Crise na Venezuela: EUA pressionam por petróleo e ameaçam estabilidade na América Latina

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Petroleiro venezuelano apreendido pelos EUA - Foto reprodução do X da Procuradoria-geral dos EUA.

Por BENEDITO TADEU CÉSAR*

Narcotráfico como pretexto, petróleo como objetivo

O espectro de uma intervenção militar dos Estados Unidos na Venezuela voltou a rondar a América Latina no final de 2025. Com Donald Trump de volta à presidência, o discurso oficial de combate às drogas e ao “narcoterrorismo” tem servido de cortina de fumaça para interesses mais profundos: o controle das vastas reservas de petróleo venezuelano, as maiores do mundo.

Recentes medidas de Trump incluíram o bloqueio de navios-petroleiro e a apreensão de um navio-petroleiro venezuelano pelos EUA, numa escalada que Washington justifica sob a retórica de combate ao crime transnacional, mas que se enraíza numa longa tradição de intervenção estadunidense na região. Trump chegou a afirmar que “os Estados Unidos ficarão com o petróleo apreendido”, realçando que tais medidas visam desestabilizar Maduro, enquanto alavancam o interesse americano nos recursos energéticos venezuelanos, muito mais próximos dos EUA do que o petróleo da Arábia Saudita.

Essa dinâmica não é nova. Desde a Doutrina Monroe de 1823, que proclamou que a América seria “livre de futuras colonizações europeias”, a política externa dos EUA tem visto o continente como seu “quintal”, reinterpretando a doutrina repetidamente para justificar intervenções e influências diretas e indiretas nos assuntos internos latino-americanos ao longo dos séculos XIX, XX e XXI.

A Venezuela detém mais de 300 bilhões de barris em reservas de petróleo, superando países como Arábia Saudita e Irã. O petróleo venezuelano, embora pesado, é compatível com refinarias norte-americanas — especialmente as da Costa do Golfo — o que, aliado à proximidade geográfica e à infraestrutura existente, torna esse recurso um ativo de altíssimo valor estratégico para Washington. Controlá-lo implicaria não apenas ganhos econômicos, mas uma redução da dependência americana em relação ao Oriente Médio e um enfraquecimento da influência de potências rivais como China e Rússia na região.

Por trás da narrativa de combate às drogas, no entanto, os dados reais são contundentes: a Venezuela não é um grande produtor de cocaína ou opiáceos direcionados aos Estados Unidos. O país pode funcionar como rota de trânsito, mas as principais rotas de entorpecentes que chegam ao mercado norte-americano continuam a passar por México e Colômbia. A ênfase do governo Trump em classificar cartéis latino-americanos como “terroristas” e em expandir operações militares e navais no Caribe parece mais alinhada a uma estratégia geopolítica ampla do que a uma resposta a fluxos de drogas que não são dominantes nem decisivos para o problema de entorpecentes nos EUA.

Um Estado sitiado por dentro

No plano interno venezuelano, a crise política é profunda. O apoio popular a Nicolás Maduro tem se erodido ao longo dos anos, e pesquisas recentes indicam que uma grande maioria da população deseja uma mudança de governo. A oposição, fragmentada e enfraquecida por barreiras institucionais impostas pelo regime, encontrou em María Corina Machado — vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 2025 — uma figura de maior visibilidade nacional e internacional. Machado, agora em exílio, declarou apoio a ações que visam pressionar Maduro, incluindo a apreensão de petroleiros venezuelanos pelos EUA, afirmando que tais passos são necessários para desmontar o aparato de repressão governamental e que “as empresas americanas vão ganhar muito dinheiro com o petróleo venezuelano” sob uma eventual abertura econômica do país.

O bloco militar venezuelano, no entanto, continua sendo o principal sustentáculo de Maduro. As Forças Armadas ocupam posições estratégicas na economia e no Estado, comandando empresas estatais e controlando recursos. A fidelidade dos altos oficiais tem raízes menos ideológicas do que materiais: o risco de perder poder, status e acesso privilegiado à renda estatal em caso de queda do regime é um fator de coesão poderosa. Por isso, qualquer ruptura na cúpula militar pode desencadear tensões internas de grande magnitude.

Outro elemento estrutural da Venezuela é a dependência quase total de sua economia da extração do petróleo. Mais de 80% das exportações e a maior parte das receitas do Estado provêm do setor petrolífero. O país não produz internamente a maioria dos bens que consome e depende fortemente de importações para alimentos, produtos de consumo e insumos industriais. Essa condição transformou a elite econômica e grande parte das estruturas estatais em segmentos fortemente vinculados à economia do petróleo, intensificando a vulnerabilidade do país a choques externos e a disputas geopolíticas.

América Latina entre a guerra e a diplomacia

No plano regional, a possível intervenção dos EUA na Venezuela suscita profundas preocupações quanto à estabilidade na América Latina e no Caribe. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva tem repetidamente advertido contra a intervenção militar estrangeira na região. Lula declarou que a América Latina deve ser mantida como “zona de paz” e que intervenções externas podem causar mais danos do que benefícios, ecoando a memória histórica de conflitos e ingerências no subcontinente.

O governo brasileiro adota uma postura cautelosa: evita críticas mais duras que possam encerrar canais de diálogo ou posicioná-lo fora de um espaço de mediação diplomática entre Washington e Caracas, ainda que não reconheça a legitimidade das eleições que mantiveram Maduro no poder, nem pretenda se alinhar diretamente ao projeto estadunidense de mudança de regime na Venezuela. Há preocupações estratégicas — como o risco de uma crise migratória em larga escala, fluxo de refugiados e um potencial vácuo de poder na Venezuela — que reforçam a prioridade brasileira de evitar qualquer escalada militar.

No espaço internacional, China e Rússia também observam com preocupação. A China, credora bilionária da Venezuela, com contratos pagos em petróleo, e a Rússia, aliada política e militar de longa data, condenariam qualquer intervenção armada dos EUA, mas dificilmente responderiam com ação militar direta, preferindo mobilizar pressão diplomática e econômica em fóruns multilaterais.

O cenário que se desenha é de alta tensão. Uma potência hegemônica ensaia novo ciclo de intervenções sob pretextos morais, mas movida por interesses energéticos e geoestratégicos, enquanto um país enfraquecido econômica e politicamente é colocado no centro de uma disputa internacional que extrapola em muito suas fronteiras. A crise venezuelana é, assim, ao mesmo tempo um drama nacional e um espelho das grandes correlações de poder no século XXI — onde soberania, recursos naturais e ambições hegemônicas continuam a moldar destinos, muitas vezes às custas das populações mais vulneráveis.

Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.


Foto da capa: Petroleiro venezuelano apreendido pelos EUA – Foto reprodução do X da Procuradoria-geral dos EUA.

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