Opinião
Biografia de Jurema Finamour: lembranças e pesquisa
Biografia de Jurema Finamour: lembranças e pesquisa
De CHRISTA BERGER*
A curiosidade e a prática da pesquisa já interiorizada foram responsáveis pelo livro Jurema Finamour: a jornalista silenciada, que acabou de ser publicado pela Libretos.
Li, nas férias escolares – verão de 1966 – em Ijuí (RS), o livro Vais bem, Fidel, trazido da casa da amiga onde livros “subversivos” eram emprestados com recomendação de discrição.
O livro falava de Cuba, publicado no Brasil três anos depois da revolução, na volta de uma visita da jornalista Jurema Finamour à Ilha, onde passou o reveillon de 1961, se encantou com a natureza e os eventos na praça da Revolução, onde ouviu Fidel Castro. Era assim que eu recordava do livro e a cada nova publicação anunciada sobre Cuba no Brasil, eu lembrava de Vais bem, Fidel e, cada vez, estranhava a ausência de menção a ele, que até onde sei, foi o primeiro escrito por brasileiro. As vezes pensava que a jornalista e seu livro só existiam na minha lembrança, pois nunca me deparei com seu nome ou o nome do livro nas tantas conversas e revisões bibliográficas que fiz no exercício da docência nas faculdades de jornalismo.
Algum resquício de jornalista em mim, não sossegou por quase 50 anos.
Chegou o tempo em que o tempo me pertence (já criei filhos e garanti minha sobrevivência) e a curiosidade vaga sobre a Jurema Finamour e seu livro transformou-se em investigação – jornalística/acadêmica. É verdade que a disponibilidade de pesquisa que a tecnologia oferece foi fundamental para as descobertas que fiz e, aos poucos, o que estava restrito às conversas em família e comentários com as amigas foi se transformando em um projeto: primeiro de um perfil para alguma publicação interessada em jornalismo ou questões de gênero. Com o passar do tempo e o acúmulo de informações comecei a visualizar a estrutura de um livro.
Na procura pelo livro que li em 1966 encontrei além dele, outros dois. Comprei e, ao leras orelhas e as apresentações, a curiosidade se expandiu.
Algumas semanas depois, ao incluir o nome da Jurema Finamour no google já apareciam outros livros e um texto que falava nela. Peguei um caderninho para anotações e fui comprando os livros. Eram baratos, de 5 a 20 reais. E hoje, além do caderninho, tenho outros seis cadernos preenchidos.
Pela primeira informação que um livro nos dá, eu soube que Jurema viajara à URSS, a China, a Coreia, a Cuba, à Amazônia. Soube que ela era boa cozinheira e tinha livro publicado sobre culinária. Pelas apresentações em seus livros soube a opinião de pessoas importantes no cenário cultural brasileiro, sobre sua produção – Jorge Amado, Leonel Brizola, Nelson Werneck Sodré, Antonio Houiass, Barbosa Lima Sobrinho, Rachel de Queiroz. Pelos agradecimentos soube que era amiga de Zelia (mulher de Jorge Amado) e de Heloisa, (mulher de Graciliano Ramos), soube que ela tinha casa em Itatiaia e era companheira de Letelba Rodrigues de Britto. E vi pelos créditos da capa de seu livro de memórias que o retrato escolhido fora pintado por Di Cavalcanti.
A leitura dos onze livros de Jurema Finamour a que tive acesso, depois de lidos exerceram sobre mim a questão recorrente que ouço de quem fica sabendo do meu livro: Como eu nunca ouvi falar em Jurema Finamour? Como nunca vi referências a seus livros?
Dos livros fui aos arquivos de jornais para encontrar suas publicações. Escreveu em A Manhã, Diretrizes, Imprensa Popular, O Semanário e criou um jornal feminino não feminista – fazia questão de enfatizar -, chamado Mulher Magazine. As personalidades citadas em seus livros foram entrevistadas por ela e as entrevistas publicadas nesses jornais. Os arquivos digitais são maravilhosos para quem sabe usar ferramentas de busca e armazenamento, que não é o meu caso. Penei, aprendi um pouco e chamei a Juliana Lisboa, ex-aluna do doutorado, para me auxiliar nesse desafio.
Livros e jornais, primeiro passo dado, passei à leitura de biografias de pessoas que com ela conviveram. Foi o filho de Letelba Rodrigues de Britto, que na biografia do pai registra o tempo que a relação durou e diz que ela foi o grande amor de seu pai que teve oito mulheres. E é no livro do filho do Brizola, que encontro o bilhete que Jurema anexou em uma correspondência de Pablo Neruda à Neusa Brizola. E confirmo a relação amistosa entre eles.
É no livro Prestes – Lutas e Autocríticas – escrito pelo Dênis de Moraes que leio o nome de Jurema em referência a uma reportagem para a revista O Cruzeiro. Dênis é um professor da área de comunicação que eu conheço, escrevo perguntando se tem mais informações sobre a jornalista. Ele é o primeiro a dizer que Jurema merece uma biografia e me envia arquivos de registros do SNI em que consta o nome dela, associado aos comunistas e procurada nas primeiras horas do golpe. Ali descubro que Marighella, companheiro de Letelba, também conviveu com ela. Escrevo para Mario Magalhaes, biógrafo de Marighella que revisa seus arquivos e onde encontra o nome de Jurema também disponibiliza o material para mim. Conta, ainda, que Humberto Werneck está escrevendo a biografia de Drummond. Havia o registro de uma crônica dele para Jurema. Escrevo pra Werneck, responde logo e diz que encontrou o nome dela nas correspondências guardadas na Fundação Casa de Rui Barbosa onde se encontra o Museu de Literatura Brasileira e os arquivos do Drummond.
Anoto no caderno das “atividades por fazer” o endereço da Casa de Rui Barbosa para quando for ao Rio. A pandemia da covid interrompe os planos. Arquivos e bibliotecas fechados. A visita à Casa de Jorge Amado com data e horário para pesquisa local já cancelei. O prazo da passagem venceu e eu não consegui viajar. Escrevo, novamente, e pergunto se não podem me atender via online. Recebo uma atenção amorosa e eficiente e em poucos dias chegam fotos no e-mail que comprovam a relação afetiva entre Jorge Amado e Jurema Finamour e também com Carolina Maria de Jesus e Anna Seghers. Mas nada mais, nem mesmo a apresentação que Jorge Amado fez do livro sobre a China está disponível aos pesquisadores da obra dele.
Na minha pequena experiência sinto cumplicidade e camaradagem entre os que escrevem biografia, assim como, a boa-vontade dos que trabalham cuidando e disponibilizando o patrimônio dos nossos intelectuais. Só tive uma decepção nesse percurso, pois mesmo tendo assistido à apresentação da escritora sobre seu biografado e mostrado seu livro recém lido e todo sublinhado para perguntas, não recebi resposta e acolhida.
Próxima etapa da pesquisa: buscar as pessoas que Jurema cita como tendo convivido com ela. Quase todos seus contemporâneos já morreram. Falo com filhos de pais com quem Jurema conviveu e que poderiam lembrar dos seus pais falando nela. Assim acontece com Raymundo Guillon, filho dos vizinhos na rua Nascimento e Silva 115, ele
mesmo lembra dela; com o filho do cineasta Flavio Tambellini que recorda da Jurema falando em seu pai; com Paloma, filha de Jorge Amado que envia um áudio com suas recordações e confissões de seu pai sobre Jurema.
Mas não consegui contato com a filha de Josué de Castro, que acolheu Jurema em Paris, tampouco com o filho de Giocondo Dias com quem Jurema diz ter convivido na Alemanha.
Falo com o filho de Thiago de Mello, que vive na floresta, ele responde que seu pai já não tem memória do tempo antigo. Um ano depois ele morre.
Jurema cita o nome de Maria Helena Correa Pires como uma amiga que ela conheceu em Porto Alegre quando veio lançar seu livro sobre Cuba no Teatro de Equipe e a mesma Maria Helena, chamada de Heleninha é citada como a fada protetora, quando Jurema está presa no Palácio da Polícia.
Levo mais de um ano para receber resposta de Maria Helena Correa Pires no FB. Peço amizade, escrevo in box. Ela não é frequentadora do aplicativo e está na Europa. Casualmente quando me responde está em Canela onde tem casa. E se dispõem a me receber. Vou de ônibus no dia e hora sugeridos por ela que me aguarda na rodoviária. Na hora sinto a energia boa dessa fada da Jurema. Sua casa é linda, me espera com dois livros, e muitas histórias. Nos emocionamos, pois agora também já me incluo como uma amiga de Jurema. Confirmo datas, nomes, histórias. Jurema morreu em 1996, Maria Helena não tem com quem falar sobre a amiga, então sinto que também desfruta desse momento. Forma-se um pacto de cumplicidade entre nós duas. Poucos dias depois recebo um envelope com a última carteira de identidade de Jurema e duas cartas de Neruda.
Meses depois passamos outra tarde juntas, agora na minha casa. E ela me conta que tem o retrato de Jurema feito por Dimitri Ismailovitch e que o quadro pintado por Di Cavalcanti ficava na parede à esquerda de quem entrava na sala de estar da casa de Jurema e que ninguém ficava indiferente ao se deparar com ele.
Estou ansiosa por localizar algum familiar. Heleninha, perdeu o contato com eles, mas lembra que posso descobrir nomes e endereços através do inventário. Não tenho ideia de como se tem acesso à inventário no Rio de Janeiro até saber que posso contratar um escritório de advocacia especializado em localizar documentos. Passam-se meses até ele ser liberado. Quanta alegria quando o recebo, pois ali está a família de Jurema Yari Ferreira que recriou o nome Finamour a partir do nome da mãe Finamore. A madrasta, o irmão, os dois meios-irmãos, os sobrinhos e seus endereços estão ali registrados. E os bens que Jurema deixou. Riqueza de informação.
Novamente, a busca pelos nomes começa nas redes: Google, FB, Instagram e nada. É o caso de escrever cartas para os endereços que constam do inventário de 1996? Eu escrevo. Uma carta retorna, de outra recebo uma resposta ofensiva, dizendo que Jurema era uma comunista que se beneficiou do estado brasileiro para viajar e viver bem e que
se eu considerava que ela merecia uma biografia, devia ser como ela. E que não o buscasse nunca mais. Eu, ainda, insisto. Falei que queria justamente saber quem ela era, sem idealizações. Mas ele cumpriu o prometido e não respondeu. E, como eu tinha dado além do meu endereço, email e telefone, recebi um whatsapp da sobrinha. Conversamos, ficamos próximas para falar de nós durante quase três anos, mas ela repetia que era muito jovem, pouco conheceu sua tia e, portanto, não tinha lembranças para me contar. Eu, insistia, sobre fotografias e cartas, mas ela reafirmava não ter ficado com nada. E nunca me deu o contato com seu irmão, que ficou na casa de Jurema durante os longos meses em que ela ficou hospitalizada até morrer. Esta é uma falta que eu gostaria de ter sido capaz de resolver.
Mas esta falta também ajudou a me aproximar da Jurema, ora Yari Ferreira, ora Finamore, ora Finamour, sem idealizações. Solitária, intransigente, culta, movendo-se entre grande exposição nos anos 40’s e 50’s; fugitiva e exilada nos 60’s; nos 70’s brigando e lutando para voltar ao seu cargo como funcionária pública; fazendo terapia e escrevendo para exorcizar suas vivências e lembranças, como disse no livro A Mulher que Virou Bode: “escrevo para me livrar das lembranças que mesmo passado tempo tão largo ainda doem e incomodam, com as consequências, embora também divirtam com a farsa e o ridículo que realmente foram insuperáveis”.
Tão descrente dos afetos da amizade e da família que preferiu assumir a solidão. Foi socorrida pelo vizinho e quando morreu foi sepultada na presença de oito pessoas, conforme Heleninha a fada que esteve sempre com ela.
A atitude de Jurema de não submissão aos homens e aos padrões comportamentais da época, e a coragem de registrar sua indignação com o que viveu ou viu acontecer expondo homens com seus nomes próprios como fez com Pablo Neruda e Luiz Carlos Prestes, a transformam em uma feminista antes do tempo dos movimentos feministas organizados. E, como outras mulheres de seu tempo, que ousaram desobedecer, a consequência foi seu “cancelamento” como diríamos na linguagem atual.
Enquanto estava viva não deixou de escrever. E sua escrita era um ato de resistência. Aprendeu a usar o computador com 70 anos, bancou suas publicações criando a Edições Alternativas no seu endereço residencial para falar sobre Cuba. Viajou muitas vezes à Ilha, reeditou Vais bem Fidel, com outro título acrescentando fotos tiradas por ela. E escreveu panfletos para divulgar Cuba no Brasil.
Vejo um fio que conduz a vida dela, onde também encontro casualidades com meu encontro com ela. Relembro o autógrafo pro seu João no livro que li em 1966 e que foi o começo de tudo e leio o autógrafo para a Maria Helena, também num livro sobre Cuba. Os dois me fizeram gostar da Jurema e achar que valia a pena tirá-la do esquecimento.
No livro Vais bem, Fidel:
João Freitas,
Eu ia bem…
Você ainda vai bem?
Um dia iremos otimamente
Até lá a gratidão da
Jurema
Guanabara, 14 de outubro de 1965
No livro Contra toda expectativa Cuba chega lá!:
Maria Helena.
Nova revolução renasceu das cinzas. Pena que Brizola é passado…
Contudo
CUBA Chega lá!
Você ainda acredita?
Eu prossigo na luta! Espero que a história das perseguições não se repita. Apesar de
toda sua inesquecível solidariedade. O abração de Ju
Rio, 28/11/94
Ela morreu dois anos depois desse autografo e foi seu último livro.
*Mestre em Ciências Políticas, doutora em Ciências da Comunicação, foi professora-pesquisadora nas faculdades de Comunicação da PUCRS, UFRGS e Unisinos. Autora do livro A terra e o texto: campos em confronto; organizadora de O jornalismo no cinema, tem artigos em coletâneas e revistas. Jurema Finamour – a jornalista silenciada é sua primeira publicação não acadêmica.
Imagem – reprodução livre da capa do livro.
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