?>

Opinião

Nunca mais sem nós

Nunca mais sem nós

Artigo por RED
11/03/2023 05:30 • Atualizado em 12/03/2023 23:19
Nunca mais sem nós

De GILSON LUIZ DOS ANJOS*

A frase título tem qual significado para você? Depende de quem a profere, de quem a ouve, mas essencialmente, depende do contexto em que é dita. Pode até passar despercebida por pessoas desatentas. Mas quando a ouvimos no mês de janeiro de 2023 nas mídias do Rio Grande do Sul e do país, ganhou potência estrondosa, pois foi dita pela primeira na história do nosso Estado nos espaços de poder. É significativa pois amplia a condição de luta contra a exclusão do povo negro, da condição de dignidade social.

No dia 23 de fevereiro do corrente ano o RS tomou conhecimento pelos canais de mídia do resgate de mais de 200 trabalhadores em situação análoga a escravidão a serviço de três vinícolas de nosso Estado. São trabalhadores nordestinos, estrangeiros, indígenas e outros. São pessoas em situação de vulnerabilidade social. Certamente estas pessoas foram alijadas do processo de cidadania de seu/do “nosso” país.

Este não foi o primeiro e provavelmente não será o último caso de trabalho análogo a escravidão no RS¹, entretanto, será o primeiro a sofrer pressão política institucional por parte de uma bancada parlamentar representativa da comunidade negra. Pois estamos no início de uma legislatura que após 89 anos de fundação conta com uma bancada negra. Contamos com uma bancada federal com duas deputadas federais titulares: Daiane dos Santos (PCdoB) e Denise Pessôa (PT), mais a suplente Reginete Bispo (PT); E com uma bancada estadual com três parlamentares: Bruna Rodrigues (PCdoB), Laura Sito (PT) e Matheus Gomes (PSOL). A população negra do RS nunca teve tanta representatividade nestes espaços de poder. Ainda assim, é muito pequena, e terá a responsabilidade de fomentar com suas ações o aumento da representatividade negra nos parlamentos municipais já nas eleições de 2024.

O “Nunca mais sem nós” se constitui a máxima do povo negro gaúcho de não aceitar um parlamento sem a nossa representação. Contar com os atuais e com outros futuros parlamentares negros(as) nas câmaras municipais, estaduais e federais é uma das ferramentas que teremos na construção de uma vida em comum nesta nação. São muitas as pautas a serem tratadas pelo movimento negro. São muitas as desconstruções necessárias para alcançarmos a Democracia e o Estado Democrático de Direito que sem a nossa representação será apenas uma falácia.

Estamos no mês de março, que na estratégia dos movimentos sociais brasileiros obteve potência na luta em defesa das mulheres vitimadas por sua condição de gênero. O imaginário social machista e antidemocrático perpetuou por séculos, com uma organização social na qual as mulheres foram colocadas num espaço de inferioridade, precisando da aprovação de seus pais ou esposos para estudar, trabalhar, se divertir, se manifestar politicamente – para viver.

Temos ainda muito o que fazer para superar este imaginário, pois muitos são os casos em que mulheres são assassinadas, não simplesmente pelas mãos dos ex-namorados, ex- maridos/companheiros, dos homens, mas pela sociedade que continua silenciando as vozes femininas ou de quem a elas defendem. “Nunca mais sem nós” nos bancos escolares, nos índices de aprovação, nas universidades, nos espaços de poder legislativos, executivos e judiciários, nos espaços de cultura e lazer, pois lugar de mulher é onde ela desejar estar.

Estamos diante de um grande dilema, que é seguir os velhos valores de ordem e progresso que nos impôs a exclusão, sejamos nós mulheres, negros, homossexuais, portadores de deficiência física, não seguidores da verdade da religião oficial e do Estado Absolutista ou, irmanarmos na desconstrução deste imaginário que nos impede o acesso a condição de dignidade social. Essa desconstrução começa pelo rompimento do silêncio em relação a toda e qualquer ação/condição que nos inferiorize.

Lembro uns poucos versos de músicas que nos alertam como gritos singulares de seus autores:

Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil, um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou, negro entoou um canto de revolta pelos ares do Quilombo dos Palmares onde se refugiou (Canto das Três Raças)

Todo menino é um rei, eu também já fui rei, mas quá! despertei. Por cima do mar (da ilusão) eu naveguei (só em vão) não encontrei o amor que eu sonhei nos meus tempos de menino, porém menino sonha de mais, menino sonha com coisas que a gente cresce e não vê jamais. Todo menino é um rei, eu também já fui rei, mas quá! despertei, Todo menino é um rei, eu também já fui rei, mas quá! despertei. A vida que eu sonhei no tempo que eu era só, nada mais que um menino, menino pensando só, no reino do amanhã, na deusa do amor maior, nas caminhadas sem pedra no rumo sem ter um nó (Todo menino é um rei)

Existe muita coisa que não te disseram na escola, cota não é esmola, experimenta nascer preto na favela pra você ver o que rola com o preto pobre não aparece na TV, opressão, humilhação, preconceito, a gente sabe como termina quando começa desse jeito; desde pequena fazendo o corre pra ajudar os pais cuida de criança, limpa a casa, outras coisas mais, deu meio dia toma banho, vai pra escola a pé, não tem dinheiro pro busão (Cota não é esmola)

Mauro Duarte / Paulo Pinheiro, Osvaldo Alves Pereira / Luiz Sergio Carvalho De Freitas e Bia Ferreira são respectivamente os autores destas três entre muitas outras músicas que versam sobre essa “nossa” podre sociedade. Carecemos de novas composições não apenas de músicas, mas de um novo imaginário a ser instituído e no qual sejamos todos e todas pessoas portadoras dos mesmos direitos como se conceitua uma Sociedade Democrática.

Nesta nova sociedade, o “Nunca mais sem nós”, será apenas um verso de um passado para o qual não queiramos regressar.


*Mestre em Educação. Professor Educação Básica / Lajeado. Email: contato.gilsonanjos@gmail.com

¹Sobre este assunto, escrevemos eu, o professor Paulo Peixoto de Albuquerque e o professor Valter Morigi o artigo: Sem trabalho e sem direitos: a modernidade gaúcha, publicado no Relatório Azul 2011 da ALRS, onde analisamos a construção do imaginário social que potencializava a exploração do trabalho no RS.

Imagem em Brasil Escola.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

Toque novamente para sair.