Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
O Congresso Nacional parece ter feito sua escolha. E ela é clara: em vez de se comportar como uma instituição republicana, comprometida com o interesse público e a democracia, decidiu funcionar como uma engrenagem de proteção de si mesmo, de seus aliados e de seus financiadores ocultos. Se ainda não assumiu formalmente o papel de inimigo do povo, já se comporta abertamente como inimigo da democracia.
Nos últimos meses, a Câmara dos Deputados e o Senado Federal vêm protagonizando uma sequência de decisões que, além de contrariarem frontalmente o interesse público, atentam contra a integridade das instituições e reescrevem, a partir da conveniência dos poderosos, o próprio pacto constitucional. É um Congresso que tem reiteradamente legislado em desacordo com os interesses sociais mais amplos, priorizando setores que já concentram poder e riqueza. E não há como disfarçar: essa captura institucional está hoje sob hegemonia de uma extrema-direita que se apresenta como Centrão, mas opera com método, disciplina e objetivos claros. Trata-se de um projeto: sabotar o governo Lula, inviabilizar políticas públicas, minar sua legitimidade e viabilizar a eleição de Tarcísio de Freitas em 2026. A estratégia é clara — e perigosa.
A interpretação que emerge com nitidez dos fatos mais recentes é inescapável: o golpe de Estado iniciado com os ataques de 8 de janeiro não foi interrompido. Apenas mudou de forma. A tentativa de ruptura institucional deixou as ruas e as redes bolsonaristas e passou a operar nos gabinetes refrigerados do Congresso Nacional. O golpe segue em curso — agora com aparência legal, sob a capa da normalidade democrática, mas com a mesma lógica de concentração de poder, destruição de direitos e imposição autoritária de uma agenda regressiva.
A blindagem como método de autodefesa
Entre as tentativas mais escancaradas de autoproteção institucional esteve a PEC da Blindagem, aprovada pela Câmara em setembro, com o objetivo de dificultar o processamento judicial de parlamentares. Ela autorizava votações secretas para pedidos de autorização ao STF, reduzia a possibilidade de cassação de mandatos por decisão judicial e institucionalizava o manto da impunidade. Foi barrada no Senado, é verdade, mas só após intensas mobilizações populares que expuseram a vergonhosa tentativa de colocar os parlamentares acima da lei. A PEC não foi uma anomalia. Foi um sintoma. De um Congresso que se vê mais como castelo que como casa do povo.
Anistia disfarçada: o Congresso protege os seus
O mesmo Congresso que se recusou a aprovar políticas sociais mais robustas ou projetos de taxação de grandes fortunas, não hesitou em correr para aprovar uma proposta que reduz penas para os envolvidos nos ataques golpistas de 8 de janeiro. Trata-se do projeto da dosimetria penal, que impõe a não cumulatividade de penas para crimes praticados em atos de tentativa de golpe. Uma manobra legislativa com nome técnico e aparência jurídica, mas com finalidade política e efeitos profundamente morais: reabilitar os derrotados de 2022. Jair Bolsonaro, inelegível por decisão definitiva do STF, é o maior interessado. O projeto, relatado por Paulinho da Força, serve como moeda de troca no jogo de poder que se articula nos bastidores do bolsonarismo e do centrão, para abrir caminho à candidatura de Tarcísio de Freitas, figura mais palatável ao mercado e à elite financeira.
A escolha do relator da proposta no Senado não é acidental: Espiridião Amin, político de longa trajetória conservadora, defensor do regime militar e aliado próximo da família Bolsonaro, foi escalado para garantir que o projeto avance com rapidez e segurança. Trata-se de um jogo combinado. Um Congresso que já não legisla, mas negocia sentenças.
Ofensiva contra o STF e a Constituição
Além da ofensiva contra o Executivo, o Congresso intensifica seu enfrentamento ao Judiciário. A aprovação da PEC do Marco Temporal, em flagrante desrespeito à decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou a tese inconstitucional, representa mais que um gesto simbólico: é um ato de força contra o princípio do direito originário dos povos indígenas, consagrado na Constituição. Ao impor um marco arbitrário — 5 de outubro de 1988 — como condição para a demarcação de terras, o Congresso reescreve, de forma autoritária, a história e os direitos dos povos originários. Não se trata de ignorância jurídica. Trata-se de ofensiva deliberada.
Essa tensão entre Congresso e STF também se aprofundou com a reação à indicação de Jorge Messias para o Supremo Tribunal Federal. O presidente do Senado, Davi Alcolumbre, aliado próximo e afilhado político do ex-presidente da Casa, Rodrigo Pacheco, liderou a insatisfação interna com a decisão de Lula. O motivo não é técnico. Nos bastidores, ventilava-se a expectativa de que o próprio Pacheco fosse o indicado ao cargo, o que garantiria ao Congresso mais um voto confiável em processos que envolvem parlamentares acusados de participação no esquema do orçamento secreto. Ao manter sua prerrogativa constitucional de escolher o ministro do STF e não ceder às pressões do bloco, Lula enfrentou a fúria do Senado. A reação de Alcolumbre e aliados traduz um projeto de captura do Judiciário. Trata-se de mais um capítulo do conflito entre poderes, motivado não por divergências de princípios, mas pelo desejo de controle institucional e pela impunidade dos próprios.
Um Parlamento seletivo na repressão
A repressão seletiva escancarou-se com a violenta retirada do deputado Glauber Braga do plenário, por protestar, de forma pacífica, contra a votação da anistia disfarçada. Sentado na cadeira da presidência — gesto já realizado impunemente por deputados bolsonaristas meses antes — Glauber foi retirado à força por ordem de Hugo Motta. A TV Câmara foi tirada do ar. A imprensa, expulsa. Uma encenação de censura digna de regimes de exceção. O que estava em jogo não era apenas o controle do plenário. Era a tentativa de silenciar a crítica, interditar o dissenso e criminalizar o protesto.
Parlamentares e crime organizado: conexões cada vez mais explícitas
Enquanto o Congresso se apressa para proteger os seus, a aliança entre parlamentares e o crime organizado ganha novos capítulos. A prisão do presidente da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, Rodrigo Bacellar, acusado de interferir em investigações sobre um deputado ligado ao Comando Vermelho, é sintomática. A própria Alerj decidiu soltá-lo poucos dias depois, revelando que o pacto de impunidade entre os pares não conhece fronteiras partidárias.
Investigações em curso revelam que emendas parlamentares têm sido direcionadas a municípios sob influência de facções, por meio de empresas laranjas, licitações fraudulentas e contratos simulados. É o orçamento público servindo ao crime. Um escândalo com verniz legal, sustentado por um sistema que se retroalimenta: quem desvia financia, quem financia se elege, quem se elege blinda.
Licenciamento ambiental e os interesses do capital
A ofensiva não se limita aos direitos civis e políticos. O Congresso também atua para desmontar a legislação ambiental. A derrubada dos vetos presidenciais à nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental representa um retrocesso perigoso, que libera obras de alto impacto sem estudos prévios adequados, fragiliza a atuação de órgãos de controle e ameaça comunidades inteiras. A bancada do boi, do garimpo e do cimento comemorou. A sociedade, em silêncio, vai acumulando perdas.
Um projeto articulado: inviabilizar Lula, empurrar Tarcísio
Não se trata de episódios isolados. Trata-se de um plano. Um Congresso dominado por uma extrema-direita disfarçada de moderação, que atua para sabotar o Executivo, intimidar o Judiciário, desmantelar a legislação social e ambiental e pavimentar o caminho para a volta ao poder de um projeto autoritário. Se Bolsonaro já não serve ao capital por sua instabilidade, Tarcísio é o nome da vez. Para viabilizá-lo, será necessário destruir politicamente o governo Lula — ou pelo menos paralisá-lo. É o que está em curso.
Hora de reagir
Diante desse cenário, a indignação é mais do que legítima. É necessária. Aceitar um Congresso que se transforma em instrumento de sabotagem institucional, proteção de criminosos e ataque à democracia é permitir que a barbárie se normalize. A resposta precisa vir das ruas, das universidades, das redes, das assembleias populares.
Neste final de semana, manifestações estão sendo convocadas em todo o país por movimentos sociais, sindicatos, organizações estudantis e coletivos em defesa da democracia. Não é apenas mais um ato. É um marco. Uma chance de mostrar que a sociedade não aceitará calada a demolição lenta e calculada de seus direitos. Que não será cúmplice do silêncio. Que não assistirá inerte ao avanço da impunidade, da mentira e da destruição institucional.
É hora de se levantar.
Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Ilustração da capa: Deputado Glauber Rocha retirado à força da cadeira do presidente da Câmara. Vídeo nas redes sociais.




