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Opinião

Iura Paria: um juiz garantista

Iura Paria: um juiz garantista

Artigo por RED
01/07/2023 18:24 • Atualizado em 03/07/2023 09:20
Iura Paria: um juiz garantista

De PAULO TORELLY*

Com alegria recebi e li o texto de recente decisão do Juiz de Direito PIO GIOVANI DRESCH, a qual merece todas as nossas homenagens e a mais ampla divulgação diante do profundo compromisso que revela com os fundamentos da democracia constitucional, pelo que acolhi o pedido do caro professor BENEDITO TADEU CÉSAR para fazer esta breve reflexão. Trata-se da negativa de recebimento de uma denúncia por “DESACATO” cometido contra policiais militares que fizeram uma revista pessoal e não gostaram do que escutaram. Um crime de tipificação aberta e passível de ampla incidência, que está previsto no art. 331 do Código Penal, editado no ano de 1940, em plena Ditadura do Estado Novo, e que estabelece: “Art. 331 – Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela: Pena – detenção, de seis meses a dois anos, ou multa.”

Deste logo destaco que, após as respectivas ditaduras, países como Chile, Argentina e Paraguai, simplesmente revogaram a previsão de tal “CRIME” por medida legislativa ou mesmo por simples interpretação diante da incompatibilidade desta suposta hierarquia entre cidadãos e agentes do Estado em um regime democrático. Mas no Brasil tudo é diferente e o STF, depois de diversas decisões de outros tribunais sustentando a abolitio criminis do “desacato” por ser incompatível com a Carta Maior de 1988 e com o art. 13 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, entendeu, nas palavras do Ministro GILMAR MENDES, que “o desacato não é incompatível com a democracia desde que, em contrapartida, haja lei que puna os abusos de autoridade” (VOTO na ADPF 496). Desde então a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por entender que tal criminalização atenta contra a liberdade de expressão e em decorrência também viola os princípios da isonomia e da dignidade da pessoa humana em qualquer Estado Democrático de Direito, segue atenta em seus relatórios periódicos sobre o tema no Brasil e nos poucos países que ainda insistem em criminalizar críticas aos agentes do Estado.

Nossa Suprema Corte, que também acumula competências de um Tribunal Constitucional, todavia sustenta, com a apreciação da ADPF 496, uma mera interpretação restritiva da tipificação criminal do art. 331 do Código Penal, a qual exigiria, ainda nas palavras do Ministro GILMAR MENDES acompanhando o entendimento do relator, Ministro LUÍS ROBERTO BARROSO, os seguintes requisitos para estar configurada: “1) o crime deve ser praticado na presença do funcionário público; 2) não há crime se a ofensa não tiver relação com o exercício da função; 3) é necessário que o ato perturbe ou obstrua a execução das funções do funcionário público; 4) devem ser relevados, portanto, eventuais excessos na expressão da discordância, indignação ou revolta com a qualidade do serviço prestado ou com a atuação do funcionário público.”

Uma proposta de difícil equilíbrio – lançada pelo STF para a ordinariedade da vida comunitária – entre os crimes de “desacato” e “abuso de autoridade”, o que na realidade prática confere invariável vantagem aos agentes abusadores e segue inquietando todos que lutam pela efetividade das garantias constitucionais. É inegável o comprometimento da força normativa da Constituição, pois tal “equilíbrio de opostos”, nas palavras do ilustre magistrado garantista, “pouca correspondência encontra no mundo dos fatos”, pelo que com acerto o mesmo indaga acerca do baixo índice de denúncias por abuso de autoridade: “como se poderia esperar tal ousadia de quem mora na vila, em endereço conhecido dos policiais, que para lá poderão voltar para novas abordagens?”

Neste sentido o magistrado PIO GIOVANI DRESCH denuncia, em sua paradigmática decisão, a “falácia muito comum em decisões judiciais, de validação da revista ilegal pelo resultado”, pois a experiência e o compromisso com os direitos constitucionais fundamentais lhe permite desvelar, muito além da triste e conhecida desigualdade presente na realidade social brasileira, o vilipêndio da dignidade humana com a segregação, a humilhação, a tortura e toda sorte de agressões que desprezam o primeiro e maior fundamento de legitimidade do que chamamos de Estado Democrático de Direito, a igualdade de todos perante a lei, dado que registra:

“Em 2007, como juiz plantonista, tomei a declaração de moradora da Vila Bom Jesus, cuja família teve a casa invadida por policiais militares durante a noite. Consta de seu depoimento: “[A declarante] disse que eles não podiam entrar em sua casa sem mandado, mas um deles respondeu que em vila não precisa de mandado.”

Assim, com acerto o ilustre magistrado gaúcho também constata que:

“Se o agente público age de forma excessiva, fora dos limites da lei, em situações de abuso de autoridade ou violação de direitos humanos, a reação assumirá o caráter de retorsão à injusta provocação, assim não caracterizando o crime de desacato. […] Não basta, por isso, que, como é comum ocorrer, a denúncia se limite a descrever as palavras alegadamente ofensivas: para atribuir a alguém o desacato, deve também descrever uma ação legal por parte da autoridade. Se não o fizer, o fato estará descrito pela metade, não chegando a preencher o tipo penal.”

O flagrante contraste entre o diminuto número de denúncias de abuso de autoridade e a usual prática de “equacionar” operações policiais arbitrárias com a alegação de desacato, sempre contando com a adesão ideológica do julgador diante da impossibilidade de se saber o que de fato ocorreu no momento da abordagem policial, orientou o questionamento feito pelo experiente e sábio juiz garantista PIO GIOVANI DRESCH: “o que justificam sejam recebidas denúncias em que se acusam cidadãos que muito bem poderiam ocupar o lugar de vítimas?” Para tal enfrentou o tema da busca pessoal, prevista no art. 244 do Código de Processo Penal (CPP) e que há muito encontra na jurisprudência reprimenda quando utilizada nas chamadas abordagens em fishing expeditions, expediente de lançar arbitrariamente uma “rede” de ações e medidas na busca de provas, pois no caso concreto constatou: “cabe assinalar que o acusado é negro, tinha 25 anos e que a abordagem aconteceu numa vila, na rua em que morava, a poucos metros da sua casa.”

Assim, a “fundada suspeita”, mesmo sendo um conceito aberto previsto no art. 244 do CPP, apenas autoriza a busca pessoal quando estiverem presentes, no bem lembrado registro da obra de NELSON HUNGRIA, um dos maiores penalistas que o Brasil conheceu, mais do que “meros indícios fortuitos, levantados pelo acaso, sem relação com a ação criminosa que se trata de descobrir”. A abordagem necessariamente deve estar voltada para a comprovada busca de “arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito”, requisito legal para configurar a licitude da atuação policial capaz de deslegitimar a compreensível reação do cidadão molestado sem ‘justa causa’. Algo que não se configura com a mera e unilateral alegação de que era um ponto de tráfico e que o abordado correu ao avistar a polícia, seja porque a genérica invocação de um “lugar de tráfico” não é sindicável, seja porque “já havia uma motivação anterior ao ato de correr do acusado (a sutil diferença entre ‘foi revistado porque correu’ e ‘correu porque seria revistado’); além disso, em semelhante circunstância, a reação de correr parece intuitiva para um jovem preto e pobre…”. Neste sentido é esclarecedora a seguinte passagem da EMENTA do Acórdão do STJ no Habeas Corpus nº 158580/BA, relatado pelo Ministro ROGÉRIO SCHIETTI CRUZ e também citado na decisão ora comentada:

“Há três razões principais para que se exijam elementos sólidos, objetivos e concretos para a realização de busca pessoal – vulgarmente conhecida como ‘dura’, ‘geral’, ‘revista’, ‘enquadro’ ou ‘baculejo’ –, além da intuição baseada no tirocínio policial:
“a) evitar o uso excessivo desse expediente e, por consequência, a restrição desnecessária e abusiva dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e à liberdade (art. 5º, ‘caput’, e X, da Constituição Federal), porquanto, além de se tratar de conduta invasiva e constrangedora – mesmo se realizada com urbanidade, o que infelizmente nem sempre ocorre –, também implica a detenção do indivíduo, ainda que por breves instantes;
“b) garantir a sindicabilidade da abordagem, isto é, permitir que tanto possa ser contrastada e questionada pelas partes, quanto ter as validade controlada a posteriori por um terceiro imparcial (Poder Judiciário), o que se inviabiliza quando a medida tem por base apenas aspectos subjetivos, intangíveis e não demonstráveis;
“c) evitar a repetição – ainda que nem sempre consciente – de práticas que reproduzem preconceitos estruturais arraigados na sociedade, como é o caso do perfilhamento racial, reflexo direto do racismo estrutural.”

Para concluir e não ir além da merecida recomendação de uma leitura atenta ao teor da sábia decisão do Juiz de Direito PIO GIOVANI DRESCH, registro que a via adotada pelo grande magistrado para reafirmar as garantias constitucionais e os preceitos da Convenção Interamericana de Direitos Humanos consagra o entendimento de que a denúncia de desacato deve explicitar a legitimidade da conduta do agente público, pois “todos são iguais perante a lei” (Constituição do Brasil, art. 5º) e nenhuma abordagem policial pode se dar com base na naturalização da prática do “atraque” seletivo conforme critérios de raça, classe e localização geográfica.

 

Abaixo, a referida decisão do juiz Pio na íntegra:

Rejeição de denúncia – desacato, fundada suspeita


* Doutor pela Faculdade de Direito da USP, Advogado e Procurador do Estado do RS, foi Procurador-Geral do RS no Governo Olívio Dutra.

Imagem em Pixabay.

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