Opinião
Dever de Memória e Justiça na Transição no Brasil
Dever de Memória e Justiça na Transição no Brasil
Da redemocratização à superação de Bolsonaro
De JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO*
Neste fim de 2022, vivemos um sabor de vitória e de derrota. A derrota mais evidente é o resultado avassalador de dois anos de um governo golpista e de quatro anos de um governo fascista. A morte evitável de centenas de milhares de pessoas, não só em virtude da pandemia, mas também da desídia, quando não, da desbragada promoção da violência, no descumprimento do dever de proteger sua população. Destruição e dilapidação do patrimônio nacional, destruição das políticas públicas e prevaricação escancarada relativas à diminuição da desigualdade, à proteção do meio-ambiente, ao combate ao racismo, à violência contra a mulher, à violência contra a população LGBTQIA+, à proteção de indígenas e demarcação das suas terras, para citar algumas das mais evidentes.
A derrota também foi o fato inusitado de termos tropas de pessoas, em quantidade significativa, encantadas, usadas, enganadas ou convencidas (algumas desde sempre) pelo fascismo, que estiveram nas ruas e nos quartéis, penduradas em seus celulares, cultivando um universo paralelo que segue vivo, à espera de uma possível nova liderança.
Outra derrota foi a precarização imposta ao sistema de justiça e ao parlamento do país, que durante esse período acolheram o golpismo, o lawfare, a naturalização da ilegalidade, da explícita afronta à Constituição e aos compromissos internacionais do país.
Nossa vitória, por outro lado, foi conseguir convencer e pressionar nosso sistema de justiça a agir para cuidar da ferida de morte que ele mesmo ajudou de modo determinante a causar. A cúpula do Poder Judiciário foi decisiva tanto na erosão democrática gerada pelo governo Bolsonaro quanto na luta contra o fascismo.
Nossa vitória foi ter conseguido formar uma frente ampla de defesa da democracia para garantir a vitória de Lula, mesmo lutando contra a extrema direita no poder, por definição desonesta, trapaceira, instiladora do medo e da violência. Vitória estrondosa.
Nossa vitória foi também formar uma equipe ministerial do novo governo com diversidade racial e de gênero, com pessoas dedicadas e notórias pelos feitos fantásticos e positivos relativos às suas respectivas pastas.
Nossa vitória foi conseguir pautar e efetivar o combate ao discurso burro e insensível da austeridade, evidenciando a insanidade do teto de gastos, cuja determinação foi uma das primeiras medidas adotadas pelo governo golpista de Temer.
Quero, pois, deixar cristalina a minha alegria e a minha vontade em celebrar tais vitórias, após longos 6 anos de iniquidade, morte e destruição. Parecia que estávamos fadados a amargar um longo inverno, mas eis que surgiu a primavera. Pela terceira vez, conseguimos eleger para presidir o Brasil Luiz Inácio Lula da Silva, único Presidente que já passou fome na vida, operário, no qual nosso povo sofrido e batalhador se espelha.
Um homem que amargou mais de 500 dias na prisão, a quem foi negado ir ao enterro do seu próprio irmão, por pura mediocridade e crueldade. Lula não se deixou abater, deu um exemplo instransponível que ficará marcado indelevelmente na história do nosso país e do mundo.
Importante chamarmos atenção para a pessoa do Lula, pelo seu simbolismo e exemplo, mas saibamos bem que Lula não é obra de uma única autoria. Foram milhares e milhares de pessoas que juntas construíram as condições para o surgimento e avanço de uma liderança popular como a de Lula.
Em um país que ainda tateia por sua memória, quero aqui fazer um singelo registro. Lula sozinho não teria conseguido derrubar a ditadura civil-militar. É certo que o assim chamado novo sindicalismo que ele comandou e que o projetou para a política institucional do país foi um dos abalos sísmicos que balançaram os alicerces do regime ditatorial. Mas esta luta da qual ele passou a fazer parte no final dos anos 70 já vinha sendo enfrentada antes até da conclusão do golpe em 1 de abril de 1964.
Foram milhares e milhares de brasileiras e brasileiros que enfrentaram a violência e a insensibilidade de uma elite e de setores das suas Forças Armadas, alguns pelas armas, mergulhados na precariedade da vida clandestina ou no exílio, outros que buscavam uma resistência sem armas, nas agremiações políticas, permitidas ou proscritas, nas manifestações artísticas, nas organizações sindicais dos campos e das cidades, nas universidades e escolas secundárias, em setores da imprensa, nas repartições públicas, em diversos postos de trabalho do setor privado, dentro até das próprias Forças Armadas e de setores de expressão do Estado.
Homens, mulheres, adolescentes e crianças que pagaram um alto preço pela ousadia de sonharem com uma sociedade mais justa e de lutarem contra uma ditadura que cerceou as liberdades públicas, que se tornou cúmplice do capitalismo mais selvagem e das empresas mais venais, violentas e mesquinhas, uma ditadura que se tornou braço servil dos interesses estadunidenses. Muitas destas pessoas pagaram com a própria vida, foram torturadas, perseguidas, reprimidas, se privaram das suas famílias, dos seus amores, das suas aspirações profissionais, dos seus sonhos pessoais. Muitas desapareceram.
Devemos a essas brasileiras e brasileiros e a muitas pessoas de outras nacionalidades a democracia que hoje temos, recuperada em suas amplas possibilidades com a terceira vitória de Lula, em 2022. Tal reconhecimento deve ser pleno para todos nós, deve estar plasmado em espaços de memória, monumentos, logradouros, livros, espetáculos e, sobretudo, nos espaços institucionais pelos quais o Estado exerce seu poder, já que foi este mesmo Estado que outrora, tomado por governos déspotas, violentos e sem escrúpulos, instalou a barbárie e sequestrou a vida democrática.
Nestes últimos 34 anos, período que vai da promulgação da Constituição de 1988 até o presente, esse reconhecimento foi ambíguo, hesitante, em muitos momentos rarefeito. O bloqueio de silêncio e medo cimentado pela anistia se manteve, ora pelo receio de melindrar as Forças Armadas, ora por ação insidiosa de grupos e pessoas responsáveis por diversas violações durante a ditadura, ora até pela imposição do equivocado senso comum de que fazer justiça ao sofrimento e às violações do passado seria uma inútil perda de tempo.
Conseguimos mesmo assim, apesar da absoluta impunidade aos agentes da ditadura, entre outros feitos, criar três importantes comissões de Estado: a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, a Comissão de Anistia e a Comissão Nacional da Verdade. A justiça de transição no Brasil vinha avançando, aos tropeços, tardiamente, mas vinha avançando.
No entanto, em 2016 houve um golpe de Estado e em 2018 a extrema direita subiu a rampa e, com ela veio a mais despudorada defesa da ditadura. Uma Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos presidida por uma pessoa que celebrava o AI-5. Uma Comissão de Anistia composta por militares e conselheiros que diziam que não houve uma ditadura e que chamavam as pessoas, hoje idosas e com sequelas da violência de Estado, de terroristas. Uma ministra dos direitos humanos que indeferiu quase todos os pedidos de anistia, até mesmo da ex-presidenta Dilma Roussef, barbaramente torturada. Um presidente que celebrava a ditadura, comandantes militares que a exaltavam, em pleno século XXI, como tendo sido a salvadora da democracia e um Judiciário que autorizou, por duas vezes, a comemoração do golpe de 64 nos quartéis.
Como se já não houvesse muito ainda a ser feito no campo da justiça de transição, o que foi indicado inclusive por duas condenações internacionais na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o governo Bolsonaro acumulou para o país ainda mais tarefas, pois produziu novas violações e criou mais deveres para o Estado no campo da verdade, da memória, da reparação e da responsabilização. É preciso reconstruir a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, é preciso reerguer a Comissão de Anistia e seus projetos de reparação integral, é preciso dar seguimento às recomendações da Comissão Nacional da Verdade. É preciso ainda construir outras Comissões para confrontar as mortes criminosas produzidas pelo governo Bolsonaro: a pandemia, a devastação ambiental, a dizimação indígena, o assassinato da juventude negra e periférica.
Após quatro anos de um governo miliciano e defensor da ditadura, é preciso fortalecer a justiça de transição no Brasil. Após a histórica vitória de Lula nas eleições de 2022, deu-se início a um magnífico Relatório de Transição, escrito a muitas mãos e por meio de diferentes GT’s temáticos. No GT de Direitos Humanos, ali estavam pessoas notórias pela luta em prol da justiça de transição no Brasil, propostas e diagnósticos do desmonte operado nesta pauta foram encaminhados e apresentados. No entanto, o tema não surgiu no Relatório de Transição que veio a público. Um relatório de transição que não tratou da justiça de transição.
Não vou aqui entrar em especulações sobre os motivos. Vou apenas lembrar das palavras certeiras do Presidente Lula no dia 22 de dezembro de 2022 quando anunciou parte da sua equipe ministerial:
“Não deixem de cobrar do nosso governo. Um governo não precisa de tapinha nas costas. Precisa ser cobrado todos os dias, para aprimorarmos nossa capacidade de trabalho. Cobrem, para que a gente faça. Boa noite e até amanhã”.
Entendo que cabe à sociedade civil deste país, envolvida no mais profundo espírito democrático e republicano, fazer essa “cobrança”, lembrando da importância e centralidade da justiça de transição para o Brasil. Uma sociedade que precisa estar comprometida com a memória das suas lutas e ciente de que um país só vai mesmo para a frente quando consegue acertar as contas com o seu passado, reconhecendo e reparando os que lutaram, caídos ou sobrevividos, responsabilizando os perpetradores e reformando as estruturas que se prestaram ao arbítrio, para que nunca mais aconteça.
Aqui modestamente fica a minha singela “cobrança”, para que as forças da reconstrução democrática, lideradas pelo Presidente Lula, não se esqueçam daqueles e daquelas que permitiram a volta da democracia no Brasil, nem daqueles que a sequestraram e a destroçaram por mais de duas décadas, o que até hoje produz efeitos sentidos e sofridos por toda a população brasileira. Não deixemos de cumprir o nosso dever de memória, que é também um dever internacional de cumprir os compromissos assumidos.
A extrema direita faz a sua chamada “guerra cultural” conduzida pela apologia à ditadura e pela tentativa de reescrever a sua história, negando as suas atrocidades e culpando as suas próprias vítimas. Se nos negarmos a enfrentar essa batalha, seja lá por qual motivo, o fascismo poderá mais uma vez estar à nossa espreita em um futuro não muito distante. Não deixemos.
*Professor de Direito / Membro do Conselho Diretor da Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia / Sócio-Fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD.
Publicado originalmente no Sul21
Foto: Agência Brasil
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