Publiquei esta crônica em 1986, quando Brigitte Bardot fez 52 anos. Ela morreu hoje, aos 91. Viveu muito. Nem sempre foi feliz.
Por LUIZ FERNANDO EMEDIATO*
Vejo seu rosto no jornal.
Com a antiga emoção e o mesmo amor adolescente.
Querida Brigitte: estava na redação deste jornal, pensando em coisas tão terríveis quanto guerra, morte, tempestade, quando de repente caiu em minha mesa a dolorosa fotografia do seu verdadeiro rosto – aquela em que você, emocionada, sorriu na quarta-feira para o mundo e mostrou, finalmente, as inumeráveis rugas do seu antigo sofrimento. Seu rosto quase irreconhecível não era nem ao menos a pálida lembrança daqueles tempos em que sua beleza enlouquecia os homens – aqueles, Brigitte, que em todas as partes do mundo sonharam um dia com você e seus adorados lábios carnudos. Esses lábios outrora tão cheios de sumo e segredos, delírios, insensatez.
Era um rosto cansado, assim me pareceu, depois destes 52 anos em que você teve, eu sei, alegrias, mas também tristezas, desencontros, decepções. Querida Brigitte – querida Brigitte, cuja beleza dourada e luminosa deslumbrou minha adolescência, que também já se distancia de meus olhos: o tempo, eu sei, é cruel, e a morte avança na direção de nossos sonhos todos os dias, todas as horas, minutos, segundos. Mas também sei que neste mundo escuro, às vezes, brilha o sol, faz-se a luz e um pensamento luminoso como o de Einstein – ou o de Cristo, o de Gandhi, o de John Lennon – nos faz ter de novo esperança.
Oh, Brigitte, alguém me telefona e quer saber se vamos publicar a notícia sobre o leilão de suas jóias em benefício dos animais e se não podemos fazer alguma coisa para impedir esse “desperdício”. É uma estudante de cirurgia plástica e ela quer saber também por que você anda tão desleixada da própria beleza, “envelhecendo à toa” quando há no mundo um homem tão competente como o doutor Ivo Pitanguy, que estica a pele das madames e tenta resgatar-lhes o perdido viço da juventude. Tinha diante de mim a sua dura fotografia e, então, fiquei pensando que reação teria a moça no outro dia, quando a visse no jornal. Acho que a moça chorou. Ah, Brigitte, acho que as pessoas não são mais capazes de ver a verdadeira beleza. Outro dia, um sensível amigo meu, Caio Fernando Abreu, ficou triste por ver nos jornais o rosto destruído de Rita Hayworth, que morreu de velhice precoce, enrugada e insana. Não compreendo: a beleza da juventude é uma coisa cara para nós, eu sei, e nossa pobre carne caminha tão rápido para o fim; mas será que a velhice é feia, é suja, é vil?
Querida Brigitte, que iluminou os meus mais doces sonhos de adolescente: olho sua fotografia da última quarta-feira e vejo no seu rosto a paz que você não tinha quando era bela e tentava matar-se repetidas vezes. Há três anos, quando você fez 49 anos de idade, encontraram mais uma vez o seu corpo intoxicado de vinho e pílulas numa praia da Riviera. Quanta dor havia no seu rosto, meses depois, quando concordou em ser entrevistada na televisão e disse: “A gente passa a vida inteira cuidando do corpo, e tudo o que vejo agora é minha carne apodrecer”. Ah, Brigitte: como essas coisas doem quando a gente não tem alguma coisa em que acreditar… Mas agora parece que você é feliz e espero não estar enganado. Pois olho os seus olhos que brilham por trás das rugas e acho que vejo neles a silenciosa paz de quem talvez tenha mesmo encontrado o seu rumo, depois de tanta dor e amargura.
Pois, hoje, você não é mais caçada como um animal pelos cruéis jornalistas e fotógrafos que só pensavam em seu corpo nu pelas praias, nos seus lábios, nos seus seios. E então você disse: “Odeio os homens, eles me repugnam. Nem os animais se comportam como eles”.
Eu me lembro de sua amargura diante daqueles homens que matavam bebês-focas a pauladas no Canadá; lembro-me da sincera dor no seu rosto ao abraçar-se com um daqueles bichinhos cujas narinas tremiam. É triste, eu sei. Aqui no Brasil, algumas vezes os homens espancam criancinhas abandonadas – estas crianças, Brigitte, que às vezes morrem trêmulas de frio debaixo das pontes e nas calçadas. Elas são tão frágeis quanto seus bichos e espero que um dia possamos encontrar um jeito de salvá-los todos: as criancinhas e os bebês-focas.
Sei, Brigitte, que você escolheu cuidar dos seus bichos, e não do que lhe resta de beleza neste rosto cansado e neste corpo que já carrega mais de meio século de vida, e que isso a faz feliz. E que mais importa, neste contraditório mundo pelo qual apenas passamos, tão transitórios quanto vagalumes, abelhas, libélulas? Por isso, daqui do meu canto só posso dizer: seja feliz, então. Seja feliz, querida.
*Luiz Fernando Emediato é jornalista.
Foto de capa: Reprodução




