Opinião
A Guerra da Água pega fogo pelo mundo afora. E também no Brasil.
A Guerra da Água pega fogo pelo mundo afora. E também no Brasil.
Por WALTER MORALES ARAGÃO*
A destruição da barragem de Karkhovka, no rio Dnipro, em Kherson, região anexada à Federação Russa e reclamada pela Ucrânia, confirma a reiteração histórica do emprego bélico dos recursos hídricos. E isto se dá tanto pela exploração da escassez, quanto da abundância relativas do recurso nas áreas onde ocorrem os confrontos e, também, considerando os usos múltiplos dos mananciais.
A abundância relativa pode ser utilizada através dos efeitos propositais no terreno, com vista a dificultar os deslocamentos militares do inimigo. É o caso da interrupção ou do desvio de cursos naturais de água e também da liberação brusca de corpos hídricos artificiais, como as barragens.
A situação do atual conflito no Leste europeu dificulta a atribuição das responsabilidades, uma vez que é possível atribuir vantagens e desvantagens tanto para o governo de Kiev como para o de Moscou, após o incidente desta semana. Se, por um lado, as tropas de Zelenski passam a ter mais dificuldades para levar a frente a anunciada contraofensiva sobre os russos no Dombass, por outro lado alargou-se o rio, afastando as forças russas. E também ficou muito reduzida a vazão da água no canal que abastece a Crimeia e sua capital, Sebastopol.
O ano de 2023 poderá, talvez, ficar registrado historicamente como aquele em que o uso dos recursos hídricos como arma de guerra foi mais explicitado, seja em conflitos iniciados por outros motivos, ou naqueles em que, de certa forma, a disputa pelo acesso à água foi, ela mesma, o motivo do confronto. Recorde-se, por exemplo, que a guerra civil no Sudão iniciou no primeiro trimestre deste ano e que, previamente, a própria divisão do antigo país africano em Sudão e Sudão do Sul, no início deste século, já indicava tratar-se de uma disputa por água. No caso, água para a agricultura, uma vez que o Sudão do Sul possui terras úmidas, além das margens do Rio Nilo. E a parte norte do antigo território, o Sudão atual, é desértica, com disponibilidade hídrica praticamente restrita ao Nilo. Com a separação, a segurança alimentar do Sudão agravou-se, indo à crise institucional, com a derrubada do governo anterior e a subsequente guerra civil entre os aliados no golpe.
Já o conflagrado Oriente Médio assistiu a um agravamento da segurança hídrica na Faixa de Gaza, ocupada ilegalmente pelo Estado de Israel. O governo de Tel Aviv intensificou recentemente os controles sobre o acesso à água pela população palestina, dificultando-o sobremaneira. É o que informaram sítios europeus alternativos, como o espanhol Rebelión e o britânico Socialist Worker. O aumento da tensão resultante foi, provavelmente, uma das causas do último duelo de foguetes entre a Faixa de Gaza e o sul de Israel. É de se registrar, também, a persistência da ocupação das Colinas de Golã, na Síria – local de nascentes de água importantes – por parte das forças israelenses.
Aqui no Brasil, a própria crise humanitária dos yanomâmis, que se tornou de amplo conhecimento da sociedade brasileira na virada do ano passado para este, pode ser vista como um conflito de uso dos recursos hídricos. O sequestro dos rios pelo garimpo ilegal, arruinando as fontes de água e alimentação da população indígena, foi uma espécie de privatização tácita e feita à força, tanto dos rios como das terras indígenas adjacentes. A qual contou com o beneplácito, senão com o incentivo franco, do governo federal de extrema direita, vigente à época. Um ataque genocida, camuflado de permissividade às atividades ilegais.
Tais acontecimentos, entre outros, pertencem à onda de assaltos que o capitalismo mundial realiza sobre os recursos naturais e sobre os bens públicos, nesta sua fase rentista e desindustrializadora, seguindo seu impulso incorrigível de expansão sem limites. E o faz de diversas maneiras, desde condicionando e/ou estimulando a ação das hordas de desempregados estruturais e famintos crônicos até a generalizada obtenção de favores, verdadeiras doações de estruturas feitas com recursos públicos, que lhe propiciam governantes dóceis, através das mal chamadas privatizações.
Cenário este evidenciado pela prioridade dada ao tema pela direita brasileira, notória representante do capitalismo rentista e predador dos recursos naturais e sociais. Sua luta unida na defesa do Marco Regulatório do Saneamento, lei federal 14.026/2020, sancionada por Bolsonaro, ilumina a tomada de posição. Aquela lei induz fortemente à privatização dos serviços de abastecimento de água no Brasil, proibindo a realização de concessões por contratos-programa, que eram celebrados entre entes públicos e empresas estatais, sem a necessidade de licitação. O presidente Lula, no início de seu mandato atual, emitiu uma Medida Provisória retirando tal proibição. E sofreu sua primeira grande derrota no parlamento, o qual manteve o item privatista por maioria ampla.
A votação da Medida Provisória dos novos ministérios, agora no final de maio, também possui este aspecto, visto que uma das alterações foi a retirada da ANA – Agência Nacional de Águas e Saneamento – do Ministério do Meio Ambiente e sua realocação no burocrático Ministério da Gestão e Inovação.
É também, ao que tudo indica, o caso da encaminhada privatização da CORSAN aqui no Rio Grande do Sul. Leiloada pelo valor inicial, em lance dado por empresa privilegiada que já operava em parceria de vários anos com a estatal. A AEGEA, a arrematante, tinha amplo acesso aos dados internos e a CORSAN teria sido avaliada pela metade do valor estimado em cálculos sérios. Além disso, todo o processo é submetido a sigilos ilegais e imorais, numa operação de guerra contra o interesse público. São tantas as fragilidades que o cancelamento do leilão é sugerido por diversos atores políticos e há movimento formal por uma CPI a respeito da privatização na Assembleia Legislativa do estado.
O governo do estado de São Paulo segue linha igual, promovendo a privatização da companhia estadual de saneamento, a SABESP, que é, isoladamente, o maior serviço de abastecimento de água do mundo. E isso apesar das comparações, feitas pelas mídias locais, com os problemas de atendimento que começam a surgir no Rio de Janeiro após a privatização da CEDAE.
Aqui em Porto Alegre, na mesma toada, vê-se o governo municipal alardear aos quatro ventos, e viajar oferecendo, a privatização do DMAE, que é o maior serviço municipal de abastecimento de água do Brasil e um expoente nacional em excelência técnica e operacional.
Ali também a formatação dos processos, a definição dos valores envolvidos e dos dados sobre a necessidade da decisão – que não a centenária idolatria liberal pela propriedade privada dos meios de produção – são, como no caso estadual, mais escondidos do público do que as datas de ofensivas e contraofensivas na Ucrânia. Estas ainda têm como justificativa seu caráter militar. A apropriação privada da água no Rio Grande do Sul talvez tenha relação similar é com a militância fanática no neoliberalismo. Orientação esta que, como já sabido, é, simultaneamente, um sucesso ideológico, um fracasso econômico e um desastre social.
Resta a possibilidade, no dizer de Karl Marx, de que esses ”idílicos acontecimentos” decorrentes da expansão capitalista para outras áreas e setores de atividade sejam, como o é toda a sociabilidade no capitalismo, um banho para a consciência social ”na água fria do cálculo egoísta”. E que, despojadas de ilusões, as sociedades humanas possam buscar, então, democracias efetivas, sem guerras pela água ou por outros recursos naturais e sociais, tão típicas da irracionalidade sistêmica vigente.
* Professor de Filosofia e Doutor em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS. É participante do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito.
Imagem em Pixabay.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
Toque novamente para sair.