Opinião
Futebol é o ópio do povo? Depende do povo?
Futebol é o ópio do povo? Depende do povo?
De LEONARDO MELGAREJO*
Sabemos que há crueldade e oportunismo (por vezes ignorância) na fala daqueles que insistem em cobrar distanciamento entre o futebol e a política. Eles costumam dizer que não deve haver mistura entre as paixões e a racionalidade, e se empenham em fazer com que isso pareça possível. Não o é. Em seu esforço, tentam incluir a ‘bobice’ entre os critérios para crescimento profissional, como se os jogadores de futebol, para subir nas cotações, devessem se desobrigar de qualquer dever de natureza ética e moral, abrindo mão da responsabilidade e consciência social. Naturalmente isso parece funcionar em grande parte dos casos, mas nem sempre. Parece que a autocrítica teima em resistir à tentação do suborno. Mas ainda assim, sobram comparações emblemáticas, como aquelas entre Maradona e Pelé, ou mais recentemente, entre Neymar e Messi.
E esta copa do mundo permite uma discussão mais ampla sobre este tema.
Vejam que os continentes empobrecidos do planeta estão chegando altivos às semifinais. Para isso, não só alegram seus povos, atropelando equipes bilionárias, como fazem tremer seus colonizadores e abrem discussões sobre capacidades, direitos e deveres internacionais.
Representados por uma seleção do Norte da África (Marrocos) e outra do Sul das Américas (Argentina), esta semana as colônias exploradas enfrentarão, em campo, representantes de um velho mundo genocida, que lhes subtraiu condições de vida, culturas, auto estima, imaginário e crenças.
É futebol, mas é também a retomada de choques desiguais entre representantes de nações historicamente expoliadas, povoadas por consumidores de agrotóxicos, ameaçadas pelo envenenamento das águas e acossadas por epidemias de câncer, contra os representantes daqueles países que lhes roubaram minérios, destruíram biomas, apagaram culturas, escravizaram povos, cooptaram elites e ainda hoje tratam de ignorar suas responsabilidades
para compensações e direitos humanos universais. Só não vê o que isso representa quem não quer, ou não consegue. Afinal, são muitos os escravizados e seus feitores modernos, comprados por migalhas, hipnotizados por mitologias em favor de lucros concentrados nos países do norte.
Mas todos sabem que o que ali acontecerá em campo, nesta semana, vai além do que está contido pelas regras da FIFA.
Há inegável e importante simbolismo nestas disputas (embora França e Croácia não sejam os melhores representantes do império do mal). A rigor ali se repetirão embates que lembram aqueles ocorridos entre povos e senhores feudais hoje representados por um modelo de agronegócio inconsequente e predador. Comparações assemelhadas se percebem nas personalidades símbolo destes choques, e na forma como se posicionam em relação ao que realmente importa na vida. E aqui me refiro a Neymar e Messi, no que representam, como pretendem ser vistos e que valores tratam de estimular entre seus admiradores. O caso do churrasco com ouro e a decisão de cobrar o primeiro ou o último pênalti, nas quartas de final, ilustram isso. Messi quis bater o primeiro. Neymar exigiu ficar com o último. A diferença? Está no brilho dos holofotes sobre quem bate o ultimo pênalti e no virtual esquecimento de quem bate o primeiro, quando o último decide o resultado da partida. Em sua humildade, Messi cobrou primeiro, e com isso passou confiança aos companheiros. Em sua vaidade, Neymar, supostamente “o melhor cobrador de pênaltis do mundo”, sequer chegou a a bater, e o Brasil foi eliminado antes de chegar sua vez.
No outro extremo, a equipe de Marrocos, que não possui grandes nomes, nem perspectivas, já chegou além do que pareceria possível. Ela joga para não perder. Confia no goleiro e acredita que, se resistirem a 120 minutos de massacre, podem vencer a qualquer gigante. E provam isso, em campo, com todos se sacrificando por esse
objetivo. A estratégia? Empenho coletivo e solidariedade absoluta, em campo e fora dele.
Com certeza o time de Marrocos terá influência no futebol e fora dele, sobre todos os Davis que enfrentam Golias, ao longo das próximas décadas. É política, na raiz dos fatos. Um grupo de pessoas criando um paradigma que há de influenciar o futebol mundial, o povo e o regime político de seu país, e ainda, de quebra, motivando outros
povos oprimidos a jamais desistir de lutas desiguais pela soberania de suas nações.
O que está em pauta, nestas condições diametralmente opostas, é o posicionamento quanto a um fato: a pobreza, física e espiritual, não é algo natural. É uma fragilidade construída para dar curso à formas de dominação. Por isso, por ser instrumental, a pobreza serve aos poderosos e orienta a história do mundo. Ela se define pela subjugação de
povos e grupos sociais em favor de outros, que submetem os primeiros pela força das armas, das técnicas, de leis imorais e de conceitos defendidos por lideranças do pior tipo.
Neste sentido, a pobreza tem raízes psicossociais que permitem a transformação de pessoas e bens comuns em mercadorias. De nações em lixeiras, renovando castas sociais protegidas por estados corruptos que não se
constrangem de relegar grandes massas à fome, e à uma desigualdade mortal, que facilita a expansão de todo tipo de doenças. Se na Idade Média a peste negra matou 200 mil pessoas na Europa, com os negacionistas de então
afirmando que se tratava de castigo divino, no obscurantismo bolsonarista, enquanto nos preparávamos para a Copa e Neymar prometia gols para seu Mito, a COVID matou perto de 700 mil brasileiros. Isto pode ser esquecido ou perdoado?
Penso que contam com nossa cumplicidade para se safar. Mas sei que há um otimismo doentio, entre todos, que decorre de paixões capazes de embotar o cérebro.
Sentimentos de amor e ódio, alimentados por desinformação e ignorância. Coisas que comprometem nossa leitura de realidade e dão sobrevida à lideranças irresponsáveis como boa parte daqueles políticos golpistas, boleiros, músicos e artistas de corações gananciosos.
Como esquecer a estupidez arrogante daquele general ministro da saúde que enviou respiradores para a cidade errada enquanto o presidente debochava de pessoas com falta de ar? O que pensar daqueles militares que pressionam o governo para gastar R$5 bilhões na compra de tanques de guerra obsoletos (para usar contra quem?) quando o povo passa fome?
Claramente não se trata de terapia. Aconselhamentos serão insuficientes para a recuperação daquelas pessoas que pedem ditadura e se recusam a ver a si mesmas como de fato o são. Elas se sabem pequenas e para disfarçar isso
insistem em semear a discórdia. Seus lideres são podres, e no conjunto parecem incapazes de aprender o modelo da equipe de Marrocos.
Mas nós podemos fazer isso, valorizando lideranças que confiam na capacidade dos brasileiros e se mostrem capazes de priorizar o que é de fato essencial. No primeiro passo, que Lula complete sua equipe. No seguinte, com todos nas ruas a apoiar suas medidas e colaborando para a renovação de nossas lideranças morais, avançaremos.
A punição de ministros, agentes de governo e arautos da ignorância ligados ao desgoverno anterior, deve ajudar.
E em resumo, agora que para nós a copa terminou, é hora de enfrentar aqueles problemas reais, que impedem o Brasil de crescer e a todos nós de desfrutar as singularidades que nos permitirão viver a dor e a delicia de sermos o que somos.
Caetano Veloso – Dom De Iludir.
*Engenheiro Agrônomo, mestre em Economia Rural e doutor em Engenharia de Produção. Foi representante do Ministério do Desenvolvimento Agrário na CTNBio e presidente da AGAPAN. Faz parte da coordenação do Fórum Gaúcho de Combate aos Impactos dos Agrotóxicos e é colaborador da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida, do Movimento Ciência Cidadã e da UCSNAL.
Imagem de capa de Pixabay.
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