Uma Reflexão Essencialista Sobre Dignidade Humana

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Por JOSÉ ORLANDO SCHÄFER*

A partir do segundo pós-guerra, a Dignidade Humana foi incorporada por diversas Constituições como princípio jurídico fundamental, gerador de direitos e deveres. Seu ápice normativo encontra-se na Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Organização das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, que lhe confere posição de fundamento universal. Essa centralidade, contudo, não surgiu de forma imediata, mas é resultado de um longo percurso intelectual composto por contribuições religiosas, morais, filosóficas e políticas formuladas ao longo da história. Apesar dessa origem plural, a Dignidade passou a ser juridicamente acolhida como qualidade inerente ao ser humano, e é precisamente essa inerência — isto é, sua ligação com a essência humana — que se pretende demonstrar.

Afirmar, no plano jurídico, que a Dignidade é inerente ao ser humano constitui tarefa complexa, sobretudo em razão da multiplicidade de concepções, idealizações e abstrações que frequentemente obscurecem o seu caráter normativo. Em razão desses equívocos, não são raros os que negam seu status jurídico ou sua aplicabilidade prática, geralmente por desconhecerem tanto a natureza humana quanto o fundamento racional da Dignidade. O maior desafio para formular uma concepção essencialista e jurídica da Dignidade Humana consiste, portanto, em superar interpretações de índole supersticiosa, religiosa ou metafísica que, embora historicamente relevantes, afastam a noção de Dignidade das exigências próprias do Direito, o qual demanda definibilidade, racionalidade e aplicabilidade objetiva.

Não se pretende, com isso, negar o papel histórico das tradições religiosas na construção da ideia de Dignidade, mas, ao contrário, dessacralizá-la, retirando-lhe o véu metafísico para situá-la definitivamente no campo jurídico como categoria racional apta a produzir direitos, deveres e limites concretos ao exercício do poder, seja público, seja privado. No âmbito da fé, a conduta humana é exigida como consequência da crença; no Direito, a conduta é exigida como consequência da razão, isto é, da compreensão de que todo ser humano possui uma essência que deve ser respeitada e promovida: a necessidade de perseverar na existência, realizar seus desejos e desenvolver suas potências.

Essa reflexão afasta-se da doutrina da imago dei e reorienta a Dignidade para seu fundamento racional. Tal transposição acarreta a perda de certo “encanto” metafísico, mas, em contrapartida, confere clareza conceitual e aplicabilidade prática, permitindo sua plena incorporação ao universo jurídico. Para esse propósito, recorrem-se às lições do filósofo racionalista do século XVII, Baruch de Espinosa, que, ao identificar Deus e natureza (Deus sive natura), estabelece um sistema de inteligibilidade absoluta do real, livre de mistério e alheio à fé como fundamento epistemológico. Como observa Marilena Chaui, em Espinosa não há tragédia nem mistério, mas plena confiança na razão, sendo somente sob o seu império que o ser humano pode trilhar paixões positivas como a alegria e o amor.

A Dignidade Humana, em sua compreensão essencial, exige essa base racional, pois a razão conduz ao reconhecimento de que todo ser humano é portador de uma essência e, precisamente por isso, possui Dignidade. Assim, torna-se possível legitimá-la como princípio jurídico organizador da vida social e do Estado, conforme determina o artigo 1º, inciso III, da Constituição Brasileira de 1988. Embora o pensamento religioso tenha sido decisivo para a história da proteção da Dignidade Humana, no atual estágio evolutivo do Direito ele já não se mostra suficiente, sendo necessária uma fundamentação racional, clara e objetiva. Essa fundamentação encontra sua forma mais profunda no método genético espinosano, que busca compreender não apenas os efeitos de um conceito, mas suas causas, o que exige responder se existe uma Dignidade inerente ao ser humano fundada em sua essência e quais são seus fundamentos e consequências jurídicas.

Espinosa desenvolveu um sistema filosófico de amplitude extraordinária que rompe com grande parte do pensamento dominante desde a Modernidade. Embora tenha sido a Modernidade o período que consolidou a noção jurídica contemporânea de Dignidade, é nas lições espinosanas, especialmente na Ética, que se encontram os elementos necessários para reconstruí-la em bases racionalistas e essencialistas. Para Espinosa, todo ser humano possui uma essência constituída por modos dos atributos divinos — pensamento e extensão — pois tudo o que existe é expressão da única substância infinita. Não há, em sua filosofia, livre-arbítrio, sendo a liberdade compreendida como consciência da necessidade, isto é, como reconhecimento racional das causas que determinam a ação.

O método espinosano é genético: conhecer é conhecer pelas causas, razão pela qual o ser humano só pode ser compreendido quando se explicitam as causas de sua essência, existência e ação. A essência humana não se reduz à composição de corpo e mente, mas inclui uma realidade dinâmica, o conatus, definido como o esforço de perseverar na existência, inseparável dos afetos que aumentam ou diminuem a potência de existir. O desejo, por sua vez, é compreendido como a própria essência do homem enquanto determinada a agir por uma afecção qualquer. Assim, a essência humana compõe-se de extensão, pensamento, conatus e desejo, sendo sempre singular, pois cada ser expressa a substância de modo único. Essa singularidade fundamenta a diferença entre os seres humanos, mas não exclui a igualdade, que se manifesta como identidade de natureza, já que todos compartilham a mesma estrutura essencial.

A essência humana existe simultaneamente na diferença e na igualdade, ambas condições lógicas e naturais da existência do humano. O ser humano é necessariamente relacional, existindo apenas na relação com outros seres humanos. Para Espinosa, nada é mais útil ao homem do que o próprio homem, razão pela qual a igualdade proporcional entre seres diferentes constitui a base natural da vida social. Quando os homens vivem segundo a razão, buscam o que é de máxima utilidade para si e, com isso, tornam-se mutuamente úteis, antecipando concepções contemporâneas sobre capacidades humanas.

A partir dessas premissas, torna-se possível reconstruir a Dignidade Humana como qualidade inerente ao ser humano, fundada na própria essência que o constitui. Não se trata de atributo concedido por autoridade externa, mas de algo que decorre necessariamente do fato de existir como ser humano. A Dignidade é, assim, qualidade ontológica anterior a qualquer ordem jurídica ou convenção social, coincidindo com a própria essência atual do humano. Negá-la significa negar a própria humanidade. Essa concepção desloca o debate da Dignidade do campo axiológico para o campo ontológico, compreendendo-a como aquilo que é necessário para perseverar na existência e desenvolver as potências humanas.

A razão revela que qualquer violação à Dignidade representa um ataque direto à própria constituição do ser humano, não se tratando de mera ofensa moral, mas de agressão às condições mínimas de manutenção da vida e do exercício da liberdade real. A Dignidade comporta, assim, uma dimensão negativa, que veda condutas que reduzam ou anulem a potência de existir, e uma dimensão positiva, que exige condições materiais e sociais que permitam o desenvolvimento das capacidades humanas. Ela traduz-se no direito de viver conforme a própria essência, sem exigir perfeição moral ou mérito, sendo inerente, automática e universal.

Desse fundamento racional decorre a necessidade de organização política e jurídica da vida em sociedade, pois apenas a convivência ordenada permite a realização da essência humana. Para Espinosa, viver segundo a razão é viver em comum, sendo a vida social condição de potência e liberdade. A Dignidade, portanto, só pode ser plenamente compreendida no contexto coletivo, onde cada indivíduo reconhece no outro o mesmo esforço de existir.

Ao ingressar no ordenamento jurídico como princípio fundamental, a Dignidade não perde sua condição ontológica. O Direito não a concede, mas a reconhece, protegendo e promovendo aquilo que lhe é anterior. A Constituição Federal de 1988 consagrou a Dignidade da Pessoa Humana como fundamento da República, conferindo-lhe posição estruturante e irradiadora de todo o sistema jurídico. Como norma-princípio, ela orienta a interpretação das normas e impõe deveres concretos ao Estado e aos particulares, fundamentando direitos civis, políticos, sociais e culturais. Não se trata de preceito simbólico, mas de norma vinculante que impõe limites ao exercício do poder.

A jurisprudência brasileira tem reiteradamente afirmado a centralidade da Dignidade, embora, por vezes, incorra em abordagens moralistas ou paternalistas. A compreensão essencialista aqui defendida contribui para superar essas oscilações, ao situar a Dignidade como proteção da essência humana e da potência de existir, e não como instrumento de imposição de concepções morais particulares. O Direito deve ser compreendido como forma racional de organização da vida em comum, garantindo que nenhuma política, norma ou decisão reduza o ser humano a objeto ou meio.

Essa dimensão jurídica manifesta-se também nas relações sociais, pois a Dignidade não é apenas limite ao Estado, mas parâmetro das relações entre particulares. A essência humana realiza-se no convívio social, sendo o outro condição de possibilidade da própria vida. A Dignidade funciona, assim, como regra de convivência, vedando tratamentos degradantes, humilhantes ou discriminatórios, protegendo contra a exploração econômica e assegurando condições mínimas de existência. No campo trabalhista, por exemplo, a dignificação do trabalho expressa diretamente esse princípio.

Do ponto de vista filosófico-jurídico, a Dignidade implica o reconhecimento da igualdade essencial entre todos os indivíduos, impedindo que diferenças sejam usadas como fundamento de desigualdades injustificadas. A vida social é marcada por afetos que podem aumentar ou diminuir a potência de existir, e a Dignidade atua como critério racional para ordenar esses encontros, promovendo a alegria e afastando a tristeza. Uma sociedade fundada na Dignidade organiza suas instituições de modo a fortalecer a potência de agir dos indivíduos e da coletividade, assegurando políticas públicas redistributivas e mecanismos de combate à exclusão.

A Dignidade Humana, enquanto qualidade inerente ao ser humano, constitui elemento essencial para a compreensão da existência individual e da vida em sociedade. Longe de ser mera construção moral, religiosa ou política, ela decorre da própria essência humana, tal como explicitada pela filosofia espinosana.

Essa concepção permite compreendê-la como condição ontológica necessária à preservação e ao desenvolvimento da vida humana, sendo o Direito apenas o instrumento de sua positivação. A Dignidade exige a proteção da essência humana contra toda forma de violação, a promoção das condições materiais indispensáveis à vida, a organização racional da convivência, a limitação do poder estatal e privado e a garantia da igualdade essencial entre todos.

Fundamentada no método racional de Espinosa, é possível afirmar que a dignidade é da essência do ser humano e, por isso, ela se insere no centro do projeto constitucional e democrático contemporâneo, tornando-se não apenas fundamento do Estado de Direito, mas princípio ordenador da vida social e expressão jurídica da própria essência humana.


Artigo na íntegra foi publicado pela Revista da Escola Judicial do TRT da 4ª Região em 2025.  

*José Orlando Schäfer é advogado e escritor.

Foto de capa Reprodução

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