuação do governo federal. Não se trata apenas de se ter uma política econômica com bons resultados e uma boa comunicação social. É imprescindível que a esquerda saiba se relacionar com as camadas populares.
Estamos priorizando pautas extremamente relevantes, mas que não tocam diretamente o coração do eleitor -- e tem muita gente falando isso nestas últimas semanas. O eleitor, muitas vezes, vota movido pela emoção e não pela razão. Quando focamos em pautas comportamentais e de identidade, que são importantes, mas que não são no momento as mais importantes para as pessoas, corremos o risco de abrir espaço para o conservadorismo. As igrejas de denominações evangélicas pentecostais, que defendem uma posição conservadora em relação às pautas comportamentais, estão mais presentes nas comunidades e os pastores promovem a Teologia da Prosperidade. Apontam que, se a pessoa se esforçar, conseguirá alcançar seus objetivos e que isso depende exclusivamente dela e, claro, de suas contribuições para a igreja. Políticas públicas como as cotas para as universidades e para o serviço público e o Bolsa Família, muitas vezes, são apresentadas como negativas.
Muitas pessoas, inclusive entre os próprios trabalhadores, veem esses benefícios e incentivos sociais como “prêmios à vagabundagem”. Para muitos, o sentimento é de que “estão tirando de mim para dar para vagabundo”. Não há um trabalho efetivo da esquerda para esclarecer a importância dessas políticas. Não dá para esperar chegar na semana das eleições e achar que se conseguirá reverter anos de discursos conservadores. A esquerda se afastou das comunidades, abrindo um espaço muito grande.
A insatisfação popular com suas condições de vida e com o Estado, visto como quem atrapalha mais do que ajuda, é palpável. Primeiro, foi o Bolsonaro ocupando esse espaço e agora surgem alternativas que parecem ainda mais preocupantes. O Ramagem, por exemplo, no Rio de Janeiro, fez mais de 30% dos votos, mesmo que se considere que houve uma derrota flagrante de Bolsonaro na cidade que é o seu berço político, na medida em que Paes ganhou no primeiro turno. Ramagem se apresentou como um idiota: “agora é a vez dos idiotas”, disse ele. O Pablo Marçal, em São Paulo, não se apresentou como idiota, mas fez conscientemente o papel de idiota e quase passou para o segundo turno e os votos dele migraram depois para o candidato da “centro direita”. O Boulos é um enorme quadro político, mas não é um candidato capaz de conquistar os votos do eleitorado de centro para poder vencer uma eleição em São Paulo.
A esquerda parece ter se empolgado demais com os resultados favoráveis em cargos proporcionais, que, por sua vez, favorecem candidaturas de nicho com pautas identitárias. Acreditam que esse tipo de discurso funcionará em eleições majoritárias, o que é um equívoco crasso. Nas eleições proporcionais, a dinâmica favorece grupos organizados, como negros e mulheres, que conseguem eleger seus representantes. Já nas majoritárias, a lógica é diferente: você precisa da confiança de todos os segmentos para ganhar as eleições e para governar, inclusive segmentos de centro que são mais conservadores em relação às pautas comportamentais.
Em Porto Alegre, por exemplo, nós tivemos a Maria do Rosário como candidata e o candidato da centro direita, que é o Prefeito Sebastião Melo, sabidamente responsável pelas trágicas consequências das enchentes do meio do ano por não dar manutenção ao equipamento antienchente existente na cidade, não venceu a eleição no primeiro turno por meros 3 décimos percentuais (que, aliás, foram conseguidos por outro candidato de direita), deixou de ganhar a eleição no primeiro turno e venceu com mais de 60% dos votos válidos no segundo turno. Em Porto Alegre, aliás, a soma das abstenções e dos votos brancos e nulos foi superior aos votos obtidos pelo vencedor do pleito, o que demonstra a falta de opção sentida pelo eleitorado.
A Maria do Rosário é um excelente quadro político, mas para eleições proporcionais. Não é para se candidatar para governar a maioria da população. A acusam de proteger bandidos, porque ela defende os direitos humanos, de ser “gayzista”, porque ela defende o direito dos homossexuais e das pessoas transsexuais. São colados estigmas nas pessoas e você não os desfaz numa campanha eleitoral.
A Sociedade Brasileira Não É Mais A Mesma Do Tempo Em Que O PT Nasceu
A realidade é que a esquerda hoje não apresenta propostas que ressoem entre a população. O contexto mudou. O surgimento do PT decorreu de uma transformação social que também se alterou ao longo do tempo. O desenvolvimento econômico ocorrido durante o período nacional-desenvolvimentista e depois durante parte da ditadura de 1964/1985 possibilitou o surgimento de um operariado especializado, com um grau de instrução mais alto e com uma remuneração mais alta do que o do período anterior. Hoje, o trabalhador com carteira assinada está se tornando cada vez mais uma minoria, e muitos dos que antes ascenderam socialmente acabaram adotando posições individualistas, influenciados pelo neoliberalismo. Por exemplo, que propostas a esquerda tem que seja aceita pela maior parte dos trabalhadores de aplicativo? Praticamente nenhuma.
Enquanto isso, os pastores estão nas periferias, fazendo um trabalho que, embora possa ser questionado em muitos aspectos, estabelece um contato com o povo que a esquerda parece ter perdido. Falam aos trabalhadores por conta própria da maneira como eles se identificam, já que eles não se reconhecem como trabalhadores, mas sim como “empreendedores”. Enquanto isso, as esquerdas chamam esse novo tipo social de “trabalhador precarizado”; esse termo soa ofensivo – ninguém gosta de ser um “precarizado”. A realidade social mudou e a esquerda precisa ter uma comunicação que faça sentido para essas pessoas.
Os partidos de esquerda se tornaram oligarquizados, como quaisquer outros. Os parlamentares assumiram o controle das máquinas partidárias e a dificuldade para renovar os partidos é uma preocupação. Por que é tão complicado fazer alianças? O Lula conseguiu, com toda a complexidade das forças políticas do país, mas nas Prefeituras as alianças não têm se concretizado. Acredito que isso se deva a interesses pessoais que interferem no processo, e não me refiro a casos individuais, mas a um padrão observado na esquerda como um todo.
Os partidos não se renovam, o discurso não se renova, eles se afastaram da população, estão atuando no nível institucional apenas. No início, o PT atuava nas comunidades e secundarizava muito a ação nas instituições; hoje inverteu-se a posição, conquistou importantes espaços institucionais e afastou-se muito das comunidades. Enquanto isso, a direita, pela via dos pastores e dos vereadores estão na periferia explorando as frustrações das pessoas. Estão dizendo que ninguém lhes dá nada, que o Estado, quando interfere, é apenas para os prejudicar; que o Estado presta maus serviços, mas cobra impostos e não traz nada além de corrupção. Contra isso, dizem, a pessoa tem que se esforçar, porque o sucesso depende exclusivamente do teu esforço individual e que a culpa pelo insucesso é dos que não se esforçam.
De outro lado, a esquerda defende os direitos humanos, enquanto essas pessoas estão sendo assaltadas na parada do ônibus ou têm o seu carro, moto ou bicicleta, usados para o trabalho com os aplicativos, roubados. A esquerda defende o direito do casamento homossexual e as pessoas sentem que estão destruindo a família que, ao lado da igreja, é o único lugar que elas têm como referência e como possibilidade de segurança. Não estou dizendo que essas pautas são erradas, mas observando que essas pautas desestabilizam a moral tradicional reforçada pelas igrejas nas comunidades. A esquerda perdeu o pé, companheiro. E, então, ela está pagando o preço.
Radicalizar O Discurso É A Solução?
Alguns insistem em que a esquerda tem que radicalizar o seu discurso, que não deve fazer alianças e que deve afirmar as suas pautas. Mas quais são essas pautas? As identitárias, as desses direitos que as pessoas não entendem o que sejam? Se a esquerda não chegar na população e não entender as demandas da população, não adianta querer “radicalizar”. Não adianta ir com os nossos candidatos que defendem bandeiras distantes da população e querer ganhar eleições. Parece-me que a esquerda brasileira está virando a liberal democracia estadunidense. Ela está importando as pautas norte-americanas, que são importantes, mas que não são as que a população brasileira entende como fundamentais. Há outras questões mais emergentes, mais urgentes, que precisam ser enfrentadas, mas a esquerda se descolou delas.
Se a esquerda não der um freio de arrumação, a perspectiva para daqui a dois anos será trágica. As direitas e a extrema direita estão com tudo nas mãos para ganhar a eleição. Nós somente conseguimos ganhar a eleição para a Presidência da República porque contávamos com Lula como candidato. Qualquer outro nome que tivesse concorrido teria sido derrotado. A diferença foi de apenas um ponto percentual. Portanto, é razoável concluir que, se outro candidato tivesse sido escolhido, a eleição teria sido perdida.
A vitória no segundo turno se deu em razão de uma aliança ampla. Tínhamos Alckmin, um político de centro-direita, na vice-presidência, e hoje contamos com Tebet no Ministério. Não entrarei nos detalhes da composição ministerial atual, mas é importante frisar que a participação de Tebet no segundo turno foi fundamental para nossa vitória.
Quem foram os vitoriosos do campo da esquerda no primeiro turno das eleições municipais? Aqueles que promoveram alianças amplas. Margarida Salomão foi reeleita em Juiz de Fora, Minas Gerais; Marília Campos venceu em Contagem, também em Minas; Paes se destacou no Rio de Janeiro; e João Campos triunfou em Recife, Pernambuco. Todas essas vitórias foram fruto de alianças amplíssimas, que inclusive incorporaram setores da centro-direita. Entretanto, de maneira geral, não temos conseguido nem mesmo unir a esquerda. Em Porto Alegre, a esquerda apresentou dois candidatos. Não é viável ganhar eleições dessa maneira.
É evidente que existem pessoas com uma visão completamente diferente da minha. Sei que há quem defenda a necessidade de radicalização. Concordo que é preciso radicalizar, mas qual deve ser a pauta? Se as pautas em discussão forem as que estão sendo utilizadas atualmente, na minha avaliação, isso representaria um salto para o precipício. Radicalizar separados da população é como pular de cabeça em um abismo.
Uma frase de uma canção de Milton Nascimento, da minha juventude, diz: “todo artista tem que ir aonde o povo está”. Precisamos ir até o povo e falar na sua linguagem. Como podemos fazer isso? Essa é uma questão que devemos construir coletivamente.
Mesa de Debates
Um ponto que me chamou a atenção, e gostaria de discutir, é a escolha inadequada dos candidatos pela esquerda. Com base em que você afirma isso? Como deveriam ser feitas as escolhas dos candidatos da esquerda? O que isso poderia significar em relação aos interesses das cúpulas?
Benedito Tadeu César
Sem dúvida, é o que eu estava mencionando. A oligarquização dos partidos de esquerda fez com que aqueles que controlam a máquina partidária visem principalmente manter o poder que já possuem, seja dentro do partido, seja nos mandatos que detêm. Hoje, ao se candidatar a um cargo majoritário ou executivo, é aceitável perder, pois isso se transforma em uma campanha antecipada para a Assembleia Legislativa, por exemplo. Muitas vezes, detentores de cargos eletivos utilizam funcionários de seus gabinetes ou de outros gabinetes alinhados a sua tendência como candidatos, assegurando assim o seu espaço. Não estou afirmando que todos fazem isso, mas essa prática é preocupantemente comum.
Por que não conseguimos fazer alianças? Lula faz alianças, mas por que não conseguimos fazer o mesmo para as Prefeituras? Por que no nível federal se consegue formar parcerias e no municipal não? Isso ocorre devido a interesses individuais ou de pequenos grupos que estão interferindo nessa dinâmica. Falo das esquerdas de forma geral, não me referindo a casos específicos.
Não temos candidatos ruins. Boulos não é um mal candidato. Maria do Rosário também é uma excelente candidata. Contudo, seus perfis são mais adequados para candidaturas proporcionais, em que representam um segmento mais à esquerda do eleitorado, do que para majoritárias, em que é preciso conquistar votos mais ao centro. Além disso, quando não há renovação nos quadros fica difícil a escolha.
A esquerda tem se repetido, com raras exceções, e não tem emergido novos nomes. Principalmente no PSOL, temos visto novos candidatos a vereador(a), o que é positivo, mas, em grande parte, os quadros que concorrem em candidaturas majoritárias são antigos e já estigmatizados pela população.
O que devemos fazer? Primeiramente, não se pode criar candidatos na véspera da eleição. O momento de construir alianças ocorreu antes das eleições municipais, quando poderíamos ter aberto espaço. Se não tínhamos grandes nomes, precisávamos abrir mão das cabeças de chapa. Contudo, mais importante do que isso, é fundamental que trabalhemos fora do período eleitoral para restabelecer nosso contato com a população. Nós nos afastamos do povo, e temos um discurso que acreditamos que deve ser compreendido por ele. E muitos ficam até com raiva dele por não serem ouvidos.
Em Porto Alegre, vemos por que o Melo ganhou, mesmo sendo acusado de ser responsável pelas enchentes. Na cabeça da população, ele está sempre presente, fora das eleições, trabalhando para resolver as coisas. A confiança é algo que se constrói ao longo do tempo, não dá para esperar que as pessoas confiem em você apenas em períodos eleitorais, quando você vem fazer denúncias do que não foi feito por outros.
A esquerda, e esse é o problema central, perdeu o contato com as "bases", e isso não significa ir lá apenas para dar ordens ou levar o seu discurso como professor. O papel de um dirigente não é meramente esperar que as bases decidam, mas elas também precisam ser ouvidas. É preciso haver sensibilidade e é essencial que exista empatia. Não adianta chegar depois com suas pautas e esperar que as pessoas aceitem.
O pastor está presente nas periferias, junto dos fiéis. O irmão, membro da igreja, com a bíblia sob o braço, chega em casa após um dia de trabalho, depois de ter enfrentado humilhações. Ele toma um banho, se arruma, pega a bíblia e segue para a igreja. Lá, ele é acolhido, pode se expressar e é ouvido. Não adianta aparecer na véspera da eleição e afirmar: “tudo o que o seu pastor diz está errado”. Ele confiou naquele pastor durante 320 dias no ano; não deixará de crer nele em apenas 45 dias!
Quem está dentro dos presídios? Nós defendemos os direitos humanos e quem clama que “bandido bom é bandido morto” é o pastor. No entanto, ele está presente nos presídios e declara que aquela pessoa pode se salvar, e estende a mão para oferecer ajuda. Diz: “Você pode deixar de ser o bandido que deve ser morto, basta que você queira, que renuncie a esse caminho e me siga”. Essa situação é complexa e desafiadora.
Mesa de Debates
Em relação à renovação das lideranças, ninguém deseja isso, mas é uma possibilidade que deve ser considerada. Por exemplo, com a morte de Lula, quem será a próxima referência da esquerda?
Benedito Tadeu César
Há nomes, e o primeiro que me vem à mente é Haddad, que já se candidatou à Presidência da República. Contudo, ele não possui o apelo popular que Lula detém. Boulos tem um perfil de atuação popular, mas carrega o estigma do “invasor”, sendo visto como alguém que “rouba propriedade”. Esse estigma é muito forte. Desde a campanha presidencial de 1989, a direita usou um exército que visita as casas das pessoas, vestindo camisetas de partidos de esquerda, com trenas e pranchetas, dizendo: “Viemos medir sua casa porque, se Lula ganhar, colocaremos mais duas famílias para morar com você.” Isso causa pavor.
Boulos traz essa marca consigo. É claro que ele não faz isso e não tem nada a ver com isso, mas essa questão precisa ser trabalhada ao longo do tempo. Acredito que é possível superá-la, mas requer muito esforço e aproximação com o povo.
Lula sofreu uma queda recentemente, mas isso não deve ter consequências significativas, visto que sua saúde é boa. Acredito que, até as próximas eleições, ele terá condições de se candidatar e governar, o que nos dará tempo para trabalhar na construção de um substituto. Contudo, se não mudarmos nossa postura nos próximos dois anos – melhorando a comunicação, aproximando-nos da população e aprendendo quais discursos e pautas realmente interessam a ela – até Lula pode perder. Lula não é infalível; ele é uma ideia, como ele mesmo diz, mas ela precisa ser trabalhada e levada à população com êxito.
Eu sempre digo que o PT surgiu em um contexto social específico, que, com o tempo, mudou. Assim como ocorreu com o antigo trabalhismo e Brizola, que foram atropelados pelo PT, o PT e Lula podem ser atropelados, agora por uma direita e uma extrema-direita que conseguem chegar até o povo. Hoje, a estrutura social se transformou. O trabalhador não é mais o de grandes indústrias, organizado em sindicatos e partidos políticos. Precisamos compreender estas transformações e apresentar propostas. As transformações ocorreram e não as acompanhamos.
Costumo lembrar um tema que foi esquecido: os “rolezinhos”. Durante o governo Dilma, os jovens da periferia iam aos shoppings para exercer seu direito de consumo. Eles buscavam consumir produtos de grandes marcas: bonés, tênis, calças, camisetas... Havia, inclusive, o “funk ostentação”, com jovens exibindo correntes, pulseiras e anéis de ouro. Isso representa uma ascensão social de uma camada que começou a ver perspectivas e a ganhar dinheiro, mas não nos aproximamos deles; não entendemos o que aquilo significava. Veio a crise e essas pessoas frustraram suas expectativas.
A classe média, já descontente com as esquerdas e com o PT por se sentir menos beneficiada e ameaçada, ficou ainda mais insatisfeita. O que ocorreu? Os 40 milhões que ascenderam socialmente e que antes estavam fora do mercado de consumo melhoraram seu padrão de renda, enquanto os mais ricos enriqueceram ainda mais, já que não havia e não há tributação sobre ganhos de capital e lucros financeiros. Essa classe média se sentiu estagnada e ressentida.
Costumo dizer que as classes médias são, de certa forma, uma criação da social-democracia na Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil. Elas foram o melhor resultado do pós-Segunda Guerra Mundial e fortaleceram os partidos social-democratas na Europa, o Partido Democrata nos EUA, o histórico PTB e o PT no Brasil, além do peronismo na Argentina. Essa classe média, agora, se sente perdida e ressentida; não recebeu privilégios. Os que estavam na base subiram, mas os que estavam bem acima subiram ainda mais, enquanto a classe média ficou estagnada. A sensação é de empobrecimento, pois os que estavam abaixo se aproximaram dela e os que estavam acima se distanciaram. Isso gera um sentimento de perda, que alimenta discursos neoliberais baseados no ultra individualismo. A mesma coisa ocorre com a camada de baixa renda que ascendeu socialmente e tinha expectativa de ascender ainda mais e que, de repente, se depara com a frustração desta expectativa, aderindo à ideia de que o sucesso depende apenas de seu esforço individual.
Nesse contexto, surgem figuras como Pablo Marçal, que, com um discurso de coach e práticas financeiras questionáveis, ganham notoriedade. Precisamos compreender e trabalhar essa realidade. Insisto muito nesse ponto, pois precisamos entender isso. Se não fizermos essa reflexão, seremos atropelados.
Mesa de Debates
Agradeço pela conversa e pela oportunidade de debater pontos tão relevantes. Passo agora para suas considerações finais.
Benedito Tadeu César
Quero agradecer a oportunidade de falar. Estou realmente preocupado. Se eu puder fazer um apelo, quero enfatizar que todos nós precisamos empreender um grande movimento de reflexão coletiva. É imprescindível abrir espaço dentro dos partidos de esquerda para discutir essas questões. Sei que não será fácil. Há uma frase na teoria das organizações que diz: “Quem fala em organização fala em oligarquização”. Essa é uma característica inerente às organizações. Nossa tarefa é resistir a isso e promover movimentos contrários. Não estou culpando ninguém; estou apenas ressaltando que isso é inerente à esse tipo de estrutura. Portanto, todos devemos nos unir – dirigentes, militantes, simpatizantes, eleitores sem vínculo partidário – todos nós que temos um compromisso social, para nos envolvermos nesse trabalho. Agradeço novamente.
*Benedito Tadeu César é cientista político, professor universitário aposentado (UFRGS e UFES), especialista em partidos políticos e comportamento eleitoral. É autor do livro PT: a Contemporaneidade Possível, integrante das Coordenações do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e da RED Rede Estação Democracia.
Foto da capa: Equilibrista Inos Corradin - Galeria EUEARTE
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Assista o vídeo com a íntegra da entrevista
https://www.youtube.com/live/Tk-OQs06828?si=D1ztz7MKo9fNwxuF