Sobre Antônio Hohlfeldt

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Por JORGE BARCELLOS*

“O conflito é o pai de todas as coisas, rei de todas as coisas.” Heráclito.

O governador Eduardo Leite demitiu o crítico cultural, jornalista e escritor Antônio Hohlfeldt da direção da Fundação do Teatro São Pedro. Hohlfeldt era CC, Cargo em Comissão. Ou Cargo de Confiança. Hohlfeldt havia criticado a ausência de políticas de valorização de pessoal do Teatro São Pedro durante o governo Leite. O servidor que era de extrema confiança se tornou de extrema desconfiança. Na literatura de psicologia popular da internet (disponível em https://abre.ai/oboT ), diz-se que um pisantropo é aquele que é incapaz de manter relações profundas porque pensa que sempre haverá uma traição. Para Leite, Hohlfeldt o traiu e merece ser demitido. Nessa visão, o governador é um exemplo pisantrobo porque foi incapaz de se esforçar para manter uma relação com Hohlfeldt; só aceita conviver com pessoas com inquestionável sintonia. Nessa visão, o erro de Hohlfeldt foi fazer críticas a alguém que não admite recebê-las, que não quer correr riscos, especialmente porque essa pessoa é candidata na próxima eleição (disponivel em https://abre.ai/obph ). Leite, ao demitir Hohlfeldt, o faz para manter seu escudo protetor; aqui, esse conceito é apenas uma metáfora para explicar o que ocorreu nas relações entre o governador e o presidente da fundação, é claro. A verdade, querido leitor, é que esse conceito aqui só serve para chamar sua atenção para o tema deste ensaio, pois sequer é mencionado em repositórios de referência o PsycINFO, da  American Psychological Association (APA), é uma espécie de psicologia de botequim que, vamos dizer assim, ainda é interessante para propor meu ponto de partida: a demissão de Hohlfeldt como ato de violência a um projeto de cultura. É claro que os significados da demissão de Hohlfeldt devem ser mais bem explicadas. É o que tento fazer aqui.

Eu conheci Hohlfeldt quando ele era o único vereador do Partido dos Trabalhadores na Câmara Municipal de Porto Alegre nos anos 80.  A reforma político-partidária do final dos anos 70, resultado da abertura política do regime militar, possibilitou que os políticos identificados com a esquerda, como o PT, nascido no ABC paulista, tivessem expressão em Porto Alegre. Na eleição seguinte, realizada somente em 1988, Hohlfeldt foi reeleito novamente.  Aquela foi a bancada dos sonhos da esquerda de Porto Alegre: Flávio Koutzi, um notável orador que dominava como ninguém a lógica marxista e era capaz de desmontar qualquer argumento da direita; Clovis Ingenfritz da Silva, um notável arquiteto que trazia uma discussão sobre problemas urbanos que enfrentava os grandes incorporadores;  Giovani Gregol e Gert Schinke, que traziam a agenda ecológica para dentro do legislativo; José Valdir, que incorporava na agenda os problemas do magistério e Antônio Hohlfeldt, o grande crítico da arte e cultura de Porto Alegre, todos sendo a prova de que se podia construir uma geração de políticos de esquerda altamente qualificados para a construção de uma cidade melhor.

Um vereador de sangue quente

Essa é minha visão de servidor dos anos 80, um aprendiz de historiador. Hohlfeldt, devido a diversas divergências com o partido que nem faço ideia, posteriormente seguiu seu caminho político em direção ao PSDB. Ser petista nunca foi fácil. Eu gostava das suas posições firmes e, às vezes, de “sangue quente”, como costumávamos dizer naqueles tempos. Ele não tinha medo do enfrentamento e não hesitava em erguer o dedo quando fosse necessário. Eu me lembro exatamente dessa cena, do dedo em riste de Hohlfeldt em minha direção, pois era eu que estava atravessando alguma discussão dele no antigo plenário do legislativo, já que eu tinha a importante tarefa de colher assinaturas dos vereadores no pareceres. Ele era um que eu colhia assinatura no que hoje é o Plenário Ana Terra da Câmara. É que ainda estava inacabado o seu Plenário Maior, o Aloisio Filho, que  estava em obras, e vi Hohlfeldt furioso por alguma situação do plenário, algum enfrentamento com a direita que naquela época já mostrava suas garras. Ele, um notável intelectual, não media energias quando se tratava de defender o que acreditava. Eu gostava disso. Eu me lembro de sua sala, localizada na face oeste do prédio da Câmara, onde sua assessoria, composta majoritariamente por professores, incluía uma professora muito gentil e de voz macia que se destacava pela grande calma em lidar com Hohlfeldt e que se chamava Ana Lúcia D’Angelo. Infelizmente, nunca mais a vi. Coisas de relações entre CCs e efetivos.

Muito tempo depois, em 2018, quando Eva Sopher morreu, Hohlfeldt assumiu seu lugar na condução da Fundação Teatro São Pedro. Ele a conhecia profundamente, tendo escrito um de seus livros, Doce Fera, sobre sua trajetória. Hohlfeldt assumiu no governo José Ivo Sartori. Para entendermos as razões dele ter sido indicado, primeiro precisamos entender a trajetória de quem ele substituiu, Eva Sopher. A jornalista Núbia Silveira fez uma importante reportagem sobre ela para o Sul21 (disponível em https://abre.ai/n9). Ali Silveira registra que Sopher  dedicou-se por 43 anos ao Teatro São Pedro, sendo convidada pelo governador Sinval Guazzelli, e desde então atravessou todos os matizes políticos de governo. Reclamava da falta de críticos de arte na capital e dizia: “Nós temos um excelente crítico hoje, que é o Antônio Hohlfeldt”.  Entendeu a ligação? Continuemos. Ela assumiu numa época em que, ou ela assumia o Teatro São Pedro, ou o demoliriam. Recuperou o Teatro São Pedro e concebeu o Multipalco, que se tornaria, em sua visão, maior que a Opera House de Sidney ou o Lincoln Center de Nova Iorque. Fez o milagre de manter o funcionamento do teatro com a arrecadação do estacionamento, que chegava, na época da reportagem, a 40 mil reais. A reportagem afirma que “este dinheiro pagava o pessoal dos serviços gerais, incluindo limpeza, conservação, bilheteria, chapelaria, portaria e a equipe técnica de palco. Do Estado, eram recebidos mensalmente R$ 10 mil, insuficientes para cobrir o custo da energia elétrica. A conta entregue pela CEEE – sem nenhum desconto, nem mesmo do ICMS cobrado pelo governo – é de R$ 18 mil/mês. O borderô da época, que era de R$ 35 mil, vai todo para o caixa único do estado. Eva Sopher e José Roberto são unânimes ao afirmar que o São Pedro é o único teatro no mundo que gera lucro para a administração pública.”

Infelizmente ou não, Eva Sopher não teve que enfrentar o governo Leite, ao contrário de Hohlfeldt, que o enfrentou. No dia 24 de novembro, Hohlfeldt foi demitido do cargo de presidente da Fundação Teatro São Pedro, após anunciar que as atividades da instituição seriam suspensas em 2026 devido à falta de pessoal e à necessidade de reformulação do plano de cargos e funções. Ele vinha denunciando a situação delicada vivenciada pelos profissionais da fundação há tempos e o momento era de crise no funcionamento do teatro, situação que o governo preferia manter em sigilo por ser uma questão interna.​ A indiferença de Leite é semelhante à de Yeda Crusius. Leite não ouviu Hohlfeldt, assim como Crusius jamais foi a um espetáculo no teatro São Pedro, apesar dos convites enviados por Sopher. Ao contrário, Olívio Dutra sempre frequentou o teatro, antes, durante e depois de ser governador, segundo Sopher. Para mim a  razão é uma só: a esquerda considera a cultura como experiência; a direita a vê como negócio. Com as obras finalizadas por Hohlfeldt, embora eu possa estar errado, existe a possibilidade de que sua gestão seja realizada por uma Organização Social (O.S.), o que tornaria próxima uma eventual privatização da fundação, um pesadelo para Eva Sopher.

As similaridades de Sopher e Hohlfeldt

Tanto Eva Sopher quanto Antônio Hohlfeldt demonstraram enorme determinação no projeto do Teatro São Pedro; o último, inclusive, enfrentou os efeitos da pandemia e a enchente na capital. Como Eva Sopher, é impossível falar mal de Antônio Hohlfeldt. Talvez muita gente quisesse dar uma “espinafrada” em Eva Sopher, diz a reportagem, assim como o governador desejava fazer com Hohlfeldt após ele tornar públicos os problemas. Entendo que uma das metas que  Sopher  e Hohlfeldt compartilharam era deixar um Multipalco atuante e livre. Hohlfeldt, tamanha a sintonia, sabia disso e lutou. Eu entendo que, se não fosse com condições, ele não o faria, daí a suspensão da programação. O governador havia sido alertado, mas não tomou nenhuma ação. Agora, depois da gritaria de Hohlfeldt, o governador cria uma comissão especial para tratar do problema, o que é o grande mérito da demissão de Hohlfeldt. A pergunta é: por que o governador deixou a situação chegar a esse extremo e por que não atuou antes? Eva Sopher caminhava pelo prédio do teatro, mostrando as velhas paredes que decidiu preservar; essa atitude é exatamente o oposto da do governador, que agora demite quem lhe prestou inumeráveis serviços.  Eva Sopher se orgulhava de que o teatro nunca tinha sido pixado. “O respeito é uma das coisas mais contagiantes. O respeito que sai, volta”.

A demissão de Hohlfeldt é no fundo uma repetição dessa máxima de Sopher: a necessidade do respeito. A comunidade cultural respeitava o trabalho de Hohlfeldt. Eu respeito Hohlfeldt, e olha que que me considero petista raiz. O governador não. Hohlfeldt foi punido exatamente por cumprir sua função, defender o Teatro São Pedro. Você acha isso certo? Eu não. Mas qual o significado de sua punição? Por que ele foi punido com demissão? Em Punir, uma paixão contemporânea, Didier Fassin afirma que a sociedade, diante das desordens que a assolam, está se tornando punitiva. Vivemos um momento punitivo em que o castigo se transforma em estratégia. Para Hohlfeldt, lutar pelo Teatro São Pedro foi seu crime, e a demissão, sua punição. O castigo, que não está relacionado à delinquência, serve para proteger a sociedade do crime; no entanto, para o Estado, sua função é garantir o segredo da predação das instituições.  Hohlfeldt foi vítima de uma lei mais repressiva do que a lei ordinária, sendo mais severa e inflexível, e que não tem relação direta com a delinquência: a lei do segredo. Nesse sentido, o governo neoliberal reinscreve o valor da punição e a coloca a serviço do ideal de manter o segredo sobre a participação do próprio Estado no desmonte da máquina para a privatização. Não é necessário ser um criminoso para receber uma punição; basta agir em desacordo com a nova lei do sistema predador da política neoliberal. A paixão de punir, mencionada por Didier Fassin, está relacionada a um aumento da sensibilidade dos governos de direita em relação aos desvios de conduta de seus subordinados. Para mim, trata-se da defesa de um candidato à presidência em relação às suas ações públicas no campo cultural.

É um governo que se mostra intolerante à crítica interna, pois pode prejudicar a carreira política do governador-candidato. Além disso, um conflito de gestão que poderia ser resolvido de maneira prática, com o atendimento das reivindicações de Hohlfeldt, não foi solucionado por Leite. Na atuação neoliberal, a política se caracteriza por precarizar para privatizar. Atualmente, uma fundação pública administra o maior teatro do Rio Grande do Sul; no entanto, e eu posso estar errado, amanhã, é provável que o setor cultural siga o caminho da privatização, começando pela contratação de uma Organização Social: isso resultará em um teatro novo, com uma estrutura reformada e uma instituição lucrativa, graças ao trabalho de Hohlfeldt, que, ao sair, recebe um “obrigado”.   As elites políticas neoliberais têm um estranho modo de enlouquecer seus servidores, inclusive os CCs: ao mesmo tempo em que se mostram acessíveis e interessadas, ignoram-nos ou não dão andamento às reivindicações essenciais de seus trabalhadores.  Não é apenas o Teatro São Pedro que enfrenta dificuldades devido à falta de pessoal: uma reportagem do SUL21 (disponível em https://abre.ai/oa) afirma que “Emater/RS-Ascar perdeu mais de 800 servidores em dez anos. Segundo dados da própria instituição, seu quadro tinha 2.544 servidores em 2014. Dez anos depois, a força de trabalho da Emater/RS-Ascar caiu para 1.724 empregados, em uma entidade que possui escritórios em todos os 497 municípios do Rio Grande do Sul. Em paralelo, os trabalhadores apontam um aumento nas demandas. A Emater/RS-Ascar é uma sociedade civil, de direito privado, que mantém contratos com o Estado e com os municípios, celebrados a cada cinco anos, com aditivos anuais. De acordo com os trabalhadores, esses contratos têm recebido cada vez mais metas, com menos servidores para executá-las, em uma conta que não fecha.” O descaso do governo não se limita apenas à cultura, frequentemente considerada o primo pobre das políticas públicas, mas também se estende a uma área que é dita prioritária: a agricultura. Leite demite Hohlfeldt porque é um candidato que precisa de uma imagem de administração positiva para manter o controle. O silêncio no interior da sua administração sobre seus problemas importa e induz a um silenciamento cada vez mais severo à diminuição das vozes de seus colaboradores. As demissões daqueles que expõem os problemas à opinião pública precisam ser feitas porque são pedagógicas. Por isso, Leite precisava de alguém para carregar suas culpas.

O sacrifício de um inocente

O que é um indivíduo a quem culpas são atribuídas injustamente? Para responder a essa questão, é preciso procurar o sentido figurado da expressão bode expiatório, que se refere a alguém escolhido arbitrariamente para levar a culpa por uma calamidade, crime ou qualquer evento negativo, mesmo que não tenha cometido tal ato. A atitude irracional que responsabiliza pessoas por algo que não cometeram é exemplificada pela utilização de “bodes expiatórios”, uma das mais poderosas ferramentas de propaganda política. Que culpa era preciso atribuir a Hohlfeldt? A de não ter mantido segredo dos problemas do Teatro. Hohlfeldt não era responsável pelos problemas do teatro; ao contrário, ele apontava para a responsabilidade do governo em colaborar para resolvê-los. A demissão de Hohlfeldt foi uma atitude irracional, pois todos na comunidade reconhecem seu valor e seu papel na valorização do Teatro São Pedro.

A origem do “bode expiatório” remonta à tradição do Torá e à visão cristã. O Torá narra a história do sacrifício que era parte do ritual korban (sacrifício) no Templo de Jerusalém, tentativa do pecador em se aproximar de Deus. Dois bodes e um touro eram levados para um templo e um dos bodes era sorteado para ser queimado no sacrifício com o touro. O segundo bode era o “bode expiatório”, pois o sacerdote confessava os pecados do povo de Israel, e o bode os levava ao ficar ao relento na natureza. Na visão cristã, o bode expiatório é simbolizado por Jesus devido ao seu sacrifício pelos pecados da humanidade; no entanto, na versão bíblica, o bode abandonado no deserto representa o demônio. A ideia cristã é que não existe expiação “sem derramamento de sangue” e, da mesma forma que no Torá, para que alguém expurgue seus pecados, é preciso do sangue de uma vítima inocente. Hohlfeldt é o bode expiatório que foi sacrificado pelos pecados de Leite, que o demite e o abandona no deserto, pois é o demônio que o governador não quer enfrentar: o de que ele também tem responsabilidade na precariedade das condições do Teatro São Pedro. A demissão é o derramamento do sangue – simbólico, é claro – de Hohlfeldt. Para mim, um ato de violência. Voltarei ao final a este ponto.

A imagem é interessante para criticar os discursos que, em nome da necessidade de privatização do serviço público, ocultam a estratégia de precarizar instituições para privatizar e transformar servidores públicos honestos em bodes expiatórios, substituindo-os por Organizações Sociais (O.S.). Por todo o lado, vemos iniciativas dos governos neoliberais que não contratam servidores aprovados em concurso para diversas áreas como a cultural e que revelam que políticos de plantão têm interesse em transferir responsabilidades públicas para o campo privado, utilizando o discurso da moralização do serviço estatal. Ele é base da transformação do servidor público em “bode expiatório”. Eu lamento que políticos como Leite, que assumem altos cargos, estão paulatinamente revogando o direito dos servidores de criticar o governo, desapoderando chefias honestas e recusando-se a atender suas reivindicações. Todas estas iniciativas pelas quais o discurso político reivindica a modernidade de gestão representam um ataque à natureza da instituição pública porque transformam o competente servidor em “bode expiatório” da sociedade.

A perseguição a Hohlfeldt é um exemplo de injustiça contra servidores públicos

Como CC, Hohlfeldt é um servidor público honesto e competente que, com a demissão, revela uma perseguição semelhante à caça às bruxas, que, no passado, levava suas vítimas à fogueira. As “novas bruxas” são caçadas por governadores preocupados com uma opinião pública superexcitada por veículos de comunicação dominantes com nítidas vinculações com o Capital. Um vídeo de uma atriz famosa circulou nas redes sociais em apoio à medida de Hohlfeldt e criticando o governo Leite. Teria sido isso o estopim da demissão mais do que a fala do próprio? A demissão mostra que há em andamento uma cultura persecutória contra bons e honestos servidores públicos, transformando-os em “bode expiatório”. Perseguições contra atores sociais, como Hohlfeldt, ocorrem sempre em períodos de crise, como durante a Revolução Francesa, pois nesses momentos observa-se o enfraquecimento das instituições e dos discursos em defesa dos direitos.

A perseguição sofrida por Hohlfeldt é semelhante às sofridas por outros grupos e povos ao longo da história. Esse processo produz vítimas que a sociedade desconhece. A primeira vítima é o próprio processo de trabalho na FTSP. As equipes arregimentadas pelo crítico literário, que se uniram na defesa do teatro, agora experimentam um sentimento de perda radical de sua natureza, pois sua demissão representa o fim das regras previamente estabelecidas por consenso, resultando na redução da capacidade das equipes de atender à instituição pública. Depois dos processos de trabalho, a segunda vítima dos processos de perseguição é sempre o servidor honesto que exerce sua função. Os bons pagam pelos maus porque a perseguição é indiferenciada. A perseguição modifica para pior os modos de trabalho que antes eram funcionais. A cultura institucional em que o servidor dedicado buscava qualificação para exercer sua função é substituída por um aspecto monstruoso. As relações funcionais produzem a indiferença do servidor para com o trabalho. Não se exige mais qualidade do trabalho porque sequer o servidor é autorizado a criticar os processos que entende não funcionarem na instituição. Se Hohlfeldt, depois de procurar pelos corredores, agendar visitas, conversas, não conseguiu ser ouvido, é natural apelar para a opinião pública para fazer valer suas reivindicações. Ser visto.  Mas ser demitido significa que, neste governo é negado o direito de crítica, de reivindicação. Diz o filósofo René Girard, em sua obra clássica sobre o tema, O bode expiatório (Paulus, 2004): “As pessoas, sem distinção de estado ou de fortuna, são afogadas por uma tristeza mortal. Tudo se reduz a uma extrema confusão” (p. 21).

A perseguição que lideranças políticas fazem na busca incessante da cassação dos direitos de crítica dos servidores representa fonte de infelicidade para o servidor e encurvamento egoísta do político sobre si mesmo. O efeito é produzir um jogo de lutas e represálias entre os atores envolvidos, que tem como consequência a crise da instituição. Quando a moralização não é real, isto é, não retira “excessos”, mas “direitos”, ela gera “danos colaterais” (Bauman): o estereótipo da moralização projeta seus efeitos produzindo o “bode expiatório”: quando um problema do governo Leite vem a público, alguém tem que pagar para que eu, o gestor, seja julgado pela sociedade como um político de valor. E quem paga a conta é o bom servidor, Hohlfeldt. Parece lógico para você? Para mim, não. Mas é assim que funciona. O serviço público se eclipsa neste processo: é preciso distinguir as medidas que são anunciadas para a opinião geral como exemplo de moralização e que realmente produzem efeitos significativos sobre a máquina estatal daquelas que ocultam em seu interior a instalação de um modelo persecutório dotado de uma lógica que une todas as medidas entre si num projeto político cujo objetivo é alimentar os piores estereótipos sobre o serviço público em geral. Leite demitiu Hohlfeldt como se ele fosse culpado pelos problemas, quando era o governo. Um novo diretor chegará em breve, mas os projetos encaminhados por Hohlfeldt, que tiveram enorme sucesso com o público, estão sendo ocultados pelo desejo sedento de sangue, que revela um processo de desestruturação das instituições. Diz novamente Girard a respeito: “Todavia, mais do que reprovar a si próprios, os indivíduos têm forçosamente a tendência de reprovar tanto a sociedade em seu conjunto, o que não os compromete com nada, como outros indivíduos que lhes parecem particularmente nocivos por razões fáceis de desvendar. Os suspeitos são acusados de crimes de um tipo particular” (p. 22).

Dizer a verdade

Os motivos de acusação que transformam Hohlfeldt em “bode expiatório” são bastante diversos. Eles se baseiam no estereótipo de que os problemas de uma instituição não devem ser publicizados: “roupa suja se lava em casa”.  Bobagem: há um limite entre o aceitável e o inaceitável em respeito ao posto de cargo de confiança exige; um cargo de confiança não o é porque oculta os problemas, mas, principalmente, o que tem coragem de apontá-los.   Daí que Hohlfeldt deveria ter sido valorizado, quando não foi – exceto pela classe cultural que manifestou seu apoio. Assim como nos episódios bíblicos, os mais fracos e desarmados sempre sofrem a violência da transformação em “bode expiatório”; a demissão de Hohlfeldt representa o equivalente atual das crianças prestes a serem sacrificadas no passado. A lei imaginária que diz que o servidor não tem direito a nada deixa subentender que “o político pode tudo”. Por esta razão, não é incomum que autoridades sequer reconheçam o direito dos servidores a serem ouvidos em suas reivindicações. Esta é a condição atualizada do “bode expiatório”: ele é acusado de um crime que não cometeu devido à sua reivindicação pelo cumprimento de suas obrigações. O que o governador não consegue ou não quis entender é que o verdadeiro crime reside na mudança das regras, que é exatamente o objetivo perseguido pela política neoliberal: transformar o que é público em privado e, se possível, terceirizar todas as funções públicas. A precarização das instituições públicas, que representa o novo gozo do Capital e é um elemento do projeto neoliberal, origina o ataque a servidores como Hohlfeldt, visando a privatização dos serviços públicos no futuro.

Os critérios dominantes do processo vitimário sempre passaram por aspectos culturais e físicos, como doença ou loucura, que determinavam o caráter persecutório. O que surpreende é reconhecer que hoje esse processo passa também por disseminar a verdade no espaço público: agora não é mais a anormalidade física que serve de pretexto para perseguir alguém, basta que diga a verdade. A anormalidade agora é a verdade; os servidores públicos devem ser perseguidos porque possuem um handicap (vantagem) de dizer a verdade do que se passa no interior das instituições. Desde quando dizer que o TSP tem problemas é considerado um crime que merece punição? Hohlfeldt está num cargo e não tem direito de se manifestar? É o retrato de um  governador, o fato de ele sentir-se à vontade para tomar medidas contra Hohlfeldt que reforça a polarização vitimária: Hohlfeldt está longe de ser um aproveitador de plantão, é sua honestidade que afeta o governo atual. Não se trata de o culpar pela corrupção, mas culpar por dizer a verdade, algo muito pior para o governo.

Antigamente eram os ricos e privilegiados que tinham maiores riscos de morte violenta nas mãos da multidão descontrolada; agora este lugar é ocupado pelos servidores públicos honestos.   A morte não é real; ela é simbólica, representando a demissão sumária e sem direito a defesa, que resulta no fim da experiência de gestão como algo de valor. O governador só agradeceu os serviços prestados. Essa falsa moralização de Leite visa alimentar o imaginário popular para usufruir votos na próxima eleição. Eu posso estar errado, mas a política que faz vítimas servidores públicos honestos, que autoridades legitimamente eleitas construam uma estratégia cultural baseada na produção de violência contra servidores, para mim só pode ser considerada exemplo de má política. Das autoridades legítimas se espera agir com base na virtude. As diferenças entre empregados privados e servidores públicos são legítimas e necessárias. Finaliza Girardi: “Os estereótipos da perseguição são indissociáveis, e a maioria das línguas não os dissociam. Isso é verdadeiro em relação ao latim e ao grego, que nos obriga a recorrer incessantemente, no estudo dos estereótipos, a termos aparentados, como crise, crime, critério e crítica, que remontam todos à mesma raiz, ao verbo grego krino, que significa não apenas julgar, distinguir e diferenciar, mas também acusar e condenar uma vítima.

Uma saída educada

Em reportagem para Carlos Redel, de Zero Hora (26/11), Hohlfeldt se mostra um gentleman: agradece o período à frente da instituição, especialmente a José Ivo Sartori, que o indicou, e à secretária Beatriz Araújo, além de, é claro, à equipe da Fundação.  Hohlfeldt é um quadro do MDB com 76 anos e com um futuro pela frente; eu sou um funcionário público aposentado de 61 anos e aspirante a ensaísta nas horas vagas. Ele sabe que faz parte da nata notável de intelectuais do MDB, que inclui nomes de peso como o filósofo João Carlos Brum Torres, relação já esmiuçada por Rodrigo Motta em O MDB e os intelectuais (Varia História, Belo Horizonte, dezembro de 1993, p. 103-113). Como pensamento crítico é um ativo de valor na política, e isso ele tem de sobra, logo, logo estará colaborando com a área cultural em um novo espaço.

De minha parte, entendo que sua demissão foi um ato violento. Foi produto de uma lógica política perversa de interesses no campo público; se foi um movimento de impulsividade de Hohfeldt, o que duvido muito, seu valor foi dramatizar necessidades reais de uma instituição, o TSP. Imagino o esforço de ser ouvido pelo governador ensurdecido pelo ideal neoliberal e, nesse sentido, Hohlfeldt foi vítima do projeto que seu partido adota. Se ele saiu dos trilhos, como faz entender o governador, se ele ousou enfrentar publicamente um governo que o negava insistentemente, para quem é de fora do sistema político em que ele vive, tudo serviu mais uma vez para justificar a predação de um sistema cultural. Essa é uma forma de violência acidental, subjetiva, racionalizada, que nada mais faz do que, frente a uma manifestação em desacordo, simplesmente reprimi-la rapidamente. E o pior, aparenta enorme legitimidade, pois o governador apenas usa de seu direito legal: por que não nos perguntamos do seu direito moral? São duas formas de violência, então: a primeira, estrutural, pelo abandono de uma instituição, mesmo que seu líder reivindique sua sobrevivência; a segunda, uma violência pontual, pois para o governo é apenas uma troca de chefia.

Hohlfeldt resigna-se com seu destino. Eu lamento a situação de Hohlfeldt. O exercício do controle é apenas uma das formas de dominação. Isso acontece frequentemente no serviço público, mas há momentos em que ideais e projetos deveriam se sobrepor à lógica dos administradores do momento. O Teatro São Pedro foi produto de uma ideia: essa ideia foi defendida por Eva Sopher e levada adiante na herança passada a Hohlfeldt. Transformado em bode expiatório, Hohlfeldt dá lugar a uma violência instituída à luz do dia; sequer se trata, supostamente, de uma pacificação no interior da instituição. Afinal, Leite chamará os concursados? O que realmente acontecerá a partir de agora? A ordem dos dominadores sai incontestável com a saída de Hohlfeldt. Não é uma demissão qualquer: não podemos normalizar um ato de violência contra um projeto herdado de Eva Sopher. Que homem político é esse que interrompe um projeto elaborado por Eva Sopher? Eu posso estar errado, mas o que ele está dizendo é que a violência é o novo modo de funcionamento, exatamente como diz François Cusset em O desencantamento do mundo: a nova lógica da violência (N-1 Edições, 2025): “A violência não é mais o acidente do sistema econômico, a exceção de um capitalismo devotado a ‘pacificar os modos’, mas, mais do que nunca, seu motor, seu motivo, desde sua origem predatória até seu horizonte de concorrência” (p. 13). Encontrei Hohlfeldt, há pouco mais de um mês, na saída de um shopping da capital. Eu não podia imaginar o que se sucederia. Hohlfeldt sim. É da luta política.


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21  livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: Antônio Hohlfeldt sentado na arquibancada do Theatro São Pedro, localizado no Centro Histórico de Porto Alegre.| Acervo PUCRS.

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