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Opinião

Da escassez à abundância

Da escassez à abundância

Artigo por RED
19/11/2022 11:17 • Atualizado em 20/11/2022 19:02
Da escassez à abundância

De JOÃO BATISTA MEZZOMO*

Para demonstrar em poucas palavras como o mundo pode sair da escassez e entrar na abundância, basta lembrar que, até 100 anos atrás, a maioria das pessoas trabalhavam em atividades braçais e muito poucos não trabalhavam. Naquelas condições, se alguém dissesse que “é preciso dar pão aos pobres”, os não pobres pensariam que diminuiria o pão para eles, e estavam certos. Para ter mais pão era preciso ter mais trigo, para ter mais trigo, mais pessoas deviam cultivá-lo e colhê-lo. E mesmo tendo mais trigo, até ter mais pão muitos mais braços deveriam ser usados para moer o trigo e para fazer o pão. Ocorre que as pessoas estavam ocupadas em outras coisas, na maioria das vezes, em trabalho duro. Nos dias atuais poucas pessoas trabalham diretamente na produção, existe um número crescente de pessoas que trabalham com outras atividades, como serviços ou atividades administrativas, em atividades novas, como operadores ou conselheiros do mercado financeiro, blogueiros ou youtubers. Além disso, uma parte muito maior das pessoas não trabalha, ou por estarem aposentadas, ou por estarem desempregadas. Se houver falta de pão, pouquíssimos deles serão chamados para cultivar trigo, nem para moê-lo, nem para fazer pão, em seu lugar irão máquinas.

O que houve ao longo dos últimos 100 anos, numa história que remonta ao início da humanidade, é que o ser humano desenvolveu profundamente a técnica, manipulando a natureza e colocando-a ao seu dispor. Lembremos aqui que nos prolegômenos nós destacamos a necessidade de não julgar moralmente, se queremos compreender. Hipoteticamente, se aconteceu deste modo é para algum fim, que ora nos escapa, mas estamos em seu encalço. Ocorre que as condições da economia como ciência mudaram profundamente, na medida em que muitas de suas leis foram forjadas no passado e, em vista dessa mudança, se tornaram anacrônicas. Neste artigo vamos tratar apenas da teoria do valor, que começou em Adam Smith, David Ricardo, passando por Marx e depois pelos marginalistas. Para fazer isso, devemos tomar o devido cuidado, uma vez que o assunto “valor” é revestido de fetiche, ou seja, ele costuma estar envolto em uma bruma e apresentar dificuldades quando queremos tratar dele. Para evitar o seu feitiço pensemos, simplificadamente, que o valor é aquilo que determina o preço das coisas no cotidiano de nossas vidas. Dentro do preço que é pago pelo que consumimos, sejam bens ou serviços, está o custo do trabalho de todos aqueles que possibilitaram que ocorresse o nosso consumo, mas não é uma questão simples e banal, como às vezes se quer fazer parecer.

A teoria do valor iniciou em Adam Smith e Ricardo (ainda que Aristóteles tenha tratado superficialmente do assunto), os quais defenderam que o valor se origina do trabalho. Isso parece óbvio, uma vez que o que encontramos em abundância na natureza não tem valor, no sentido econômico da palavra, ou seja, podemos tomar e consumir sem pagar nada, mas passa a tê-lo se agregamos algum tipo de trabalho. Marx tomou essa ideia, que era aceita pela economia clássica, e fundamentou sua concepção, de que toda a riqueza provém do trabalho, que todo o trabalho humano tem “em média” o mesmo valor, de modo que quem acumula riqueza só pode fazer isso comprando o trabalho alheio e pagando-o apenas em parte. Marx procurou demonstrar como o capital faz isso na atividade fabril, observando a indústria na Inglaterra, a qual surgiu e se desenvolveu no período da Primeira Revolução Industrial. Talvez por Marx ter usado a teoria do valor-trabalho para justificar a “expropriação dos expropriadores” e a revolução proletária – talvez não apenas por isso – o fato é que logo depois da publicação das obras de Marx surgiu a teoria do valor-utilidade, dos marginalistas. Resumidamente, ela afirma que o valor vem da utilidade, ou seja, algum bem escasso tem valor e adquire preço se é útil.

Ambas as teorias do valor acima expostas são aceitas pela economia dos dias atuais, ambas justificam determinado modelo econômico, e ambas têm suas vantagens e limitações. Porém nenhuma das duas explica convenientemente de onde se origina o valor. Por exemplo, é possível que haja trabalho, o qual cria determinada utilidade, mas sem criar valor, se ninguém estiver disposto a pagar o seu preço. Pensemos em uma máquina de escrever, ela já teve valor, fruto do trabalho e da utilidade, mas ela perdeu o valor. De modo tal que, mesmo que se usássemos trabalho para fabricá-la e mesmo que ela tenha a mesma utilidade que tinha, ninguém pagará os seus custos de fabricação para usá-la como máquina de escrever. Ocorre que outros produtos tem mais utilidade que uma máquina de escrever por um preço menor, o que mostra que o valor não vem do trabalho, ou da utilidade, simplesmente. Mas de onde então ele viria?

Antes de dizer de onde ele viria, queremos destacar que a teoria do valor-trabalho justifica o modelo preconizado por Marx e tentado na revolução de 1917, que iniciaria com a expropriação dos expropriadores e uma ditadura do proletariado e evoluiria para uma sociedade comunista. Por outro lado, a teoria do valor-utilidade dá sustentação teórica à sociedade capitalista, pois quem cria utilidade são as empresas, as quais têm proprietários. Não seria possível empresas coletivas ou estatizadas produzirem utilidade? Em tese sim, mas o valor continuaria sendo dos proprietários ou do Estado e, historicamente, as tentativas de estatização da propriedade em larga escala redundaram em perda de eficiência e competitividade, relativamente às não estatizadas.

Seria possível uma outra teoria do valor que fundasse um outro modelo de sociedade, compatível com o momento atual, um momento construído pela história enquanto as pessoas se digladiavam defendendo uma ou outra teoria do valor, um ou outro modelo de mundo? Acreditamos que sim, e podemos dizer que no mínimo ela estava embutida na obra Marx, ainda que ele não tenha se dado conta disso, apenas teria esbarrado nela.

Para chegar a tal concepção, perguntemos, como crianças que nada sabem: de onde vem o valor? Resposta: ele vem da valoração. E quem cria a valoração? Resposta: ora, aquele que valora. E quem é que valora? Ora bolas, é o ser humano! Ou seja, o valor se origina das necessidades e desejos do ser humano. De qual ser humano? Resposta: de todo e qualquer ser humano. Logo, o valor pertence a todo o ser humano, independente de ele “trabalhar” ou “expropriar” o trabalho alheio usando métodos cada vez mais intensivos, como entendia Marx. E mesmo aquele que não se envolve de nenhuma forma com qualquer tipo de atividade que crie produtos ou serviços, contribui com a formação do valor. Por isso mesmo, é merecedor de parte dele.

A respeito da formação e expropriação do valor no capitalismo, Marx entendia que isso se dava prioritariamente dentro da atividade fabril, por isso mesmo ela estaria fisicamente separada das demais atividades, dentro dos pavilhões das fábricas, de modo a esconder a exploração. Por isso, Marx tentou mergulhar na atividade fabril para descobrir o segredo da formação e expropriação do valor no capitalismo. Tentarei fazer o mesmo com a teoria do valor acima exposta, de modo a mostrar como ele se forma, num nível micro. Porém, neste caso, o local onde isso se passa não está escondido, mas – como o Deus do Ocidente – está em todo o lugar.

Para demonstrar isso utilizarei um exemplo. Imaginemos que um de nós compre um luxuoso carro zero Km, e saia a rodar pelas ruas de Porto Alegre. Imaginemos que ele pare num cruzamento onde um homem pobre pede ajuda. O homem pobre nada produz, mas seu olhar de admiração diante do carro reluzente e o olhar de respeito, admiração, talvez inveja e mesmo subordinação dirigido ao seu possuidor valora o carro. Se estivéssemos, como Robinson Crusoé, em uma ilha deserta, o carro não valeria nada e o trocaríamos de bom grado por um pouco de comida para não morrer de fome. Ou seja, um bem de uso qualquer não tem valor fora do mercado, independentemente de ter utilidade ou não, ter sido gasto trabalho ou não. Exemplificativamente, uma mesa de madeira, enquanto mero bem de uso, não passa de “coisa prosaica, material, mas logo que se revela mercadoria, (…) expande as ideias fixas de sua cabeça de madeira, fenômeno mais fantástico do que se dançasse por iniciativa própria” (Marx, O Capital). É precisamente aqui, quando se refere ao “fetiche” da mercadoria, que Marx esbarra na teoria do valor que justificaria o socialismo, mas Marx era materialista, por isso não pode ir além do esbarrar.

Na verdade, o valor não é algo estritamente ligado à produção material, muito menos igual a ela, ele tem natureza diferente dela e a excede, donde se origina o excedente, que gera a riqueza acumulada. Se Aristóteles, Adam Smith, Ricardo e Marx não perceberam essa sutil diferença entre produção material e valor, deve-se ao fato de que essa diferença, em seus tempos, era quase despercebida. Nos primórdios da história da humanidade o excedente era acumulado na forma dos próprios produtos, não havia moeda, e quando as havia, eram constituídas de algum tipo de matéria mais ou menos imperecível e escassa, como o sal, a prata e o ouro. Nestas condições, o valor (renda) era igual ao produto físico e os “ricos” acumulavam sua riqueza na forma de bens materiais. À medida que a produtividade do trabalho foi aumentando, pelo avanço da técnica, o valor foi se tornando sensivelmente maior do que a produção material, de modo que ele teve de ser acumulado em moeda fiduciária, a qual no início e até bem pouco tempo atrás era emitida mediante lastro em metais, até que saiu a voar, com pouco ou até mesmo nenhum lastro.

Nesta perspectiva, de que forma um bem de uso pode deixar de ser “coisa prosaica, material” e “se revelar uma mercadoria” de modo a “expandir as ideias fixas de sua cabeça” composta de mera matéria? Resposta: adquirindo um valor no mercado superior aos seus custos de fabricação. Tais custos de fabricação são mais ou menos fixos, dependendo do desenvolvimento das forças produtivas, de modo que vai depender dos desejos das pessoas em geral por aquele bem ele obter um valor de mercado tal que se transforme em mercadoria. Antes disso, ele vale como bem de uso, mas nada vale como bem de troca. Ou seja, pouca gente ou ninguém pagaria por ele um valor igual ou superior aos seus custos.

Uma mercadoria pode ser vista, então, como uma espécie de mariposa que conseguiu alçar voo no céu das mercadorias – o mercado – quando o seu valor, da mercadoria, atribuído por ele, mercado, superou os custos de sua fabricação. Antes e depois disso ela é mero bem de uso: uma mariposa que não consegue voar, por não estar pronta, ou por que seu tempo já passou e queimou suas asas. Mas por que mariposa? Bem, a mariposa é uma borboleta da noite, ela é revestida de mistério, fetiche, e em linguagem popular ela é chamada “bruxa”. E o valor que faz a mercadoria alçar voo é o feitiço do gênero humano, ele excede a simples matéria e só poderá servir efetivamente ao seu “bruxo” quando ele, bruxo, se descobrir como um bruxo, ou seja, um produtor e criador de mais do que coisas materiais.

Bem, saiamos agora das metáforas. Dizer que o valor é uma produção coletiva e todos tem direito a ele, embasa uma sociedade efetivamente “socialista”, num sentido sutilmente diferente do termo usado até hoje, que o prende demasiadamente a uma visão excludente de uma ou mesmo de diversas partes da dita “sociedade”. Para ser detentor de valor, e poder usá-lo para consumir, nenhum ser humano precisa trabalhar, ou criar novos inventos, ou implementar uma empresa que produza utilidades. Para ter direito ao consumo, basta apenas ele ser ser humano. Mas como isso seria possível e, em sendo, por que nunca foi implementado? Isso é possível nos dias atuais porque a “oferta” atingiu um grau de desenvolvimento tal que ela pode responder à “demanda” com uma agilidade nunca dantes vista na história de nosso velho mundo. O sonho de todo empresário nos dias atuais é que haja demanda crescente por seus produtos e serviços e não há um óbice significativo a que a produção aumente. Mas isso não era assim até bem pouco tempo atrás, devido à extrema dependência da produção ao trabalho braçal. De modo a que o sonho humano de uma sociedade socialista, onde cada criança possa nascer como filho de uma família rica – a sociedade – pode enfim se realizar, e ele coincide com o desejo de mais mercado e mais lucros. Pois, se desejamos que a parte da sociedade que passa necessidades deixe de passá-las, quem vai fornecer o que lhe falta hoje? Ora, as empresas e produtores existentes. E quem são os proprietários desses “negócios”? Ora, a parte mais rica da sociedade. Então, a melhora de vida da maioria e o fim da fome e da pobreza vai levar inevitavelmente a mais mercado e mais lucros. Será que isso é um problema?

Vejam, pela teoria do valor apresentada isso não é um problema. Pois riqueza não é o mesmo que produção material e não é o mesmo que consumo. Riqueza é uma reserva que veio do excedente de valor, mas nunca foi produzido materialmente, pois o valor é maior que a produção de mercadorias e serviços. De modo que não há problema em existir riqueza acumulada na medida em que ela não vem disputar os produtos e serviços do mercado. Ocorre que a capacidade que uma pessoa tem de consumo é limitada, toda a renda que for maior que isso ela acumula. Por isso mesmo, se queremos que a produção de um país aumente, de nada adianta aumentar a renda dos ricos, temos de aumentar a renda dos que gostariam de consumir mais e não podem, por insuficiência de recursos. Mas se somos felizes em “tirar dos ricos e dar aos pobres” os ricos ficarão mais pobres? Não, eles ficarão mais ricos ainda, pois os mais pobres gastarão a renda adicional com os negócios dos mais ricos. Então todos podem ganhar? Sim, pois a produção física crescerá. E os mais ricos consumirão mais produtos e serviços? Provavelmente não, pois eles já consomem tudo o que desejam, seu desejo agora é se tornarem mais ricos ainda, e conseguirão. Até por que, em breve veremos que nem precisamos tirar dos ricos para dar aos pobres, pois o valor é um feitiço do bicho chamado ser humano, um bruxo que não sabe que é bruxo.

Na economia atual o assunto não está bem claro, muito em função do fetichismo do valor, que ocorre na economia na forma de leis forjadas num passado que já se foi e nas teorias do valor-trabalho e valor-utilidade, que não dão conta de explicar a verdadeira natureza do valor. Ocorre que a produção final de bens e serviços (não confundir com o valor, que excede essa produção) não está dada antecipadamente, de tal forma que, para os pobres consumirem mais, não precisamos diminuir o consumo dos ricos (até por que isso, na prática, é impossível), mas fazer a produção aumentar. Como podemos fazer isso? Alcançando mais valor aos que desejam consumir mais e não tem dinheiro. E como faremos isso? De múltiplas maneiras, que logo explicitaremos, mas aqui desejamos esclarecer um pouco mais os conhecidos conceitos de oferta, demanda e sua relação com produção e o valor.

Um desejo sem condições da satisfazê-lo não é demanda. Condições para satisfazer um desejo sem tê-lo em nível suficiente para levar à decisão de gastar recursos com ele, também não é demanda. Demanda é quando há um desejo e o desejante tem condições de satisfazê-lo e decide fazer isso. Só assim o desejo entra no mercado sob a forma de demanda. E o que ocorre neste caso? Nos dias atuais, no mais das vezes o desejo torna-se uma ordem e transforma-se em oferta. Nós sabemos que não é BEM isso, mas é QUASE isso, de modo que “si no és lo mismo, pero és igual”. Nos dias atuais e cada vez mais, tudo o que a “burguesia” deseja é que haja pessoas enlouquecidas querendo comprar o que seus “negócios” produzem, ou seja, a “burguesia” quer demanda. Pois não há problemas reais de oferta, os “negócios” da “burguesia” trabalham com alta capacidade ociosa, pois eles precisam disso para o caso de as pessoas “enlouquecerem” querendo comprar os produtos e serviços de seus “negócios”. Se por acaso acontecer de as pessoas enlouquecerem querendo comprar e uma empresa específica não conseguir aumentar a oferta, outras que estavam com os motores acelerados esperando a partida atendem a demanda nova e a empresa que não atende corre o sério risco de quebrar. Portanto, em condições normais, não existem problemas significativos de oferta no mundo, o que limita o crescimento é a demanda.

Funciona assim, numa descrição simplista: uma parte da sociedade é rica e dona dos “negócios”, a outra parte é pobre e só tem sua força de trabalho. Quanto mais a parte pobre consome mais a parte rica fica rica. Se conseguirmos fazer a parte pobre “enricar”, os muito ricos ficarão mais ricos ainda. No limite, perguntamos aqui, é possível que todos os habitantes do planeta se tornem ricos um dia? Será que “eles” vão deixar? Respondendo à questão: sim, é possível que todos os habitantes do planeta venham a se tornar ricos, talvez mais cedo do que imaginamos, e, neste caso, é possível também que “eles” que seriam contra isso sejamos também nós mesmos, quando estamos presos a concepções do passado.

Para que todos os habitantes do planeta sejam ricos, basta que eles tenham um padrão de renda que lhes garanta um consumo acima de determinado nível, mais uma reserva. O primeiro é o mais difícil, pois trata-se de consumo, mas pode ser obtido pelo aumento da produção material, desencadeado pelo aumento da demanda. E ambos os requisitos podem ser alcançados (por exemplo, mas não é a única forma), com o Estado se tornando acionista minoritário dos “negócios da burguesia” e da “classe rural”, adquirindo parte das ações das empresas (mas não necessariamente o comando) e ancorando nisso a política de riqueza e renda mínimas, as quais poderiam se elevar ao nível que se desejar, bastando para isso apenas que haja produção suficiente. E para adquirir tal participação minoritária nas empresas, bastaria o Estado emitir moeda.

A questão de emissão de moeda e se ela é ou não inflacionária nos remete ao começo do fim do artigo de hoje. Há os que pensam, como sustentou Milton Friedman, que a inflação é “sempre e em toda parte” um fenômeno monetário (ou seja, a inflação seria provocada por um excesso de emissão de moeda), o que corrobora a Teoria Quantitativa da Moeda (TQM), a qual reinou por muito tempo, até cair em certo desuso. Outros, como André Lara Resende, tem dito mais recentemente que essa crença por trás da TQM teria sido um equívoco de longa data e que, enfim, emitir moeda não traria necessariamente resultados desastrosos para o valor dela, moeda, e para a economia. Na verdade, isso depende do destino dado à moeda: se ela cria mais demanda num nível em que a oferta não consiga acompanhar, logicamente sua emissão torna-se um componente inflacionário, pois ao final oferta e demanda se igualam: se a oferta física não consegue acompanhar a demanda, o único jeito de elas se igualarem é mediante o aumento dos preços. E quanto mais longe formos no tempo passado, mais a moeda era usada para fins de consumo e mais a oferta tinha rigidez, ou seja, a produção não conseguia aumentar facilmente. Logo, justifica-se plenamente a crença antiga de que emissão de moeda gera inflação, pois era assim que o mundo funcionava de fato. No momento presente, grande quantidade de moeda tem sido emitida não para aumentar a demanda, mas pretensamente para evitar crises financeiras que ao final possam fazer a demanda e a produção cair, a exemplo do que assistimos nos anos 30 do século passado. No caso específico de o Estado vir a adquirir participação minoritária em empresas para com seus lucros e dividendos ancorar uma política de riqueza e renda mínimas, não vislumbramos óbices, ela somente gerará demanda pelo aumento da renda das pessoas beneficiadas, e isso pode ser implementado num ritmo ao qual a oferta possa acompanhar.

A emissão de moeda pode solucionar de outro modo a necessidade de recursos para as atividades do Estado – que hoje é feita prioritariamente através dos impostos – pura e simplesmente eliminando todos os impostos e substituindo-os por moeda emitida pelo próprio Estado. Numa outra concepção de organização da sociedade e do Estado – que evidentemente deveria ser precedida de muita discussão e esclarecimento – os recursos para sustentar a máquina pública poderiam ser obtidos pelos tesouros públicos via emissão de títulos com juros negativos, os quais seriam adquiridos pelo Banco Central. A dívida surgida desapareceria com o tempo pelos juros negativos e, mais uma vez, não vislumbramos nenhum óbice à ideia. O que importa no caso é simplesmente se haverá produtos e serviços para todos, ou não; em havendo, não haverá problemas. A estranheza que sentimos quando pensamos nisso vem de estarmos acostumados a um mundo de escassez. É por causa da limitação de bens e serviços que precisamos cobrar impostos, é por causa dela que temos de trabalhar para viver ou pagar juros. Num mundo de abundância, não importa quanto valor as pessoas detenham, sempre haverá produtos e serviços para atendê-las.

Podemos concluir então que, ao menos em hipótese, para atingir um reino de abundância basta ir paulatinamente concedendo mais valor aos que o tem insuficientemente e, desta forma, permitindo que a oferta aumente. Evidentemente, no caminho haverá obstáculos, mas o principal inimigo é “o mundo em nossa cabeça”, ou seja, nós raciocinamos com base em um mundo que existiu e está lutando para não morrer, enquanto deveríamos olhar para o mundo que já mudou, enquanto discutíamos qual seria o mundo ideal. A respeito de concepções ultrapassadas, não é o mais indicado estar no comando da sociedade o pensamento empresarial, que já teve historicamente o seu sentido, pois ele vê os gastos como custos e tende a querer reduzi-los, retardando o processo. Também, não é bom que no comando se tenha preconceitos contra os “negócios da burguesia”, ou da “classe rural”, pois são justamente eles que terão de atender à demanda crescente. Evidentemente, uma mudança dessa magnitude abrirá necessariamente muitas outras questões, como as referentes às reações às mudanças mesmo junto às pessoas em geral, as referentes aos limites de consumo individual, em face da capacidade do planeta para atender a todos, bem como quanto a necessidade de determinação clara da natureza e tamanho do Estado e da remuneração de seus agentes, e uma infinidade de outras. Mas teremos principalmente de pensar na importantíssima questão do que o ser humano fará frente ao aumento de sua liberdade individual e do seu tempo livre. Do seu ócio frente à diminuição do negócio. Se adotamos o ponto de vista dos fins, teremos de aventar a hipótese de que, se o ser humano vier a se libertar dos grilhões que o prendem, é possível que seja por existir um outro “algo” a espera de sua atenção, talvez seja algo referente ao sentido final disso tudo, que não sabemos qual é, mas há pouco dissemos que estamos em seu encalço.

Por fim, nós não podemos perder de vista que a possibilidade de um mundo de abundância surgiu nos dias atuais como o resultado do avanço da técnica, concretizada na história do Ocidente através das revoluções industriais. Por diversas vezes nós já referimos que, durante o Século XX, enquanto esquerda e direita se digladiavam por modelos de mundo, o capital alocou recursos e a produção nos locais de seus menores custos, no âmbito global, o que fez a produtividade crescer enormemente. No próximo artigo desejamos olhar com mais detalhamento essa história, procurando ver também em que consiste e como foi que surgiu aquilo que denominamos Ocidente, como uma diferenciação a partir de uma realidade pré-existente, a qual detinha fortes semelhanças com as características que identificamos no “resto do mundo”.


*Filósofo, economista e engenheiro elétrico, servidor público da Secretaria da Fazenda do RS.

Imagem em Pixabay.

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