A Cidade que Pune Quem Ajuda: O Polêmico Projeto que Criminaliza a Solidariedade em Porto Alegre

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A cidade que pune quem ajuda - Imagem gerada por IA ChatGPT

Projeto que multa voluntários é denunciado como criminalização da solidariedade

Da REDAÇÃO

Artigo 4/7 da série Porto Alegre sob cerco

PL de Comandante Nádia impõe regras rígidas e multas para voluntários que distribuem alimentos às pessoas em situação de rua

Entre todas as medidas que compõem a atual agenda de controle social na Câmara Municipal de Porto Alegre, nenhuma provocou reação tão ampla e tão imediata quanto o projeto de lei apresentado pela vereadora Comandante Nádia (PL) que pretende regulamentar — e restringir — a distribuição de alimentos às pessoas em situação de rua. O texto estabelece que qualquer grupo, entidade ou voluntário que deseje oferecer comida deve seguir regras rígidas e obter autorização prévia do município, sob pena de multas que podem chegar a R$ 2,9 mil. A justificativa oficial recorre ao vocabulário sanitário e administrativo: “organização do espaço público”, “segurança alimentar”, “controle de fluxo”, “ordem urbana”. Mas o impacto real vai muito além da linguagem burocrática.

O projeto foi recebido por organizações sociais, pesquisadores, coletivos religiosos e entidades de direitos humanos como uma tentativa evidente de criminalizar a solidariedade. Em um cenário de aumento da população em situação de rua, agravamento da pobreza urbana e retração de políticas públicas de assistência social, a proposta foi lida como uma inversão de prioridades: ao invés de enfrentar as raízes do problema, pune quem tenta mitigá-lo.

Movimentos como os Cozinheiros do Bem, a Pastoral do Povo de Rua, as Marmitas da Resistência, grupos ecumênicos e diversas entidades independentes emitiram notas denunciando que a proposta transforma um gesto essencial de cuidado em atividade burocrática e potencialmente punível. Para muitos desses grupos, a rotina já é difícil o suficiente: falta estrutura, sobram demandas e há precariedade material constante. Adicionar multas e regulações rígidas significa, na prática, inviabilizar sua atuação.

A reação institucional também foi significativa. A OAB/RS questionou a constitucionalidade do projeto, argumentando que regulamentar doações sem justificativa sanitária objetiva viola liberdades fundamentais e cria um ambiente de intimidação contra iniciativas populares de assistência. A Defensoria Pública ressaltou que a Constituição brasileira protege ações solidárias e que nenhuma legislação pode restringi-las sem evidências técnicas que sustentem tais limitações. Organizações de direitos humanos foram categóricas ao afirmar que o projeto incorre no risco de punir quem cumpre funções que o Estado não realiza.

Além das críticas diretas, especialistas em políticas urbanas e assistência social destacam que esse tipo de legislação não é inédito — e que seus resultados são invariavelmente desastrosos. Cidades como Fort Lauderdale, Las Vegas e Budapeste implementaram medidas semelhantes ao longo da última década, frequentemente justificadas por argumentos sanitários e de organização do espaço. O resultado, em todos os casos, foi o mesmo: aumento da vulnerabilidade das populações de rua, retração da rede de solidariedade civil e condenações públicas de organismos internacionais. Em alguns lugares, as leis foram derrubadas judicialmente. Em outros, geraram protestos massivos.

É nesse contexto que o projeto tramita em Porto Alegre. Para pesquisadores da área, a proposta está inserida em um conjunto maior de ações que buscam “ordenar” a cidade às custas de invisibilizar seus moradores mais pobres. Trata-se do que acadêmicos classificam como políticas de higienização urbana — não no sentido sanitário, mas simbólico. A lógica é simples: se os pobres desaparecerem das ruas (seja pela repressão, seja pela ausência de ajuda), a narrativa da ordem se sustenta. Trata-se de um modelo de cidade que administra a pobreza afastando-a do olhar público, não enfrentando suas causas estruturais.

O projeto também adiciona um novo capítulo à escalada autoritária dentro da Câmara Municipal. Ele não surge isoladamente: acompanha o fechamento das galerias ao povo, a repressão policial interna, as tentativas de cassação de parlamentares da oposição e as medidas que afetam catadores e trabalhadores informais. Um padrão se forma: os grupos vulneráveis e as vozes dissidentes são tratados como problema, não como participantes legítimos da cidade.

Para movimentos sociais, a mensagem transmitida pelo projeto é devastadora. Ela sugere que alimentar pessoas com fome — um ato historicamente protegido, incentivado e moralmente irrefutável — pode se transformar em infração administrativa. Sugere também que a pobreza deve ser gerida pela coerção e não pela política pública. Em um país onde a fome voltou a ser tema urgente, esse tipo de sinalização tem peso simbólico profundo.

O impacto potencial é enorme: redes de solidariedade podem ser desmobilizadas; pessoas em situação de rua podem ficar ainda mais expostas; voluntários podem temer se aproximar de ações humanitárias; e o Estado, já fragilizado em sua capacidade de assistência, assume uma postura que desestimula exatamente aqueles que atuam onde ele falha. Não é por acaso que a proposta se tornou alvo de repúdio de uma ampla coalizão que reúne desde movimentos progressistas até setores religiosos e instituições jurídicas.

Em última análise, a discussão travada na Câmara não é apenas sobre autorizar ou proibir a distribuição de alimentos. É sobre o tipo de cidade que Porto Alegre pretende construir. É sobre se o cuidado é visto como ameaça ou como valor. É sobre se o espaço urbano é compartilhado por todos ou apenas pelos que se encaixam num ideal de ordem. E é também sobre democracia: impedir voluntários de alimentar o próximo é, ao mesmo tempo, limitar a cidadania ativa e restringir o direito coletivo ao espaço público.

Nos próximos artigos, a RED investigará como esses elementos se articulam em um desenho mais amplo de militarização da política urbana e como Porto Alegre passou a adotar uma lógica de gestão que trata a vulnerabilidade como caso de polícia.

A série continua.

Leia também os artigos anteriores da série:

Escalada autoritária na Câmara de Porto Alegre: RED denuncia ataques à democracia local

Repressão dentro da Câmara: violência policial marca ruptura democrática em Porto Alegre

Comissão de Ética sob pressão: como a Câmara tenta calar a oposição em Porto Alegre

• A cidade que expulsa seus trabalhadores: catadores viram alvo da higienização urbana em Porto Alegre


Ilustração da capa: A cidade que pune quem ajuda – Imagem gerada por IA ChatGPT.

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