Por CASTIGAT RIDENS*
O dia amanheceu com cheiro de enxofre no Congresso. Não pela meteorologia, mas pela pauta. Lá está, reluzente como um deboche, o PL da Dosimetria, aquele que pode abrandar penas — e até facilitar a libertação — dos golpistas de 8 de janeiro, incluindo o ex-presidente, Jair Bolsonaro. Sim, aquele mesmo que insuflou multidões, tentou rasgar a Constituição e agora pode ganhar um prêmio de consolação legislativo. Tudo com transmissão ao vivo e aplausos do baixo clero.
E porque a ousadia nunca vem desacompanhada, a Câmara ainda pretende votar, no mesmo dia, as cassações de Carla Zambelli, Alexandre Ramagem e Glauber Braga. É quase poético, se poesia aceitasse esse tipo de grotesco. Zambelli e Ramagem, duas figuras centrais da trama golpista; Glauber, o deputado que reagiu a um influencer bolsonarista — desses que infestam redes sociais com fake news — com um empurrão. Em Brasília, empurrar um propagador de mentira vira crime gravíssimo. Já contratar hacker para invadir o Conselho Nacional de Justiça CNJ), falsificar ordem de prisão contra ministro ou fugir do país após condenação… bem, aí já é outra conversa.
E no meio desse teatro institucional, ocorreu uma cena que já entrou para o museu da distopia brasileira: Glauber Braga, em ato de resistência, ocupou a cadeira de Hugo Motta, tentando impedir que a tragédia institucional fosse aprovada a toque de caixa. Foi imediatamente arrancado à força pela polícia legislativa — um espetáculo de truculência.
A ironia?
Os parlamentares bolsonaristas que ocuparam as cadeiras das presidências da Câmara e do Senado durante o golpe de 8 de janeiro foram tratados com carinho de tia-avó. Pão-de-ló, dedos de seda e apenas uma punição simbólica: um deles recebeu uma suspensão — e olhe lá. A mensagem é clara: atropelar a democracia é aceitável. Questionar o atropelo democrático, aí sim, é crime.
A lógica não poderia ser mais cristalina: o Congresso pune quem tenta defender a República e acolhe quem tentou destruí-la.
E como chegamos a esse dia tão inspirador? Simples: o Congresso não errou de repente. Ele vem treinando.
Primeiro, tentou aprovar a PEC da Blindagem, aquela obra-prima de autoproteção que transformaria deputados e senadores em semideuses inalcançáveis pela lei. Aprovou na Câmara com entusiasmo adolescente. Só recuou no Senado porque o povo foi às ruas perguntar, educadamente, se eles haviam enlouquecido de vez.
Depois, dilacerou uma PEC voltada ao combate ao crime organizado, transformando-a num frango desossado que nas redes ganhou o apelido de PEC Pró-Facção. Quando a Câmara põe a mão em algo, sai sempre mais macio para o lado errado.
E ao fundo, como trilha sonora, ressoam os 82 bilhões de reais do orçamento secreto. Sim, bilhões, com b maiúsculo — dinheiro que desceu pelo ralo da corrupção parlamentar enquanto deputados e senadores fingiam discutir o Brasil. Agora, com o STF na cola, o instinto de sobrevivência dessa elite política virou prioridade absoluta. Não é à toa que as casas legislativas parecem trabalhar em modo pânico: estão montando uma engenharia constitucional de blindagens, atalhos e anistias. Chamam de política; o país chama de medo.
E eis que entra em cena o bordão da semana: “O plenário é soberano”. Hugo Motta repete isso de maneira tão automática que já parece convite de casamento. Esquece apenas de mencionar que o plenário só é “soberano” quando ele decide o que vai ou não para votação. Soberania da pauta é a verdadeira coroa dessa monarquia tropical.
Enquanto isso, no Senado, Davi Alcolumbre segue distribuindo demonstrações de autoridade institucional, como quando mandou investigar usuários das redes sociais que ousaram chamar o Congresso de “Inimigo do Povo”. Se tivesse um pingo de autocrítica, pouparia trabalho da polícia legislativa e começaria lendo a própria pauta do dia.
E agora chegamos às estrelas do circo.
Zambelli, sempre ela, virou protagonista de um enredo que inclui arma na rua, contratação de hacker, invasão dos sistemas do CNJ, falsificação de ordem de prisão contra Alexandre de Moraes e uma coleção de vídeos que dariam vergonha a qualquer roteirista de série policial. O relator, porém, concluiu que “não há provas suficientes”. A frase é tão absurda que merecia ser guardada num museu da impunidade como peça de exibição permanente.
Ramagem, por sua vez, não está viajando. Não está em missão diplomática. Não está estudando no exterior. Está foragido. A palavra é essa, sem retoques. Fugiu após condenação por participar do núcleo estruturante do golpe. Mesmo assim, sua cassação enfrenta resistência. Brasília é esse lugar onde até condenado fugitivo encontra quem o defenda — desde que tenha o partido certo.
E então chega Glauber Braga, cuja cassação provavelmente avança porque ousou responder a uma provocação de um influencer bolsonarista. Empurrou o sujeito. Nada mais. Nada menos. Mas no cálculo distorcido da Câmara, defender-se de uma encenação digital é pior que falsificar ordem judicial. É a lógica da casa: quem defende a democracia, ameaça; quem tenta destruí-la, parceria em potencial.
O que se vê hoje não é desorganização institucional. É um projeto. Um projeto claro, articulado, meticuloso: normalizar o golpismo, blindar corruptos, reescrever a história recente, punir opositores e domesticar a democracia até que ela pareça um adorno decorativo.
Mas há algo quase comovente nessa pressa toda. Quando um Congresso que desvia 82 bilhões, tenta blindar investigados, altera PECs para autoproteção, persegue críticos nas redes e ainda encontra tempo para aliviar a barra dos golpistas, ele não está apenas legislando. Está implorando para ser desmoralizado.
E consegue.
Hoje, o Congresso não é vítima do povo, como sugere Alcolumbre. É vítima de si mesmo.
O rótulo de “Inimigo do Povo” não apareceu por acaso. Apareceu porque, dia após dia, o Parlamento decidiu testá-lo — e hoje decidiu confirmá-lo.
Se a democracia sobreviver a este dia, será por teimosia.
Porque de proteção institucional, ela não terá tido nenhuma.
*‘Castigat Ridens’ é um pseudônimo criado a partir da expressão latina ‘Castigat ridendo mores’, que significa ‘corrige os costumes rindo’ ou ‘critica a sociedade pelo riso’, muito usada no contexto da comédia como instrumento de crítica social.”
Ilustração da capa: O Congresso Nacional abrindo uma porta literal para o inferno – Imagem gerada por IA ChatGPT





Uma resposta
Precisamos ocupar as ruas e as redes!!