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Opinião

As “minorias” e a transição democrática, entre reconhecimento, afirmação e participação política

As “minorias” e a transição democrática, entre reconhecimento, afirmação e participação política

Artigo por RED
07/01/2023 11:49 • Atualizado em 08/01/2023 12:47
As “minorias” e a transição democrática, entre reconhecimento, afirmação e participação política

De JOSÉ RIVAIR MACEDO*

Após quatro anos marcados pelo emprego sistemático do caos como estratégia de poder, comemoramos com alegria a retomada de princípios democráticos na vida pública, e a cerimônia de posse do Presidente Lula defronte ao Palácio do Planalto sinalizou em alto e bom tom a reconciliação pretendida pelo atual governo com setores da sociedade cujos direitos foram ameaçados ou depauperados no governo anterior. Ela será lembrada pelas quebras simbólicas de protocolo, embora se possa perceber que nada ali ocorreu de improviso. Todos(as) os(as) personagens convidados(as) a participar diretamente do ritual de transmissão de governo naquele instante simbolizavam setores desprezados ou atacados pelo bolsonarismo com o silêncio cúmplice da elite brasileira.

A aposta simbólica da equipe de transição nos preparativos da cerimônia deu um basta às últimas tentativas de manipulação de parte da opinião pública por Bolsonaro e seus epígonos e apontou aos atores e atrizes políticos(as) que atuarão nos próximos anos junto à “coisa pública” qual o maior desafio a ser enfrentado nesta nova gestão: a reestruturação de condições objetivas para que setores sociais postos à margem das diretrizes do Estado após o golpe de 2016 possam voltar a ter sua cidadania ativa e plena. Isto foi anunciado no contundente discurso de posse de Silvio de Almeida, Ministro dos Direitos Humanos, ovacionado ao mencionar nominalmente cada um desses setores ou segmentos, seguido da afirmação: “vocês existem e são valiosos para nós”.

Não há dúvidas de que um dos focos da ação política está sendo redirecionado e ajustado para “minorias” políticas em situação de desigualdade racial, sexual, social e de gênero, com ênfase nas camadas populares. Cabe refletir, todavia, sobre como tais mudanças de rumo serão convertidas em termos políticos, e de que modo representantes oriundos desses segmentos e setores reconhecidos pelo Governo Lula serão convidados a participar diretamente em postos de decisão e planejamento, condição fundamental para a afirmação da democracia participativa e para a reparação histórica das desigualdades acumuladas. Há quarenta anos, o então velho militante Francisco Lucrécio, que atuou na Frente Negra Brasileira na década de 1930 afirmava que a política poderia ser uma válvula para que os(as) negros(as) assumissem posição diferencial na sociedade pois ela “demove montanha, muda o curso do rio, ativa e desativa processos, manda prender e manda soltar”, enfim, confere poder. A maneira pela qual isso poderá vir a ocorrer, em meio a um cenário dominado por interesses neoliberais, por discursos e práticas abertamente conservadores(as) e/ou discriminatórios(as), constitui outro grande desafio para a política de recomposição social pretendida pelo atual governo. O argumento principal aqui defendido é que o reconhecimento do valor da diversidade, em si, não basta, mas precisa ser amparado em iniciativas de valorização do potencial da diferença etnicorracial, social e de gênero que confere distinção e singularidade a nossa sociedade.

Na subida da rampa do Palácio do Planalto, a cena transmitida para o mundo mostrou, ao fundo, o vermelho da massa dos(as) apoiadores(as), que num dado instante foi parcialmente recoberto por um imensa bandeira nacional, em uma composição visualmente potente e sugestiva. Junto aos casais de governantes, a presença e participação ativa de insignes ou humildes representantes da diversidade social, etnicorracial e de gênero confirmou de modo categórico a ideia de que o poder estava sendo ali transmitido pelo povo. E no discurso que se seguiu, Lula confirmou, com firmeza e emoção, os projetos de retomada das normas constitucionais, dos princípios democráticos e de uma política baseada na equidade, com menções ao legado de nossa “trágica herança escravista”; aos processos de espoliação das populações indígenas, que deverão voltar a ter suas terras “demarcadas e livres das ameaças das atividades econômicas ilegais e predatórias”.

Ao incluir na lista de convidados especiais Francisco Carlos do Nascimento e Silva, criança negra de 10 anos moradora no bairro de Itaquera, na periferia da Zona Leste de São Paulo, Lula assume simbolicamente a grande responsabilidade de garantir a esse garoto que lhe transmitiu a faixa presidencial condições para que viva com dignidade até a maioridade. O que, para muitos, seria o óbvio e o mínimo, para crianças e adolescentes negros(as) da periferia viver e morrer tem feito sentido na estatística perversa que é alimentada pela progressão numérica do genocídio da juventude negra que se encontra em curso no país há bastante tempo. Que Francisco não faça parte da vergonhosa lista de incontáveis “crianças matáveis”, vítimas da violência policial ou do crime organizado, como Ágatha Félix, assassinada em 2019, quando completara 8 anos, e João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, assassinado em 2020 por forças policiais, ambos moradores de comunidades periféricas, alvejados durantes supostos conflitos com traficantes do Rio de Janeiro; Gabriel Marques Cavalheiro, assassinado aos 18 anos, no ano de 2022, após abordagem policial no interior do Rio Grande do Sul; e Joel da Conceição Castro, de 10 anos, o “menino da capoeira”, estrela de campanha publicitária da Bahiatursa – empresa oficial do turismo do Estado da Bahia, assassinado com um tiro na cabeça disparado por policiais em 2010 quando estava na janela de seu quarto e se preparava para dormir.

Há quatro anos, no início da gestão Bolsonaro, as primeiras medidas tomadas pelo governo incluíram o desmonte da política de demarcação de terras indígenas e a extinção de órgãos públicos comprometidos com políticas públicas antirracista (SECADI-MEC; e depois SEPPIR). A criação do Ministério dos Povos Indígenas e do Ministério da Igualdade Racial, entregues a Sonia Guajajara e Anielle Franco, mulheres com destacado reconhecimento nacional e internacional, bem como a criação de uma secretaria especial dirigida aos direitos da população LGBTQIA+, são mostras inequívocas de uma readequação de rumos. Este reconhecimento público da diversidade etnicorracial e de gênero poderá assegurar condições para que se possa manter em pauta políticas públicas afirmativas e colocar em pauta negociações que garantam poder de definição a lideranças oriundas de tais grupos.

Convém entretanto sublinhar que para uma readequação de rumos de caráter estrutural, é crucial que um número maior de pessoas vinculadas a esses setores que continuam a ser tratados como “minorias” sejam convidadas a compor os quadros decisórios das propostas e projetos em curso, tornando-se agentes e protagonistas de seus destinos. Que lugar será reservado nos postos do governo a(o)s educadores(as), gestores(as) e administradores(as) negros(a)s e indígenas na retomada das políticas antirracistas junto às instituições públicas e privadas? Que espaço tem sido a eles(as) reservado nas instâncias de representação e órgãos do Ministério da Educação para que sejam rediscutidos os meios de implementação da legislação antirracista e de uma política pública de Educação das Relações Etnicorraciais? Com qual autonomia serão discutidas as questões inerentes especificamente ao racial, ao étnico e ao etnicorracial no âmbito da vida social?

Tratam-se de aspectos essenciais para a gestão de uma sociedade como a nossa, em que a raça e classe aparecem associados sem que por isso se confundam – como muitos pensam. Como se pode depreender das manifestações públicas envolvendo as ministras Simone Tebet e Anielle Franco nos últimos dias, há quadros competentes e preparados integrados por mulheres e homens negros dispostas(os) e interessados em contribuir diretamente no processo de reconstrução da democracia em nosso país em qualquer das pastas ou órgãos e não apenas naqueles reservados às “minorias”. A democracia terá muito ao ganhar ao ser concebida não em termos de uma igualdade, mas de uma equidade racial.

Há mais de seis décadas, o sociólogo Guerreiro Ramos apontou com sagacidade a distinção entre ser “negro tema” e ser “negro vida”. Estendendo o seu raciocínio aos indígenas, cujas vidas igualmente importam, cabe encerrar com uma manifestação de apoio e solidariedade à kujá (pajé) e cacica Iracema Gãh Té, cujo vasto saber e reconhecida liderança foi forjada na luta histórica do povo Kaingang em defesa de suas terras no Morro Santana, em Porto Alegre, RS. No dia 22 de dezembro ela iniciou uma greve de fome em defesa de seu território originário que se encontra em disputa judicial há muitos anos, em face do julgamento de uma ação de reintegração de posse contra a comunidade Kaingang e Xokleng. Que as autoridades do judiciário e detentores de poder de definição tenham serenidade e sabedoria para identificar a linha tênue que separa o direito da justiça. Ao colocar sua vida a disposição da Mãe Terra, Mestra Iracema irmana-se aos seus ancestrais, para quem, sejam quais forem as tendências dos governos que se sucedem ao longo da história, todo dia é “dia de branco”.


*Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da UFRGS; integrante do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros, Africanos e Indígenas; Coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos do Instituto Latino-Americano de Estudos Avançados, ILEA-UFRGS; pesquisador do CNPQ; Sócio da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros.

Foto – Ricardo Stuckert.

As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.

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