Opinião
A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS – PARTE 1
A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS – PARTE 1
De CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
Justiça é tratar de forma igual os iguais e de forma desigual os desiguais na medida de sua desigualdade. Aristóteles. Ética a Nicômaco
Chamar o governo do PT de um governo de esquerda stricto sensu é uma impropriedade do ponto de vista do vocabulário. Ele é um governo de centro, de frente-ampla antifascista. Reinaldo de Azevedo. Eu me dou ao direito de mudar de ideia – entrevista a Marco Antônio Villa (14’27’’)
⦁ Introdução
Entre os dias 4 e 20 de julho de 2022, a Rede Estação Democracia (RED) e as Faculdades Integradas de Taquara (Faccat) realizaram aquele que, do meu ponto de vista, foi o mais importante Seminário sobre Planejamento e Desenvolvimento Regional do RS. Mais de 60 palestrantes avaliaram as venturas e desventuras das políticas econômicas de promoção do desenvolvimento global, enfrentamento das desigualdades regionais e equacionamento dos desequilíbrios fiscais. O grupo de debatedores envolveu desde o ex-Presidente da Fundação de Economia e Estatística nos idos tempos de Amaral de Souza e Jair Soares, até o Secretário Adjunto da Fazenda no Governo Leite, passando por ex-Vice-Governadores, ex-Secretários das mais diversas pastas (Fazenda, Planejamento, Ciência e Tecnologia, Desenvolvimento, etc.), professores Universitários vinculados a pesquisas sobre dinâmicas regionais, lideranças do Fórum dos Coredes, dirigentes municipais renomados por práticas bem sucedidas de planejamento, e pensadores de expressão nacional e internacional acerca da questão do desenvolvimento local e regional. Os resultados deste Seminário (que se encontra integralmente preservado em vídeos), dentro em pouco terão sua divulgação na forma de um e-book que será lançado pela Editora Conceito e pela Faccat com apoio da RED. Eu tive o enorme prazer de ser o Coordenador Técnico deste grande evento; pensado e projetado pelo amigo Benedito Tadeu Cesar, que respondeu pela Coordenação Geral do mesmo.
Não resta dúvida de que o Seminário foi um sucesso e que a preservação de sua memória em livro ainda vai dar base para novas reflexões e discussões sobre os destinos, desatinos, caminhos e descaminhos do RS nos últimos 40 anos.
Porém, olhando agora o debate realizado no ano passado pelo retrovisor não posso deixar de reconhecer uma falha no mesmo: a ausência de uma reflexão mais aprofundada sobre o processo de reconquista da hegemonia conservadora e neoliberal no RS nas duas últimas décadas e, acima de tudo, pelo papel cumprido pela grande imprensa gaúcha nesse processo.
A primeira mesa temática do Seminário acima referido foi um painel sobre o desenvolvimento socioeconômico do RS, seus desafios e potencialidades. O primeiro palestrante desta mesa (realizada no mesmo dia e local da Mesa de Abertura) foi o economista e jornalista Paulo Timm. Sua exposição tem início à 1 hora e 20 minutos deste vídeo, e está centrada nas peculiaridades da formação socioeconômica gaúcha e, por extensão, no papel do Estado e do Planejamento Público na construção daquele que viria a ser, ao longo de mais de um século, o segundo Estado mais industrializado do país; à frente de Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia, Santa Catarina, Pernambuco e Paraná. E se é inconteste que, desde o último quartel do século XIX, São Paulo se transformou no centro dinâmico (a “locomotiva”) da economia nacional alcançando, em poucos anos, a posição de maior PIB brasileiro, também é inconteste que, em termos de indicadores de desenvolvimento humano (alfabetização, educação, longevidade, distribuição de renda e da propriedade fundiária, etc.), o RS manteve-se, ao longo da maior parte do Século XX, ou à frente, de São Paulo, ou disputando a primazia com nossa “locomotiva”.
Com apoio nas pesquisas de alguns dos melhores analistas do processo histórico de desenvolvimento econômico gaúcho – em especial, Luiz Roberto Targa e Ronaldo Herrlein – Paulo Timm demonstra que o peculiar dinamismo da nossa economia não se baseou (como em São Paulo) na identificação e exploração de um nicho de mercado – o café – cujo potencial de demanda externa era muito grande e o Brasil contava com vantagens competitivas estruturais. Nem se deu sobre qualquer outra vantagem natural ou locacional. A chave do desenvolvimento gaúcho foi o planejamento público, consolidado nas quatro primeiras décadas republicanas, de Júlio de Castilhos a Getúlio Vargas, passando por Borges de Medeiros.
Com a Revolução de 30, a expertise de políticos e burocratas gaúchos em gestão e planejamento público foi “exportada” para o restante do Brasil. E se manteve viva e pujante até a gestão Brizola. Durante a Ditadura Militar, houve uma grande concentração de recursos e de poder no governo central, deprimindo a autonomia regional e, por consequência, o próprio estímulo para o desenvolvimento de competências. Mas, com alguns percalços, sobreviveu alguma capacidade de planejamento e gestão até, pelo menos, o primeiro governo Guazelli. O verdadeiro descalabro começa depois.
⦁ O papel da mídia “charrua” na construção do falso consenso
Dizer que as competências públicas para o planejamento e a gestão viveram um processo secular de deterioração não é o mesmo que pretender que todos os governantes nos últimos 40 anos foram maus gestores. Absolutamente, não. Ocorre, contudo, que os governos que mais fizeram pelo desenvolvimento do Estado e pelo equacionamento das finanças públicas, são tratados, sistematicamente pela mídia “charrua” como irresponsáveis e gastadores. Enquanto os governos que ajudaram a levar o Rio Grande Amado para o fundo do poço, são incensados como os salvadores da pátria e da lavoura. A questão que nos interessa entender aqui é o porquê de tanta distorção da realidade. Trata-se de ideologia arraigada ou mera ignorância?
Jornalistas renomados que vêm se dedicando ao tema – dentre os quais se destaca minha ex-aluna e querida amiga Juliana Bublitz – tendem a associar de forma direta nossos problemas crônicos de crescimento e desenvolvimento aos déficits crônicos e à dívida acumulada. Não vejo a questão exatamente da mesma forma. Deixo para explicar meu ponto mais adiante. Mas entendo que quem abraça esta perspectiva tem o dever de analisar a fundo e no detalhe quais foram os governos que trouxeram o RS para o estado fiscal e financeiro atual. Mas não é isso que acontece. Num determinado momento da matéria Como se originou a dívida do RS , Juliana declara:
“…não há um único culpado. É o resultado de uma combinação crônica e perniciosa de gastos excessivos, descontrole a apostas erradas, cujos efeitos foram potencializados por crises econômicas nacionais e internacionais.”
Alguém pode discordar dessa afirmação? Evidentemente não. Quem poderia pretender que uma dívida de bilhões de reais pudesse ter um único “culpado” por sua constituição. Quem pode negar que há fatores internos, nacionais e internacionais na estruturação da mesma? Lida de uma certa forma, a frase não passa de uma tautologia. Porém, ela também pode ser interpretada como uma generalização indevida. Sub-repticiamente, somos induzidos a pensar que todos os governos, sem exceção, erraram. E o fizeram exatamente da mesma forma: gastando demais. Nesse caso, Juliana precisaria nos responder duas questões:
⦁ Onde mesmo que houve os tais gastos excessivos? Na Educação? Na Saúde? Na Segurança? No transporte coletivo? Na infraestrutura? Ou com prebendas, sinecuras e corrupção? Em todas estas áreas simultaneamente? E todos os governos foram iguais e devem ser igualmente responsabilizados? ….
⦁ O problema é sempre de “gastos excessivos”? Não poderia ser, também, de arrecadação insuficiente? Qual o nível de desoneração da economia gaúcha? Por que os dados do Fundopem não são abertos à sociedade? Por que nem mesmo o Tribunal de Contas do Estado tem acesso a estas informações? Qual é a evasão fiscal no RS? Isto não é um problema?
Na sequência, ainda na introdução geral do mesmo artigo, Juliana entrevista e cita dois economistas: João Batista Soligo Soares, do (TCE) e Liderau dos Santos Marques Jr. (ex-FEE; atual DEE). João Batista declara que o RS é
“como aquele parente que todo mês, há anos, gasta mais do que recebe, faz novas dívidas e não consegue mais sair do buraco. Estamos pagando pela existência do Estado no passado”.
Numa pequena frase, duas grandes teses; ambas, totalmente descabidas: 1) o Estado pode ser comparado a um “parente oneomaníaco” (com compulsão ao gasto); e 2) a dívida de hoje é o custo da existência do Estado ontem. Onde estão os erros? O Estado não é como uma família. Muito menos um parente em permanente crise de insanidade. Primeiro porque, quando ele gasta (com salários ou aposentadoria, por exemplo, seus dois maiores dispêndios), ele estimula o consumo e arrecada mais ICMS. Ao gastar, aumentam suas receitas. A isto se chama “efeito multiplicador do gasto”. E o maior efeito multiplicador da economia gaúcha é, justamente, aquele associado aos gastos do governo. Além disso, um parente quebra – e pode ser interditado para não quebrar. O Estado não. Na pior das hipóteses, pode aumentar a arrecadação lançando novos impostos. Por fim, o Estado não é “descartável”. Não é algo “cujo custo” possamos não cobrir. Alguém que possamos interditar ou, no limite, internar para tratamento. Desde logo, porque seus gastos não são supérfluos. Ele não gasta com bebidas, drogas, sexo, rock and roll e consumismo. Ele gasta com salários e equipamentos para a operação dos serviços públicos básicos que atendem à população em geral: Saúde, Educação, Segurança, Justiça, Regramento e Legislação, Políticas de Desenvolvimento Regional, etc. Pergunto novamente: em que ponto, em que momento, os gastos com essas áreas se tornaram “excessivos”?
Já, segundo Liderau,
“durante décadas …, a estratégia foi gerar déficits (despesas maiores que receitas). Era relativamente fácil fazer empréstimos e não havia maior preocupação em relação a isso, porque nas horas de extrema aperto era possível contar com o socorro da União. Isso só começou a mudar em 1994, com a estabilização econômica, e em 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal.”
Em suma: até FHC, vivíamos o festerê da imprevidência. Com a chegada do Príncipe dos Sociólogos ao poder, atingimos o Estado de graça. Claro que isto teve uma que outra consequência perversa. Como, por exemplo, o endividamento galopante dos Estados e a incapacidade de alguns deles cumprirem com suas obrigações com a sociedade. Mas isto é somenos importância. O único que importa é que a baderna acabou.
O Governo Federal não deu as condições para que os Estados cumprissem suas obrigações. Apenas impediu os Estados de gastarem demais, subtraiu recursos pela lei Kandir, colocou os juros lá em cima (para garantir a ancoragem cambial do real) e exigiu que os Estados cumprissem suas obrigações constitucionais com a sociedade, sem recursos próprios, e sem poder se endividar. E Liderau trata dessas consequências como se fossem “danos colaterais”. Não, não são colaterais. São danos centrais.
Mas João Batista e Liderau têm todo o direito a terem suas próprias leituras e as defenderem. Meu ponto central é outro. Por acaso esta é “A” (artigo definido singular) visão dos “economistas”? Não há visões alternativas? Será mesmo que a Economia é uma ciência tão insossa e tão exata que não admite sequer aquelas polêmicas básicas que dividem – por exemplo – a Física, sempre às voltas com a necessidade e as dificuldades de integrar relatividade geral e física quântica? No mundo da Economia todos concordam em tudo e há sempre uma única e mesma resposta? Ou será que a nova geração de jornalistas está perdendo a capacidade de investigar e esquecendo o princípio mais elementar desta importante profissão: se há versões contraditórias, a equidistância e a dúvida metódica exigem que todas elas sejam apresentadas para bem informar o leitor? E, acima de tudo, qual a influência dos nossos “jornalões” nessa perda de capacidade?
⦁ Para além do Rio Grande Amado: a evolução da mídia em outros Estados
É público e notório que os jornalões brasileiros são de um conservadorismo extremo e não primam pelo respeito à verdade. Não gratuitamente, o Brasil encontra-se usualmente abaixo da mediana de liberdade de expressão segundo o ranqueamento dos Repórteres Sem Fronteiras. Os dois quesitos que nos rebaixam sistematicamente são a violência que incide sobre repórteres investigativos (que, no limite, levam ao assassinato dos mesmos) e a censura interna dos jornalões à livre manifestação de opiniões dos jornalistas. O caso é seríssimos e conta com amplo reconhecimento internacional. Contudo – e apesar das aparências em contrário – há mudanças em curso.
A Lava-Jato – com todas as suas ilegalidades, estrepolias e loucuras – não teria sido possível sem o apoio insensato da mídia reacionária. O casamento de um discurso oportunista contra a corrupção – com prisões espetacularizadas de empresários e políticos – e a divulgação permanente, efusiva e festiva destes eventos pela mídia alimentou uma verdadeira “onda” fascista no país; cujo resultado foi a eleição de Bolsonaro.
Ora, mesmo aqueles que saudaram a “onda” em seus primórdios foram percebendo, pouco a pouco, que “havia gato na tuba”. A face política do “juiz” – que já era visível em conduções coercitivas ilegais e em seu padrão de atuação como promotor em todo o processo – foi evidenciada quando Sergio Moro largou a magistratura para ser Ministro de Bolsonaro. Mas, se alguém ainda tinha alguma dúvida legítima, elas não poderiam sobreviver à Vaza-Jato, comandada por Glenn Greenwald e The Intercept Brasil a partir de 2019.
As revelações da Vaza-Jato são um “corte epistemológico” na interpretação que o Brasil pode e deve fazer de si mesmo. Se alguém tinha o direito de ter dúvidas de que o caso Lavo-Jato era puro lawfare, este alguém deixou de tê-lo após o evento. O mínimo que se exige desde então de uma pessoa sem “certezas ideologicamente pré-concebidas” é a imposição da dúvida. Uma dúvida que, por inúmeras razões, teria que ser minada desde dentro nos anos que se seguiram. A começar pelas práticas de Bolsonaro que levaram ao afastamento (até) de Sergio Moro do Ministério pelo fato deste último defender alguma (pouca) autonomia para a Polícia Federal, passando pelas revelações mais recentes de todas as prevaricações do pobre sujeito (do extermínio Yanomami, às joias do Oriente Médio, passando pelo cartão de vacina, pelas aquisições milionárias de chuleta e linguiça calabresa para povos indígenas que nunca chegaram ao seu destino e pelas próteses penianas dos militares).
É possível perdoar quem não viu esta dimensão aética, corrupta, miliciana, menor, vulgar, medíocre e antissocial de Bolsonaro até 2019? Eu, particularmente, acredito que sim. A mídia nacional tem uma capacidade de lavagem cerebral que é única. Foram anos de oposição sistemática e fakenews divulgadas em todos os horários. Em especial, nos horários nobres. Junte-se o apoio das Igrejas Pentecostais, o Orçamento Secreto e as barras de ouro para intermediar recursos para a “educação” nas prefeituras, e teremos o caldo de cultura da (pseudo)ignorância. Mas o fato de ainda existirem fãs de Bolsonaro, Moro e Dalagnol dentre os “tios e tias do zap” e/ou dentre os militares formados pela AMAN e suas “conjes” não justifica que tantos “intelectuais e jornalistas investigativos” ainda pretendam que “Lula não demonstrou sua inocência” ou que (na melhor das hipóteses) “Lula e Bolsonaro são duas faces da mesma moeda”.
É bem verdade que os grandes jornalões do país – especialmente os de São Paulo; vulgo Tucanistão – não fizeram qualquer autocrítica pública do apoio à Lava-Jato, ao impeachment de Dilma e à prisão de Lula. Mas, de outro lado, não há como negar uma sutil inflexão da grande mídia nacional. Há algum tempo que as organizações Globo estão suavizando seu antipetismo. Assim como a própria Veja. Até mesmo a Jovem Pan – que chegou a demitir Reinaldo de Azevedo por suas críticas à Lava-Jato e a Marco Antônio Villa por suas críticas a Bolsonaro – agora está afastando dos seus quadros a turma fascista mais raivosa (nem que seja para evitar processos por fakenews) E, dada a expressão e o público cativo de Reinaldo e Villa, eles foram contratados, respectivamente, pela Bandeirantes e a CNN como âncoras de programas de grande sucesso.
Já na mídia “charrua” a coisa vai como sempre: de vento em proa; só de ré. Nos recentes “anos de chumbo”, em que os líderes da República foram Eduardo Cunha, Michel Temer e Jair Bolsonaro, a Zero Hora demitiu Luís Fernando Veríssimo e Moisés Mendes, os derradeiros cronistas de esquerda de sua bateria “de uma nota só”. Enquanto isso, o Correio do Povo e a Rádio Guaíba demitiam e calavam Juremir Machado da Silva. Ora, direis, ouvir Juremir. Certo é que perdeste o senso! … Não. Não perdi. Juremir dá uma no cravo e outra na ferradura. Privilegia sua fama de enfant terrible a qualquer coerência. Porém, não obstante, todavia, contudo, é preciso reconhecer duas coisas: 1) com todas as suas idas e vindas, Juremir mostrou-se insuportável para o grupo editorial do Bispo Macedo; 2) ele é um jornalista que – como Reinaldo de Azevedo ou Marco Antônio Villa – conta com um público expressivo e é capaz de atrair leitores, audiência e recursos. Porém, a mídia “charrua” não é apenas conservadora. Ela é chucra. E. ao invés de recontratar seus cérebros privilegiados, prefere contratar J.R Guzzo. Para se ter ideia de quem seja, vale lembrar um de seus textos mais recentes na ZH, intitulado A Casa Caiu, que começava assim:
Desde o começo, a história do 8 de janeiro pareceu esquisitíssima. Depois de três meses de esforços desesperados do governo Lula e de seus aliados para esconder a verdade, a casa caiu. Imagens publicadas pela CNN mostram o general Gonçalves Dias, homem da confiança de Lula, em atitude de colaboração com os invasores que vandalizaram o Palácio do Planalto no dia 8 de janeiro. A “tentativa de golpe” e os “atos terroristas” tiveram a participação, incentivo ou cumplicidade de agentes do governo. É por isso que Lula e o PT lutaram com tanta ferocidade para impedir a CPMI sobre o que realmente aconteceu.
Creio que eu posso me dar ao direito de não fazer qualquer comentário sobre um tal devaneio sádico-onírico. Quando o autor de um texto não consegue mais diferenciar a sua vontade de ver algo, daquilo que realmente se sucedeu, é porque o princípio da realidade se rendeu integralmente ao princípio do prazer. Neuróticos criam castelos no ar. Psicóticos os habitam. Quando a mídia “charrua” demite gênios como Veríssimo e dá voz a moradores do Castelo de Kafka, que futuro você projeta para o Rio Grande Amado? Do meu ponto de vista, um futuro bastante triste.
E não só em função dos moradores do Castelo. Mesmo pessoas inteligentes e com formação sólida parecem ser tragadas pelo senso comum da mídia conservadora e chucra. Assim é que, num outro artigo, intitulado Afinal, a dívida do RS com a União já foi paga?, Juliana Bublitz faz uma (nem tão) discreta defesa do Regime de Recuperação Fiscal afirmando:
O que vale para o RS vale para os demais. …. O fato é que qualquer revisão por parte do Congresso, da União ou do Supremo Tribunal Federal envolve o todo – e não apenas o Rio Grande do Sul. Por isso é tão difícil obter o perdão da dívida ou um amplo abatimento do saldo. Isso precisa ser levado em conta no debate em torno do Regime de Recuperação Fiscal. (Juliana Bublitz, ZH, 09/05/2022)
Juliana tem Doutorado em Desenvolvimento Regional. E o princípio primeiro do Desenvolvimento Regional é reconhecer que um mesmo movimento histórico traz consequências distintas para territórios distintos. Juliana tem uma sólida formação em História. E a História nos ensina que movimentos similares trazem consequências distintas quando efetivados em momentos distintos. Por isso mesmo, a cada artigo seu que leio, não consigo deixar de me afligir e me entristecer com suas crescentes concessões ao padrão narrativo RBS. Na RBS de hoje só vicejam dois tipos de “jornalistas”: o direitão truculento (na linha J.R.Guzzo) e o defensor de teses fofas e anódinas, típicas do senso comum. E me dá uma vontade maluca de gritar para Juliana o que o pai de Maddy gritava para sua filhinha sequestrada por espíritos malignos em Poltergeist: “Não vá para a luz, Juliana, não vá para a luz.”
⦁ A História da Crise Fiscal: bem além do senso comum dos jornalões gaudérios
Logo após a Introdução do artigo Como se originou a dívida do RS, Juliana Bublitz apresenta um Quadro-Mapa do Brasil com informações sobre a relação entre “dívida x receitas” que tem algo de “assustador”. O Quadro-Mapa está reproduzido abaixo.
Ora, se seguirmos as pistas dadas até agora por Juliana, João Batista e Liderau não há como deixar de chegar à conclusão de que o RS é o Estado com a pior gestão do Brasil. É um gastador impenitente, incapaz de planejar e – como gostam de dizer os arautos do senso comum – de “fazer o dever de casa”. O RS é um “parente-garotinho mal comportado”. O problema, contudo, é que a história contada por Juliana e a história real são muito diferentes. Para entender a peculiaridades da nossa dívida é preciso recuar no tempo, para muito antes da crise econômica que leva à queda da Ditadura Militar. Vamos ver onde se encontram as raízes históricas da dívida gaúcha.
As consequências da Proclamação da República no RS e a precocidade da aposentadoria integral do funcionalismo público gaúcho
A República foi o resultado da articulação política de dois grupos com interesses bem distintos: o Exército e a Cafeicultura Paulista. Ao Exército interessava um programa de modernização conservadora – mas com inclusão social das camadas não proprietárias da sociedade; exatamente aquelas camadas donde advinham os seus quadros – levado à frente por um Estado forte e centralizado. O Curso de Filosofia Positiva e O Catecismo Positivista de Auguste Comte eram os livros de cabeceira de Benjamin Constant, Floriano Peixoto e Júlio de Castilhos. De outro lado, a cafeicultura paulista tinha um anseio muito distinto: a criação de um Estado hiper liberal, com pouco poder arrecadatório, desvinculado da sustentação de um aparelho de Estado custoso e da promoção do desenvolvimento regional através da instalação de equipamentos caros e complexos (como as ferrovias) em Estados (à época, Províncias) da periferia da nação. A riqueza de São Paulo ficaria em São Paulo. Em contrapartida, cedia-se o direito das oligarquias regionais retrocederem a um Estado de beligerância e conflitos coronelísticos como não mais se vira desde a transmigração da Corte de Dona Maria e Dom João.
Como se sabe, o projeto paulista foi vencedor no Brasil. Mas, no Extremo Sul do país, uma estranha “aldeia gaulesa” manteve intacto o projeto do Exército. Por quê? Porque o RS sediava a maior parte das tropas do Exército brasileiro, sempre preocupado com um possível conflito com Argentina, Uruguai e Paraguai (o acesso ao Paraguai só podia ser feito pelo Mato Grosso ou RS; a mata atlântica em SC e PR era, então, intransponível). Júlio de Castilhos comandava o Partido Republicano Riograndense com mão de ferro e abraçava um positivismo radical. Tão radical que, hoje, seria considerado um político situado à esquerda do PT. E ele escreve (sozinho) a Constituição do Estado do RS e a promulga na simbólica data de 14 de julho de 1891. Ela toda é uma Constituição centralizadora e autocrática. Mas o que realmente perturbou a “paz interna” foi o Artigo 47 da nossa segunda Carta Magna.
“Art. 47 – Só à Assembleia compete lançar impostos
I – Sobre exportação;
II – Sobre imóveis rurais;
III – Sobre transmissão de propriedade;
IV – Sobre heranças e legados;
V – Sobre títulos de nomeação e sobre vencimentos dos funcionários do Estado.
§ 1º – A exportação de produtos do estado e a transmissão de propriedade deixarão de ser tributadas, logo que a arrecadação do imposto chamado territorial estiver convenientemente regularizada.”
A Constituição de Castilhos não se contentava em dizer que haveria um Imposto Territorial Rural. Anunciava que ele seria a base da arrecadação pública, com a depressão paulatina das alíquotas sobre exportação e transmissão de propriedade, até a extinção destes dois tributos. Inconformados com o projeto castilhista, os grandes proprietários de terra de todo o Estado se levantaram contra o novo governo, dando início à mais sangrenta revolução da História do Brasil: a Revolução Federalista.
O grupo de Júlio de Castilhos foi vencedor na refrega. Mas, para tanto, dependeu do apoio de Marechal Floriano, ainda na presidência, que enviou tropas do Exército para “colocar ordem” no território. Um apoio que não foi gratuito. Na verdade, apresentou um alto custo para o RS.
Um dos pontos programáticos centrais do Exército Positivista-Republicano era a concessão de aposentadoria integral a todos os funcionários públicos. Por quê? A aposentadoria integral para o funcionalismo emerge no Império Patrimonialista. Mas, neste período, ela atinge apenas o alto escalão da burocracia. Por exemplo: dada a escassez de bacharéis, muitos juízes e promotores eram meros rábulas, vale dizer, pessoas com notório saber jurídico, mas sem a formação acadêmica adequada. Estes, não tinham direito à aposentadoria integral. A falta de um curso superior era um atestado de falta de pedigree. Deodoro universaliza a aposentadoria integral, mas deixa aos Estados Federados a decisão de adotar, ou não, a mesma regra. O único Estado que o fez foi o RS. Não se sabe se por comungar dos mesmos princípios; se por pressão de Floriano Peixoto; ou se por temor de não contar com o apoio necessário para a derrota dos “maragatos insurretos”. Muito provavelmente, por um misto destes três elementos.
Assim, 30 anos após a emergência da República, ainda na década de 20 do século passado, o Tesouro do Estado do RS passa a ter que arcar com duas folhas: a dos ativos e a dos inativos. Com o fim do Estado Novo, a Constituinte de 1946 universalizou a aposentadoria integral para todo o funcionalismo público. Mas enquanto alguns Estado só começaram a pagá-la 30 anos depois (por volta de meados da década de 70 do século passado), o RS já arcava com seu pagamento desde os anos 20.
Eventualmente, minha amiga Juliana Bublitz poderia dizer que esta foi uma opção nossa e, portanto, é um problema nosso: temos que arcar com nossas responsabilidades. E eu responderia: nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A aposentadoria integral no RS foi uma exigência de Floriano para apoiar os republicanos-castilhista.
Ora, a vitória dos castilhistas sobre os latifundiários federalistas foi condição sine qua non para a Reforma Agrária no Norte do Estado do RS, para a industrialização do Estado e para a emergência de uma cultura de Planejamento do Desenvolvimento que esteve na base da Revolução de 30 e da subsequente modernização capitalista do Brasil. Só que este processo deixou um ônus histórico sobre o RS representado por um problema fiscal crônico associado à precocidade da folha de inativos nos dispêndios de custeio do RS. Um problema fiscal que adveio de uma negociação política com o governo federal nos primórdios da República. Nos termos de Aristóteles, o RS emerge como uma Unidade da Federação diferenciada, desigual. E, nesse caso, a justiça encontra-se no reconhecimento desta diferença e no tratamento desigual de agentes desiguais. Até porque, tal como veremos abaixo, este não será o único elemento de desigualdade. Muito antes pelo contrário.
To be continued. The worst is yet to come…
*Doutor em economia e professor do mestrado em desenvolvimento da Faccat (Faculdades Integradas de Taquara).
Este é o primeiro texto da série de Carlos Paiva intitulada A contribuição da mídia gaúcha para a decadência do RS. O próximo será publicado no sábado, dia 03/06.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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