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Opinião

A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS – PARTE 3

A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS – PARTE 3

Artigo por RED
07/06/2023 05:30 • Atualizado em 08/06/2023 22:32
A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS – PARTE 3

De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

Justiça é tratar de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais na medida de sua desigualdade. Aristóteles. Ética a Nicômaco

Chamar o governo do PT de um governo de esquerda stricto sensu é uma impropriedade do ponto de vista do vocabulário. Ele é um governo de centro, de frente-ampla antifascista. Reinaldo de AzevedoEu me dou ao direito de mudar de ideia – entrevista a Marco Antônio Villa (14’27’’)

Resgatando e sistematizando o já dito

Nosso ponto de partida é uma homenagem a um dos melhores filmes de Glauber Rocha: “O Dragão da Ignorância contra o Santo Aristóteles”. A ignorância pretenciosa da mídia charrua defende insistentemente o ponto de vista de que todos os Estados devem ser tratados da mesma forma e que, se nós não fizemos o dever de casa, é porque somos meninos e meninas mal comportados que precisam ficar de castigo. A mídia ignora o fato de termos uma história de desenvolvimento muito particular, que envolveu, dentre outros fatores os seguintes:

  • Fomos o primeiro Estado da Federação a generalizar a aposentadoria integral para o funcionalismo público estadual, passando a ter uma conta de inativos a partir de meados dos anos 20 do século passado. Enquanto a maioria dos Estados passa a ter uma conta de inativos a partir de meados dos anos 70 do século XX. E há Estados – como os antigos Distritos Federais do Amapá, Roraima e Rondônia – cujos funcionários públicos aposentados encontram-se, todos, sob responsabilidade do Tesouro da União. A assunção desta responsabilidade onerosa precoce adveio de uma “negociação” entre os governos Júlio de Castilhos e Floriano Peixoto para garantir a derrota do movimento dos latifundiários sulistas contra o Imposto Territorial Rural;
  • Entre a Revolução de 30 e o Golpe Militar de 1964, os investimentos públicos em infraestrutura e na criação de empresas estatais, bem como em apoio à atração de multinacionais e a criação de sistemas industriais tripartites (estado – multinacionais – privadas nacionais) concentraram-se no Sudeste, em especial no eixo RJ-SP A necessidade de apoiar a sobrevivência do segundo parque da indústria de transformação do país – localizado no RS – levou os governos estaduais entre Flores da Cunha e Leonel Brizola a assumirem para si a construção da infraestrutura necessária ao mesmo tempo em que garantiam vantagens fiscais a empresas gaúchas que operavam em escala inferior à escala padrão do Sudeste. A construção de infraestrutura rodoviária, elétrica e telefônica – que, no resto do Brasil, ficou sob responsabilidade da União – foi realizada, no extremo sul, pelo Estado gaúcho. O que envolveu um endividamento que jamais foi ressarcido pela União. Pelo contrário: consolidada a infraestrutura e a concentração espacial da indústria e dos serviços no Sudeste, o governo da ditadura trata de garantir a ocupação econômica de todo o território nacional, privilegiando as regiões Nordeste, Norte e, acima de todas, o Centro-oeste. Emergem, também, importantes obras públicas em parte da região Sul, como Itaipu. O Estado com a pior relação entre tributação e investimentos federais será o RS. Além disso,
  • O Governo Ditatorial impõe uma reforma fiscal em detrimento das Unidades Federadas em 1967. Logo adiante, cria o PIS e “compensa” as empresas pela criação do novo tributo através da imposição da queda da alíquota do ICM. Entre 1965 e 1975 a participação dos Estados na arrecadação tributária cai de 50,4% para 33,9%. Ah, dizem os jornalistas “fofos”: isto foi igual para todos. Não, não foi. A dívida pública do RS já superava o montante arrecadado em um ano. A queda de arrecadação imposta pela União implicou aumento do endividamento e piora na qualidade dos serviços públicos básicos no RS. Na segunda metade da década de 70, dois novos processos emergem por decisão da União: a) desoneração das exportações, com queda da arrecadação do ICM para Estados com maior abertura para o exterior (naquele momento, o RS era o Estado que apresentava a maior abertura em todo o país); b) elevação sistemática das taxas de juros reais, no interior de uma política falha de combate à inflação gerada pelas maxidesvalorizações que vai penalizar, de forma particular, os Estados mais endividados (e, naquele momento, o RS era o estado mais endividado, em função dos elementos elencados em 1.2)

Mas o mais incrível, do meu ponto de vista, não chega a ser a ignorância arrogante acerca de todos estes processos. O problema maior encontra-se na pretensão de que a Federação possa ser pensada como um conjunto de entes independentes e indiferentes, onde cada um deve arcar de forma solitária e isolada com os ônus impostos discricionariamente pelo governo central. Peço perdão pela pequena digressão que farei sobre direitos e deveres internacionais, mas tenho certeza de que ela será útil a quem abraça teses tão despropositadas.

Em julho de 1944, tem início a construção do Sistema ONU em um conjunto de reuniões realizadas em Bretton Woods, nos Estados Unidos. O debate de Bretton Woods estará centrado nos mecanismos de operação do intercâmbio mundial e de financiamento para o desenvolvimento de países destruídos pela Segunda Grande Guerra, bem como de financiamento dos desequilíbrios nas relações de intercâmbio entre nações periféricas e centrais. A conferência será marcada pela contraposição de duas teses antagônicas, defendidas, respectivamente, por dois grandes economistas: John Maynard Keynes, representante do Reino-Unido, e Harry Dexter White, representante dos Estados Unidos. Na concepção de Keynes, o FMI deveria operar como uma espécie de Banco Central de todas as nações. Ele seria responsável pela emissão do dinheiro mundial e deveria regular os processos de ajuste dos desequilíbrios nas Balanças de Pagamento entre os distintos países, impondo, de forma equânime, ajustamentos, tanto aos países deficitários (que deveriam desvalorizar suas moedas) quanto aos países superavitários (que deveriam valorizar suas moedas, diminuindo, assim, seus superávits comerciais). Com vistas a suavizar os processos de ajustamento e minimizar os choques, o Banco Mundial financiaria os países deficitários e endividados com taxas de juros preferenciais utilizando-se das reservas excessivas dos países superavitários.

Os EUA propuseram um sistema bem mais simples: o dólar seria o dinheiro do mundo. Apenas os países deficitários – vale dizer: os países mais pobres e periféricos – teriam que se ajustar. Os recursos à disposição do Banco Mundial seriam menores e aportados pelos distintos países do mundo de acordo com os seus interesses. Os países que aportassem volumes maiores de recursos teriam poder de voto e capacidade deliberativa maior. Desnecessário dizer que os EUA foram vencedores na disputa. E até hoje compram o que bem entenderem no mundo “pintando papel de verde com a cara de George Washington”.

Ora, que os EUA tratem o resto do mundo como sua periferia, comprem o que bem entendam com papel pintado e manipulem suas taxas de juros – que se tornam, obrigatoriamente, a referência para as taxas de juros de todos os demais países – como bem lhes aprouver não pode surpreender a ninguém. O imperialismo norte-americano nos séculos XX e XXI faz o imperialismo inglês dos séculos XVIII e XIX parecer humano, cristão e solidário.

Mas que os jornalistas da Zero Hora entendam que o padrão de relação da União com os Estados Federados no Brasil deva seguir a mesma regra da relação dos EUA com as nações periféricas do mundo é algo que, para mim, vai muito além do compreensível. Keynes defendia o ponto de vista de que relações assimétricas e desequilibradas entre nações devem ser ajustadas por ambas: tanto as nações superavitárias quanto as deficitárias deveriam responsabilizadas e, de certa forma, penalizadas no processo de reajustamento. Isto enquanto regra geral, ordenada e regulada pelo FMI. Porém, o ajustamento sequer era pensado por Keynes como um choque. O Banco Mundial ingressaria no processo para suavizá-lo; garantindo o refinanciamento dos países deficitários a taxas de juros definidas com base numa avaliação das condições reais e particulares de pagamento da dívida acumulada no passado. Para Keynes, cada país era um país; cada história de construção da dívida era única; e o potencial de pagamento deveria ser avaliado levando em conta, tanto a história pregressa, quanto as necessidades de investimentos e gastos sociais de cada nação.

Infelizmente, a mídia charrua se encontra tão impregnada do senso comum neoliberal que não alcança sequer entender que relações de débito e crédito devam ser administradas de forma diferenciada, de acordo com a capacidade de pagamento dos devedores e de acordo com a responsabilidade dos credores na construção da dívida. É preciso estar encharcado de neoliberalismo para não ver, nas relações financeiras, nada mais do que “contratos entre formalmente iguais” e as relações entre entes federados de uma mesma nação como equivalentes às relações entre “agentes civis no mercado”.

Vale notar que, mesmo sob as regras frias e autoritárias impostas pelos EUA, as relações internacionais não seguem rigorosamente os ditames de Tio Sam. A renegociação da dívida da Argentina levada à frente por Nestor Kirchner em 2005 foi um grande sucesso. E muitos países da periferia tiveram suas dívidas perdoadas por países mais desenvolvidos. O próprio Brasil perdoou dívidas de países africanos. E poderia, sim, reconhecer as diferenças na história da construção das dívidas e garantir um tratamento efetivamente justo, tratando os desiguais – como propõe Aristóteles – desigualmente. Mas, com toda a certeza, isto só poderia ocorrer se houvesse um mínimo de unidade neste clamor por justiça dentro do RS.

Só que não há qualquer unidade no Rio Grande Amado. E não há, acima de tudo, porque a mídia gaudéria não apenas isenta a União de qualquer responsabilidade na construção e crescimento da nossa dívida, como inculca esta tese ignorante e avessa aos interesses do Estado na consciência de 9 entre 10 leitores dos pasquins locais. De acordo com nossos jornalistas “fofos” (para usar a terminologia de Moisés Mendes para caracterizar os arautos do senso comum que hegemonizaram a mídia charrua), todos os Estados são iguais. Se o Amapá não tem aposentados, é porque teve sorte de ter se mantido como Distrito Federal por tanto tempo. E sorte é parte do jogo de mercado; não é mesmo? Se São Paulo recebeu a maior parte de sua infraestrutura básica do Governo Federal entre os anos 40 e 60 é porque o fez por merecer; não é mesmo? Afinal, era a locomotiva da nação; e uma locomotiva vale mais que um vagão. Especialmente se ele é o último carro do comboio, como o RS. Quem mandou o vagãozinho do extremo sul querer uma infraestrutura similar e realizar obras de infraestrutura apelando para o endividamento? O problema é do vagão. Se a União, na crise da ditadura, isenta as exportações, deprimindo a arrecadação do RS e coloca as taxas de juros lá em cima, quebrando o Estado mais endividado do país, a culpa é do vagãozinho; do gauderinho que não fez o dever de casa.

E não me venha com Aristóteles ou Keynes. Esta turma tem um raciocínio muito complexo. Para o jornalista fofo, branco é branco, e preto é preto. Listrado, xadrez e cinza é coisa dos dialetas, que gostam de confusão. Já ouço os arautos da mídia apregoando: pliss, Carlos Paiva, a regra é clara: quem deve, tem que pagar. E todos os devedores, do mesmo jeito. Há exceções? Claro! Para os meritocratas. Como Lemann das Lojas Americanas, e os empresários que receberam Fundopem Turbinado e se evadiram do Estado tão logo este acabou.

Haja paciência para tanto senso comum. Mas voltemos à história do nosso triste Estado. Quem sabe ainda há alguma esperança?

O jeito Amaral de Souza, Jair Soares e Pedro Simon de Governar

Em seu artigo intitulado Os Passos do Endividamento Juliana Bublitz conta, em sequência, duas histórias muito interessantes sobre o Governo Jair Soares. Segundo ela,

Em uma tarde calorenta de dezembro de 1982, Jair chamou o economista Ary Burger para conversar. Queria que ele fosse seu secretário da Fazenda. A resposta foi “não”: — O Ary sabia que o Amaral tinha lançado novos títulos, que iriam estourar no meu governo. Ele disse que eu assumiria em março e, em maio, não pagaria o funcionalismo. Foi uma bomba. E a bomba só não explodiu porque o Estado passou a fazer operações de crédito por antecipação da receita repetidas vezes. Isto é, recorreu ao mercado para adiantar o que ainda estava por arrecadar, pagando juros e correção. Com isso, Jair conseguiu fazer obras de infraestrutura, abriu concurso público, contratou professores e deu aumento ao funcionalismo. Em 1985, no entanto, o déficit (despesa maior do que a receita) era motivos de preocupação. Sem alternativa, Jair Soares foi a Brasília, em 1985, pedir ajuda ao então presidente José Sarney (PMDB): — Adotei uma política de austeridade e não fiz novos empréstimos, mas precisava de autorização para rolar a dívida e emitir títulos. Ao chegar ao gabinete de Sarney, recebeu um elogio inesperado. — Fui chorar as pitangas, e ele disse: “Que gravata linda!” Era uma peça italiana e fazia parte da minha coleção. Tirei e dei para ele. Lembro disso, porque logo depois o Sarney ordenou a rolagem da dívida. Foi um alívio, mas ainda sinto falta daquela gravatabrinca o ex-governador, hoje com 79 anos. (Juliana Bublitz, ZH, 10/08/2013)

A passagem é reveladora de uma dimensão importante da evolução das finanças públicas na crise da ditadura militar: a absoluta falta de transparência da gestão das dívidas, seja da União, seja dos Estados. O processo de estatização da dívida externa levado a cabo pelos governos Geisel, Figueiredo e Sarney sempre foi – e continua sendo – uma caixa preta. Assim como as diferenças do tratamento recebido pelas mais diversas empresas nacionais, multinacionais e estatais e pelas distintas Unidades da Federação. O Governador eleito, Jair Soares, do mesmo partido de Amaral de Souza, não sabia da situação fiscal do Estado às vésperas de tomar posse. É informado pelo renomado economista Ary Burger que, com certeza, tinha alguma informação de cocheira. Idem, ibidem, Jair deixa uma bomba no colo de Simon após a negociação entre quatro paredes que teve com Sarney e que lhe permitiu sair de uma situação de absoluta insolvência para uma situação de maior flexibilidade “em troca de uma gravata”.

No primeiro capítulo deste “ensaio em quatro tempos”, comentei que a avaliação elogiosa de Liderau Marques Jr. às contribuições de FHC para a inviabilização da economia gaúcha, apesar de (no mínimo) estranhas, continham um grão de verdade. E que iríamos comentar posteriormente onde se encontrava esta dimensão. É aqui que ela se encontra. Na passagem – lenta, gradual e (in)segura – da Ditadura à Nova República, o que se vê, acima de tudo, é a dificuldade de visualização, a falta de transparência. Este é o reino do “jeitinho” e do “troca-troca”. Só o que fica difícil de acreditar é que, nas negociações pela rolagem da dívida no último ano de governo de Jair Soares, o troca-troca do nosso primeiro governador eleito pelo voto direto após 1964 com o primeiro presidente civil tenha se restringido a uma gravata italiana. Por mais bonita que ela fosse, os tempos não admitiam tanta concessão por um mimo tão pequeno. A verdade é que o Brasil se encontrava às vésperas da mais importante eleição de sua história: a eleição para o Congresso Constituinte. O Planalto já organizava aquele que seria o grande projeto para garantir a vitória ao PMDB de Sarney: o Plano Cruzado. Porém, não era garantido que o Plano se sustentasse até o período eleitoral. Todo o apoio era bem-vindo. E é muito difícil acreditar que estas questões não estivessem presentes na pauta de Sarney com Jair Soares.

Seja como for, nas eleições de 1986, Jair Soares havia abandonado seu partido de origem – o PDS – e migrado para o PFL. A divisão imposta entre os filhos da “extinta Arena” no RS levou à derrota das candidaturas dos dois partidos (à despeito da coligação entre PDT e PDS em 1986) e à vitória de Pedro Simon, bem como a conquista das duas vagas do Senado daquele ano pelo PMDB. Mas, de outro lado, se a vitória foi grandiosa para o PMDB nacional, ela foi bem custosa para Pedro Simon. Com a troca de mimos entre Sarney e Jair Soares, este último deixou uma bomba armada na cadeira do novo governador. Uma bomba que faria aquela outra, deixada por Amaral de Souza na cadeira de Jair, parecer um traque de festa junina. Uma bomba associada a elevação do piso salarial da maior categoria de funcionários públicos estaduais: os professores.

De acordo com Juliana Bublitz, naquele momento, a situação fiscal era tão grave que Simon, logo nos primeiros dias de seu governo “suspendeu a folha e anulou atos do predecessor, entre eles a decisão de pagar 2,5 salários aos professores” (Juliana Bublitz, ZH, 10/08/2013).

A reação dos professores não se fez esperar. Foi iniciada uma greve que se estendeu por quase quatro meses. Ao final chegou-se a um acordo que marcará a história da crise fiscal do RS. Simon não irá conceder o piso acordado por Jair Soares ao final de sua gestão. Mas concederá algo que a categoria acatará como equivalente: melhorias no Plano de Carreira, com aumento na remuneração das faixas superiores do magistério por tempo de serviço. O que este compromisso tem em comum com o piso de Jair Soares e os títulos de dívida lançados ao final do governo Amaral de Souza? A tática de empurrar com a barriga e deixar o ônus de suas dívidas e concessões salariais para os próximos governos. Veremos no quarto e último capítulo desta “saga” como esta tática se preservou ao longo do tempo e como ela tem tudo a ver com o “Regime de Recuperação Fiscal” de Sartori e Leite. Mas vamos com calma. Tempum tempi donari.

Porém, durante o governo Simon, ainda havia uma folga negocial com o Governo Federal. Com a Constituinte Parlamentar em curso, volta e meia era preciso algum apoio dos Governadores para a consolidação e vitória de uma certa posição defendida por Sarney e pelas lideranças do PMDB no Congresso. Apesar de apenas o Estado do Sergipe não haver eleito um Governador do PMDB (elegeu Antônio Valadares, do PFL), a bancada do PMDB no Congresso correspondia a aproximadamente 54% do total. E, por vezes, era preciso mobilizar os demais partidos. O que envolvia concessões para garantir a governabilidade e vitórias na Constituinte. Assim, em 1987, o Governo Federal promove um programa de “Ajuda Financeira” aos Estados. Permitindo mais um suspiro ao Governo Simon. E, até mesmo, algumas (poucas) concessões salariais.

O que importa é reconhecer a unidade básica do padrão de gestão da crise destes três governos. Todos enfrentaram greves prolongadas e foram – pelo menos no plano formal e aparencial – bastante rigorosos nas concessões salariais. Mas concederam “para o futuro”, tornando as finanças gaúchas ainda mais insustentáveis. Para as próximas gestões. Creio que é de domínio público que o princípio primeiro de sustentabilidade é garantir a preservação das condições de sobrevivência para as próximas gerações. Foi exatamente isto que Amaral de Souza, Jair Soares e Pedro Simon não fizeram com sua “forma de governar”. Na aparência, eram governos rigorosos. Na prática, deixavam bombas armadas para o futuro.

A pergunta que fica é: como será que Marcelo Rech, tão crítico dos governos irresponsáveis e gastadores, classificaria estas três gestões? Não tenho como responder a esta pergunta com segurança. Mas tenho uma intuição. Que me é dada pela inflexão política do jornalista e do veículo para o qual trabalha. Acho que Marcelo – em consonância com seus colegas da mídia corporativa que disputa com Jovem Pan, Estadão e Record o título de “a mais conservadora do país” – consideraria pelo menos os governos Amaral de Souza e Jair Soares como sérios e responsáveis. Afinal, estes dois governadores apoiaram a ditadura militar, não é mesmo? …. Mas, devo confessar, essa assertiva é mera intuição. Certeza, mesmo, só tenho uma: a mídia charrua em geral – e a RBS em particular – reverencia mesmo apenas um governo. Justamente aquele que foi o pior governo das últimas décadas: o Governo Britto. Vejamos o porquê.

De Alceu Collares a Olívio Dutra: no meio do caminho houve uma pedra

O Governo Collares tem início na pior fase do pior Governo da Nova República (Bolsonaro é hors concour): o segundo ano do Governo Collor. A estratégia de combate à inflação pelo enxugamento radical da liquidez via congelamento de valores em todas as contas financeiras (inclusive conta corrente) havia naufragado. O país voltava à hiperinflação com um governo submetido a críticas acerbas pela corrupção e, por extensão, tentando demonstrar alguma seriedade às custas dos demais entes federados. Na verdade, o fim das negociações baseadas em conversas a portas fechadas e troca-troca de gravatas já começa no governo Collor. E apenas prossegue na gestão Itamar e FHC. Por isto mesmo, as opções abertas ao pedetista Collares para administrar a rolagem da dívida ficaram restritas àqueles instrumentos disponíveis no plano rigorosamente interno: o uso (e abuso) do (potente e eficiente) sistema financeiro público estadual. Nos termos de Juliana Bublitz:

Quando Alceu Collares (PDT) assumiu o poder, em 1991, a situação havia chegado a tal ponto que os títulos precisavam ser rolados diariamente. Era necessário oferecer prêmios de risco para que os investidores continuassem financiando o rombo. Muitas vezes, o ônus acabava recaindo sobre os bancos públicos. Todas as noites, o ex-secretário da Fazenda, Orion Cabral, esperava o telefone tocar, ansioso. — Fechou a posição? — perguntava. Era o jargão usado para saber se os operadores do Banrisul haviam conseguido renovar os títulos. — O estresse era tanto que engordei 12 quilos — recorda Cabral, hoje com 78 anos. Nesse período, o Estado foi proibido de lançar novos papéis, exceto para a rolagem. O Piratini conseguiu negociar com a União o pagamento de contratos de financiamento de longo prazo, mas a dívida em títulos se manteve, e a pressão também. — O clima era de terrorismo. Queriam que pagássemos nas piores condições. Mas eu sou de Bagé. Não me dobrei — afirma Collares, que chegou a apresentar uma proposta de federalização, sem sucesso. (Juliana Bublitz, Zero Hora, 10/08/2013)

Ao final do Governo Collares, um novo impacto: a adoção do Plano Real leva a uma elevação radical dos juros reais, como forma de garantir a ancoragem cambial da nova moeda. A partir do início dos anos 90, o crescimento acelerado da China deu origem a saldos comerciais positivos do Brasil com o resto do mundo e à acumulação de reservas cambiais. Desde então, o Brasil volta a ser um player no mercado financeiro internacional. E alcança canalizar recursos via Conta Capital (vale dizer, via empréstimos) sempre que necessita de divisas, elevando sua taxa de juros se de forma a superar as taxas de referência no mercado mundial (em especial, as taxas vigentes nos EUA, no Reino-Unido, na União Europeia e no Japão).

Ora, nos primeiros momentos do Plano Real emerge uma dúvida dos agentes financeiros privados nacionais sobre a sua sustentabilidade. E o ataque especulativo da “banca nacional” – sempre tão patriota! – é respondido pelo Banco Central com a imposição de taxas de juros que fariam qualquer usurário corar de vergonha. Nos termos de Juliana Bublitz:

Na década de 90, a dívida pública do Estado deu um salto com o fim da inflação e o início do Plano Real, em 1994. Em quatro anos, de 1994 a 1998, o valor mais do que duplicou em função da alta dos juros. (Juliana Bublitz, Zero Hora, 10/08/20130)

Collares foi vítima do lançamento do foguete dos juros, em 1994. E Britto arcou com o período subsequente. Mais uma vez, deliberações unilaterais do Governo Nacional impuseram uma elevação exorbitante da dívida do Estado do RS. Mas a mídia complacente e “fofa” (se nos permitem, mais uma vez, usar o vocabulário tão expressivo de Moisés Mendes para designar o senso comum que reina entre os jornalistas da “imprensa gaudéria”) acredita que o problema é nosso.

Afinal, quem tomou emprestado foi o Estado gaúcho. Se, depois, o governo federal impôs queda na arrecadação na Reforma Tributária de 1967 e nos 5 primeiros anos do PIS, se deu subsídio às exportações reduzindo a alíquota efetiva do ICM nos Estados exportadores e mais que dobrou a taxa de juro real para garantir uma taxa de câmbio hipervalorizada (asfixiando a economia dos Estados exportadores) é uma outra questão. São …. “coisas que acontecem”. Dívida é uma coisa sagrada. Vai fazer o dever de casa, gauderinho malcriado! E nem me vem com este papo humanista e populista de “saúde, educação e segurança”. O que importa é pagar a dívida! E Britto, formado na cultura RBS, vai fazer o dever de casa. Mas – como diria Marx – cum grano salis.

Britto vai privatizar a rodo (a começar pelas joias da coroa: CEEE e CRT), diminuir o sistema financeiro público (incorporando a Caixa Econômica Estadual ao Banrisul), pedagiar estradas, aumentar as alíquotas do ICMS e congelar salários. Mas, em compensação, vai transformar o RS no paraíso fiscal dos empresários meritocratas fazendo uma verdadeira farra com o Fundopem. O RS já era um pequeno “Paraíso Fiscal” em Belíndia (este país chamado Brasil que é metade Bélgica e metade Índia). Mas, com Britto, vamos muito além do já experienciado.

Em trabalhos do início dos anos 80, dois economistas já citados nos capítulos anteriores desta “saga” sobre o Rio Grande Amado, com amplo e profundo conhecimento das contas públicas, afirmavam que parte da dívida gaúcha se devia às isenções fiscais. Segundo Luís Carlos Bordin,

Estudos da Divisão de Estudos Econômico-Fiscais da Secretaria da Fazenda demonstram que, confrontando, nos últimos 10 anos, a arrecadação potencial, medida pelo valor adicionado, e a arrecadação efetiva, o Estado vem arrecadando menos da metade do valor potencial do ICM. Ora, este hiato, se analisado anualmente, é muito superior às operações de crédito contraídas. (Luiz Carlos Bordin; in Lagemann, Eugênio (org.), 1985, pp. 146 e 147; o negrito é meu)

De outro lado, a avaliação do ex-Secretário da Fazenda do Estado, Ario Zimmermann, realizada em outro artigo da mesma coletânea, é discretamente mais conservadora (logo veremos o porquê). Segundo Zimmermann

A diferença entre a base teórica de cálculo para arrecadar e o montante efetivamente pago é elevada. Segundo estimativas do Grupo de Estudos para Reforma Tributária, instituído pelo Conselho de Desenvolvimento dos Estados do Sul (CODESUL), as isenções representam 44,1% do potencial do ICM do Rio Grande do Sul no ano de 1981. (Ário Zimmermann, in Lagemann, Eugênio (org), 1985, p. 198)

Segundo Bordin, a arrecadação estadual é inferior à metade do potencial, algo como 45% do mesmo. Já segundo Zimmermann, as isenções corresponderiam a pouco menos de 45% do potencial. Como explicar esta diferença de 10% nas duas avaliações? Simples: pelas evasões fiscais, pelos tributos devidos, mas não recolhidos em função de carências no sistema de fiscalização. O que importa é que o Estado abria mão, de uma forma ou de outra, de pelo menos metade de seu potencial de recolhimento.

Ora, já vimos que o elevado grau de isenção fiscal emerge no RS como resposta aos benefícios concedidos pelo Governo Federal à indústria do Sudeste, durante o período 30-64. Igualmente bem, vimos que o endividamento do Estado se descola do padrão dos demais Estados neste mesmo período, pois os subsídios concedidos são contraditórios com a necessidade de criação de uma infraestrutura logística e energética capaz de garantir competitividade para a produção gaúcha.

Porém, a realidade que impôs este quadro de elevados subsídios já havia mudado. Ao longo do tempo, a indústria do RS encontrou seu nicho de especialização e adquiriu competitividade, seja por determinações internas (ganhos de escala e expertise tecnológica em suas áreas), seja por determinações externas (consolidação e qualificação da infraestrutura de transporte e energia). O que caberia fazer neste momento? Avaliar as possibilidades de redução dos incentivos fiscais através de uma análise detalhada dos gargalos que ainda se interpunham à consolidação competitiva de cada setor e/ou cadeia produtiva específica. Um exemplo pode ajudar na compreensão do quadro.

Apesar de não contar com nenhuma montadora de automóveis, o RS era o segundo parque automotivo do país, em função de sua indústria de ônibus, caminhões, tratores, colheitadeiras. Some-se a isso a ampla produção de implementos agrícolas, silos para armazenagem de grãos e máquinas para as indústrias calçadista e alimentar e teremos o segundo parque demandante de lâminas de aço do país, superado apenas por São Paulo. Não obstante, o RS não contava – e não conta! – com nenhuma laminadora de aço em seu território. Este é um gargalo evidente do amplo e representativo setor metalmecânico gaúcho. Para piorar a história toda, com a onda privateira de Collor (Usiminas) e FHC (CSN, Cosipa, etc.), foi desmantelado o sistema Siderbrás; e, com ele, a garantia de preço único para as lâminas de aço vendidas em todo o território nacional. Vale esclarecer: como já vimos, nos anos dourados do desenvolvimentismo, o governo federal implantou as grandes siderúrgicas nacionais na região Sudeste do país. Mas, posteriormente, tentando impedir a excessiva concentração industrial nesta região, definiu um preço único para as lâminas de aço, de sorte a não inviabilizar a competitividade das empresas consumidoras de aço sediadas em outros territórios. O RS (em função do grande setor metalmecânico) e o Amazonas (em função do Polo Industrial de Manaus) eram os principais beneficiários desta estratégia. Que soçobra com as privatizações.

Pergunta retórica: o que deveria fazer um governo estadual com sérios problemas de endividamento ao se deparar com um golpe perpetrado sobre algumas de suas cadeias produtivas mais importantes e agregadoras de valor? Resposta óbvia: atrair uma laminadora para o território. O que seria extremamente simples. Afinal, o RS era o segundo principal demandante de lâminas de aço do país. Não obstante, o Governo Britto tinha o mesmo DNA do Governo FHC. E também tinha os seus devaneios em criar ex nihilo (ou quase nihilo) novos capitães de indústria em setores que não lhes eram naturais. FHC criou “grandes empresários”, como Benjamin Steinbruch, que, herdeiro das tecelagens do Grupo Vicunha, emerge como o rei do aço com a aquisição da CSN e o primeiro CEO da Vale do Rio Doce após sua privatização histórica e memorável (pela subestimação de suas reservas e de seu valor de mercado). Britto queria transformar a maior produtora de aços longos do Brasil – o Grupo Gerdau – em uma empresa metalúrgica diversificada. E buscou convencer a empresa a construir uma laminadora em nosso Estado, impulsionada por grandes subsídios. A estratégia do governo quase deu certo, e, em 1998, a Gerdau chegou a anunciar a construção da nova laminadora, num empreendimento que seria levado à frente juntamente com a Marcopolo. Contudo, a empresa volta atrás desta decisão ao se aperceber (ou ser informada?) de que o período de “real forte” do primeiro mandato de FHC estava para espirar e que o segundo mandato teria início com o fim da ancoragem estrita do real ao dólar. Assim sendo, 1998 era o último ano para “aquisições baratas” no exterior. E a Gerdau decide adquirir uma laminadora argentina. O problema é que o governo Britto já havia descartado uma proposta de instalação, no território gaúcho, de uma laminadora controlada pela maior empresa siderúrgica do mundo: a ArcellorMittal, que acabou por conquistar o apoio que demandava do Governo de Santa Catarina, onde instalou a planta Vega, em São Francisco do Sul, no extremo norte deste Estado.

Qual foi a reação do Governo Britto para garantir a competitividade de nossa indústria metalmecânica? Passou a arcar com os custos de transporte das lâminas de aço adquiridas pela indústria interna. E isto segue em curso até hoje: quem paga pelo transporte das lâminas de aço adquiridas pelos mais diversos setores da segunda indústria metalmecânica mais importante do país são os contribuintes do Tesouro do Estado quando adquirimos mercadorias e pagamos ICMS. Quanta eficiência, não é mesmo? Mas isto não é nem o início da história dos grandes equívocos do Governo Britto.

Britto tinha uma obsessão: a “modernização” da estrutura produtiva gaúcha. Com a arrogância que tanto caracteriza nossos jornalistas, que reputam sabedoria extrema ao seu amplo e profundo domínio do senso comum, Britto “sabia” que nossa estrutura produtiva era tradicional, tosca e (por que não dizer?) brega. Afinal, quais eram os setores mais importantes da indústria gaúcha? Calçados, mobiliário, máquinas e implementos para a agricultura (irc!), tabaco, indústria de alimentos (com ênfase em proteína animal e derivados de soja, trigo e arroz), vitivinicultura e indústria de vestuário. Na concepção de Britto, estes setores eram, todos, atrasados. Aparentemente, o fato de que a produção de lácteos (parte da indústria de proteína animal) envolvesse uma indústria de ordenhadeiras mecânicas automatizadas ou que a cadeia calçadista desse sustentação à fabricação de máquinas de controle numérico para cortes de solados, de couro e de outros materiais para calçados passava despercebido para Britto e seus assessores diretos. Assim, era preciso mudar radicalmente a nossa estrutura produtiva.

Uma das ideias mais “jeniais” (com J, mesmo) do Governo Britto foi agregar valor à produção de tabaco. De uma certa feita, durante o Governo Olívio Dutra (no qual trabalhei ocupando postos em três Secretarias de Estado: Geral de Governo, Desenvolvimento e, por fim, Planejamento) tive a oportunidade de debater com o ex-Secretário da Fazenda de Antônio Britto, o querido amigo (infelizmente, já falecido) Cézar Busatto num evento na Federasul. Na oportunidade, Busatto me questionou:

Paiva, tu certamente sabes que o RS é o maior produtor de tabaco do Brasil. Tu achas correto que, a despeito deste fato, nós não tivéssemos uma única fábrica de cigarros no Estado?

Respondi prontamente:

Caro amigo Cézar, tu, por um acaso, te deste ao trabalho de perguntar aos diretores das fábricas de cigarro no Brasil por que de tamanha burrice e irracionalidade? Por que eles nunca se aperceberam que o melhor lugar para instalar uma fábrica de cigarros seria o RS? … Certamente não. Pois se tivesses perguntado, obterias uma resposta tão simples quanto definitiva. Ocorre, Cézar, que um container de tabaco prensado é transformado em dez containers de cigarro. Uma carteira de cigarro, é uma folha de fumo cheia de ar. Não faz o menor sentido produzir cigarros no RS para transportá-lo até o Pará. O lugar onde devem ser produzidos cigarros é no centro do país, próximo aos principais polos consumidores. Não no RS, próximo da produção de tabaco. Tão logo cesse o Fundopem turbinado que vocês deram para atrair as fábricas de cigarros, elas migrarão, novamente, para o seu local natural: Minas Gerais, Rio de Janeiro e Goiás.

Mas há um detalhe que eu não cheguei a comentar com o amigo Busatto neste memorável debate. Mas que comento agora. Enquanto os cigarros eram produzidos no seu lugar devido, de acordo com a opção locacional economicamente racional, ao ingressarem no RS, o Estado arrecadava ICMS sobre cigarros. E o valor era expressivo. Pois o ICMS não é apropriado integralmente pelo Estado onde a produção é realizada se o consumo se realiza em outra Unidade da Federação. Quando a produção é em Minas Gerais (maior produtor de cigarros do Brasil) mas o consumo é no RS, o ICMS é dividido entre o Estado produtor e o consumidor. Assim, o RS auferia um valor não desprezível de impostos enquanto não interferia (indevidamente) na lógica empresarial de maximização de lucros. Ao atrair a Souza Cruz e a Philip Morris para o RS, concedendo completa isenção de ICMS e, ainda por cima, apoiando os investimentos das duas empresas com concessões de terrenos e infraestrutura, o Estado deixou de arrecadar e gastou em obras desnecessárias, que logo seriam sucateadas. Não é Jenial? Sim. É Jenial. Mas ainda é apenas a ponta do iceberg. Há mais para contar.

A estrutura do Fundopem está baseada num princípio: apoia-se o investimento em criação ou ampliação de capacidade. Isto significa o seguinte: se um determinado segmento industrial não existia no RS, ao atrair uma empresa para produzir internamente, os produtos que passarão a ser produzidos internamente serão (a princípio, sujeito a exceções) objeto de taxação de acordo com as regras fiscais vigentes. Porém, o recolhimento efetivo do ICMS não será feito imediatamente, mas após um longo período de carência. E, quando este pagamento vier a se realizar (mais uma vez, como regra geral, sujeita a exceções), ele não será objeto de correção monetária ou juros: os valores pagos de forma diferida serão os valores devidos nominalmente na data da origem do evento.

Isto significa dizer que, para as empresas de setores novos, inexistentes até então – como a produção de cigarros e de automóveis de passeio – as vantagens são deveras significativas. Ainda que elas impactem negativamente sobre o erário, que deixa de receber a parcela do ICMS que lhe seria devido quando da importação dos bens de outros Estados. A questão é: como fica o recolhimento do ICMS para empresas que já estavam instaladas no RS e que estão apenas realizando uma ampliação de suas instalações?

A regra do Fundopem era clara: neste caso, o valor do ICMS cujo pagamento será diferido corresponderia apenas e tão somente àquela parcela do faturamento da empresa que excedesse o faturamento médio prévio aos investimentos. Imaginemos uma empresa que faturasse R$ 100 milhões antes da concessão do Fundopem, e que este faturamento correspondesse a um Valor Agregado de R$ 50 milhões (vale dizer: se os outros R$ 50 milhões de faturamento correspondessem ao custo dos insumos). Suponhamos, ainda, que a alíquota do ICMS sobre este setor fosse de 15% sobre o Valor Agregado. Neste caso, a empresa deveria estar contribuindo com R$ 7,5 milhões para o erário do Estado. Suponhamos, agora, que, ao realizar um determinado investimento, a ampliação de sua capacidade produtiva a levasse a duplicar a produção e, portanto, a faturar R$ 200 milhões, gerando um valor agregado de R$ 100 milhões. O Fundopem garantiria um abatimento na arrecadação imediata sobre o Valor Agregado Extra (a parcela marginal), nos R$ 50 milhões a mais que ela passou a produzir. Suponhamos que o Fundopem concedido garantisse um abatimento de 10% na alíquota incidente sobre a produção acrescida durante 10 anos. Isto significa que a empresa passaria a contribuir com R$ 10 milhões para o erário; sendo R$ 7,5 milhões referidos à produção prévia ao novo investimento (alíquota de 15%) e R$ 2,5 milhões sobre o valor agregado acrescido (alíquota de 5% sobre os R$ 50 milhões a mais).

Ora, é impossível negar que este é um sistema de apoio ao investimento que conta com alguma racionalidade. Desde que: 1) sua operação efetiva corresponda às regras formais que o orientam; e que 2) o apoio ao investimento esteja centrado na ampliação da capacidade produtiva e oferta efetiva de empresas e setores já instalados no Estado e cuja produção era inferior à demanda dos elos à jusante (os clientes, compradores) das cadeias produtivas cuja competitividade e lucratividade se buscava ampliar. O problema é que nenhum dos dois quesitos foram respeitados pelo Governo Britto.

Em primeiro lugar, este governo privilegiou a atração de novas empresas e setores, ao invés de qualificar e ampliar a produtividade e competitividade de cadeias já existentes. Ao atrair novas empresas, de setores que não existiam na economia gaúcha, o Governo Britto abriu mão da contribuição que as mesmas pagavam ao erário estadual quando seus produtos (como cigarros e automóveis) eram adquiridos de outras Unidades da Federação. Mas isto, mais uma vez, ainda é só ponta do iceberg. O ponto central – e o aspecto mais chocante – ainda é outro.

A verdade é que, mesmo aquelas firmas já instaladas no Estado, que já produziam na indústria estadual, foram beneficiadas com o Programa do Fundopem durante o Governo Britto de tal forma que passaram a pagar menos ICMS do que pagavam antes dos novos investimentos. Como isto foi possível?

Simples. O processo de demanda por Fundopem era controlado pela Secretaria do Desenvolvimento e Relações Internacionais (com apoio e monitoramento da Casa Civil) durante o Governo Britto. Quando as demandas chegavam a estas Secretarias, os empresários tinham de declarar qual era a contribuição média de suas empresas ao erário nos últimos anos. E, simultaneamente, qual era a projeção de aumento do faturamento e do valor agregado nos anos subsequentes, após a realização dos investimentos e da ampliação da capacidade produtiva.

Averiguar a veracidade destas declarações era algo extremamente simples. Bastava repassá-las à Secretaria da Fazenda e averiguar se elas eram consistentes com os dados da Receita Estadual. Porém, por razões ignoradas e não sabidas, isso nunca foi feito. Os gestores do Fundopem durante o Governo Britto admitiam, por princípio, que os empresários eram incapazes de mentir, ocultar ou adulterar informações fiscais. Todas as declarações empresariais sobre os valores médios de contribuição das empresas foram admitidas, por princípio, como verdadeiras, válidas e fidedignas.

No início do Governo Olívio Dutra, foi criada uma Comissão para analisar os contratos de Fundopem do Governo Britto. Os problemas encontrados foram tamanhos que a Comissão se manteve operativa por todos os quatro anos do Governo Olívio. Ao fim e ao cabo, todos os contratos, sem uma única exceção, foram revistos. Pois havia “problemas” (e ilegalidades) em todos. Todas as empresas beneficiadas foram notificadas. Todas elas vieram para a mesa de (re)negociação e acordaram novas (e legítimas) cláusulas. Todas, sem exceção, reconheceram os problemas identificados. Estes procedimentos foram fundamentais para a melhoria da situação fiscal do Estado do RS a cada um dos anos da gestão de Olívio Dutra.

Porém, no início da gestão Germano Rigotto, foi enviado um projeto para a Assembleia Legislativa que tinha por objeto alterações no Fundopem. A justificativa do Projeto de Lei era a necessidade de ampliar as vantagens para investimentos e instalação de empresas industriais na Metade Sul. Lá pelas tantas, surgiu uma nova cláusula no Projeto de Lei. O que ele previa? … Nada demais. … Tão somente determinava que todos os contratos de Fundopem firmados durante o Governo Britto voltavam a viger em seus termos originais. E que as mudanças acordadas durante o Governo Olívio Dutra, que ampliavam a arrecadação estadual e deprimiam as isenções ilegais, passavam a ser letra morta.

Ainda bem que temos governos probos e responsáveis, não é mesmo Marcelo Rech? Como os governos Britto e Rigotto, que ao invés de deprimirem as isenções fiscais (quando isso já era possível!) as ampliaram. E o fizeram para além da legalidade. Que já era farta e ampla. Realmente, não há o que não haja.

O último capítulo desta saga será dedicado a três temas: 1) as similaridades dos acordos assinados por Britto e Leite para a rolagem da dívida do RS com o Governo Federal; 2) as diferenças qualitativas das políticas de desenvolvimento gaúcho dos governos Olívio, Rigotto, Yeda, Tarso, Sartori e Leite; 3) o tratamento dado pela mídia gaudéria a estas políticas. Posso até estar enganado. Mas tenho para mim que o problema não é só de conservadorismo. É de ignorância mesmo.


*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).

Este é o terceiro texto da série de Carlos Paiva intitulada A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS. O próximo e último será publicado ao longo desta semana.

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