Opinião
O milagre está no despertar
O milagre está no despertar
De LEONARDO MELGAREJO*
Na semana passada, no programa Arte Ciência e Ética num Brasil de Fato o professor Guilherme Costa Delgado expôs, com a clareza que lhe é habitual, informações merecedoras de divulgação e reflexão. Tão importantes que, a meu ver, todos devemos acessar, reproduzir, ajudar a reverberar.
Por isso, além de recomendar acesso ao link, resolvi aproveitar este espaço para antecipar, de forma extremamente limitada e resumida, flashes de partes daqueles conteúdos que me pegaram de tal modo que tão cedo não me sairão da cabeça.
Mostrando que o tão necessário quanto relevante combate às desigualdades se tornou insuficiente para enfrentamento de mecanismos alimentadores das iniquidades que se relacionam à abjeta concentração de riquezas neste país, Guilherme Delgado apontou o enfrentamento à crise climática como oportunidade para atualização do tratamento e das políticas públicas aqui historicamente dedicadas às questões agrária e territorial.
Com argumentos detalhados, que precisam ser escutados no original, ele lembrou que o “nosso” agronegócio dito produtivo seria o principal responsável pela inclusão do Brasil entre os seis maiores emissores de gases do efeito estufa que ameaça a todos. Por isso, na atualidade os ajustes à forma de ocupação do território brasileiro precisariam se desprender de argumentos relacionados à mera produtividade da terra, orientando-se para sua função socioambiental (conforme artigo 186 da Constituição Federal).
A crescente pressão internacional traria oportunidade para esclarecimento deste fato à população brasileira. E aí estaria um dos papéis que nos cabem. Transformada em ativismo, a conscientização poderia levar à reorientação de políticas que hoje induzem à fome, a ecocídios, genocídios e a grande parte daquilo que os discursos politicamente corretos e aparentemente bem-intencionados, afirmam pretender corrigir e evitar.
Porém, sem alteração em políticas de governo que têm dado sustentação à mitologia do Agro que é POP, que drena forças vitais, degrada biomas, contamina aquíferos, provoca empobrecimento, miséria e zoonoses, não haveria como sair da armadilha da desindustrialização colonial em que estamos aprisionados.
Guilherme tratou disso apontando conexões entre o Plano Safra recém anunciado, indicadores ilusórios de sucesso e mecanismos estimuladores de fraudes, como fundos de investimentos e outras artimanhas que alimentam o mercado imobiliário rural, transformando a terra em mercadoria comum (“como qualquer sapato velho”) alienada de suas funções ecológicas e socioprodutivas.
Como caminho de saída, referiu oportunidades a serem aproveitadas pela aplicação de jurisprudência recentemente estabelecida (em novembro de 2022) por decisão unânime do STF, em ADIN promovida pela CONTAG, que se aplica à exigência de respeito à função social da terra, lato senso. Argumentou que organizações sociais poderiam contribuir de forma relevante à popularização desta oportunidade, induzindo o governo a incorporá-la (“hoje a jurisprudência está à frente da política”) entre as bases concretas de suas ações, chamando atenção para seu valor como elemento de sustentação a um grande plano de abastecimento alimentar.
Contido nestas disputas estaria oculta enorme força de potencial transformador, ilustrada em tratamento teológico inovador aplicado à interpretação de grande parte dos milagres religiosos.
Seguramente não vou conseguir reproduzir aqui a essência de argumentos que deslocam a percepção dos milagres de Jesus Cristo desde uma condição mágica, exclusiva do poder divino, para a condição humana, compatível com os papeis que todos exercemos na vida.
Adianto apenas que, citando José Antonio Pagola (de seu livro Jesus uma aproximação histórica), Guilherme referiu que o acolhimento aos pobres, excluídos, adoentados, prostrados pela miséria, teria o poder de reanimá-los. Transformações milagrosas poderiam ser obtidas pela recuperação do autorrespeito e da autoestima. A sensação de acolhimento e a percepção de viabilidade de acesso ao impossível operaria milagres, transformando os horizontes e a condição existencial de grupos relegados à condição de párias. “Pessoas oprimidas pela força da desgraça, uma vez inseridas na graça, gerando (em si e nos outros) transformações inusitadas.”
Graças divinas se humanizariam enquanto capacidades específicas, recebidas por todos, e que uma vez manejadas com fins libertários teriam o poder de fazer emergir e multiplicar forças transformadoras.
Neste momento de profusão de igrejas e ares fascistas, me parece por demais interessante esta percepção. Vale repetir: Os milagres divinos incluiriam escolhas conscientes, a serem imitadas por pessoas comuns, em todos os tempos. As graças divinas seriam capacidades gratuitas, disponíveis de forma generalizada, que tão somente “utilizadas em sentido ético permitiriam fazer arte de melhor qualidade, ciência de melhor qualidade, políticas de boa qualidade…”.
Nesta abordagem parece evidente que o MST, o MTST, o MPA, a CPT e muitos outros movimentos sociais operam milagres.
Exercitando seu papel transformador, reforçando correntes e comunidades orientadas em defesa da vida, merecem e precisam de nosso apoio para multiplicação de suas ações comprometidas com a emancipação humana e a saúde da Casa Comum.
Até por isso, vale repetir as palavras de Dom Pedro Casaldáliga: na dúvida, fique ao lado dos pobres!
O autor deixa como sugestão a música de Pedro Munhoz – A canção da terra, cantada por Bruna-Ave Cantadeira:
E para ler, Melgarejo recomenda:
O agro é tudo? Pacto do agronegócio e reprimarização da economia – Guilherme C. Delgado e Sergio Pereira Leite. Revista Rosa, vol 6. São Paulo/SP. Brasil, 2022. Revistarosa.com, issn 2764-1333. Disponível em https://revistarosa.com/6/brasil200/agro-e-tudo
Não deixe de assistir ao Programa Arte, Ciência e Ética num Brasil de Fato:
*Engenheiro Agrônomo, mestre em Economia Rural e doutor em Engenharia de Produção. Foi representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio e presidente da AGAPAN. Faz parte da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e é colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, do Movimento Ciência Cidadã e da UCSNAL.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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