Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
No Brasil, a dívida pública não é apenas um instrumento de financiamento do Estado. Ela funciona também como um eixo organizador do sistema financeiro.
O Tesouro Nacional produz ativos (formas de manutenção de riqueza) seguros para absorver a poupança financeira e o Banco Central do Brasil produz liquidez para dar preço (“precificar”) e rolar esses ativos financeiros. Esse arranjo gera quatro mecanismos centrais.
O primeiro é a dívida pública se constituir o principal lastro da riqueza financeira. Bancos (principalmente os públicos federais), Fundos de Pensão Fechados (ou patrocinados) e Previdência Privada Aberta, Fundos de Investimentos Financeiros e até o FGTS são os principais detentores de títulos do governo.
Assim, a solvência financeira do país seria vista como equivalente à solvência do próprio Tesouro Nacional – e extinção da moeda nacional. Riqueza financeira privada cresce com a expansão da dívida pública.
O segundo é os indexadores à inflação e os títulos pós-fixados transferirem risco sistêmico ao Estado. Os NTN-B (IPCA+) e os LFT (Selic+) protegem investidores contra inflação e volatilidade, enquanto o Tesouro absorve o risco macroeconômico.
Esse desenho é criticado por analistas incautos por proteger rendas financeiras, encarecer e inibir o investimento produtivo de risco. Em troca, incentivaria o rentismo sistêmico, parasitário e individualista.
Ledo engano, a motivação para a troca de renda do trabalho, recebida no ciclo de vida ativa, por renda passiva de juros, recebida no ciclo de vida inativa, é um incentivo ao estudo e ao esforço laboral bem-orientado. É um incentivo para dizer não ao crime organizado em busca de enriquecimento fácil com a violência das armas.
O terceiro mecanismo é os juros elevados nos leilões primários dos títulos de dívida pública disciplinarem o Estado – e não tanto o setor privado nacional por pouco se arriscar a ganhar com alavancagem financeira. Diferente dos EUA, não há pressão acionária sobre empresas de origem familiar brasileira. O mecanismo de disciplina ocorreria por outro caminho: déficit → aumento da dívida → reação do mercado → elevação do custo dos juros nos leilões primários → jornalismo econômico neoliberal com pregação contínua de ajuste fiscal. O resultado é a concessão de prioridade implícita ao equilíbrio financeiro e/ou fiscal. Com isso, há secundarização do desenvolvimento produtivo do país por parte do capital simbólico (mídia e bancadas partidárias de direita) dos empresários neoliberais ou rentistas.
O quarto mecanismo se refere à circularidade pró-concentração de renda. Quem possui liquidez captura os juros e esses são pagos com rolagem de títulos de dívida pública, inclusive porque, na arrecadação fiscal brasileira, predominam os impostos indiretos regressivos (ICMS) estaduais. A mídia neoliberal defensora do Estado mínimo louva os cortes de despesas sociais quando há ajuste fiscal. O Tesouro Nacional faz o papel de “redistribuidor às avessas”.
Então, no Brasil, não se opera sob a lógica da market discipline sobre o setor privado com poucas empresas de origem brasileira com ações listadas na bolsa de valores. Opera, por pressão midiática simbólica, sob financial discipline, cobrada sobre o Estado, conferindo à dívida pública uma dupla função: suporte à financeirização e instrumento político-distributivo concentrador de riqueza financeira.
Loops são estruturas em programação para repetir um bloco de código várias vezes, executando um conjunto de instruções automaticamente. Eles são usados para automatizar tarefas repetitivas, como processar listas de dados, e funcionam enquanto uma determinada condição for verdadeira.
A seguir, para a compreensão didática da economia financeira brasileira, sintetizo uma abordagem sistêmica com os loops dinâmicos capazes de articularem dívida pública, liquidez financeira e riqueza privada.
Loop A — Dívida pública como lastro da riqueza financeira: o Tesouro Nacional emite títulos públicos – os bancos e os fundos compram esses títulos como ativo seguro – seu patrimônio líquido cresce (“marcado ou não a mercado”) – a demanda por mais títulos se expande – o Tesouro Nacional encontra facilidade para rolar a dívida – volta para o primeiro passo. Resultado estrutural: a dívida pública alimenta o patrimônio privado, reforçando a própria demanda por dívida.
Loop B — Dívida → Liquidez → Estabilidade financeira: o Banco Central do Brasil assegura liquidez aos títulos (comprando, remunerando reservas, repo etc.) – o mercado confia em sempre vender esses ativos – cresce a preferência por títulos públicos como reserva de valor – a taxa de juros exigida para rolar a dívida cai – a rolagem torna-se mais barata → mais espaço para emissão – volta ao primeiro passo. Resultado: a liquidez garantida pelo Banco Central reduz o risco sistêmico e mantém o circuito funcionando.
Loop C — Juros como renda financeira e motor de concentração: o Estado paga juros aos detentores de títulos – a renda e o patrimônio do topo da distribuição aumentam – a elite financeira reinveste em novos títulos – a base de detentores de dívida fica mais concentrada – a pressão política por juros elevados cresce – o custo fiscal se expande e o Estado paga mais juros – volta para o primeiro passo. Resultado: crescente financeirização com reforço da desigualdade patrimonial.
Loop D — “Disciplina fiscal” imposta pelos credores: a relação dívida/PIB sobe e os credores exigem juros maiores – O Mercado pressiona por ajuste fiscal – o governo corta gasto produtivo e social – o crescimento do PIB nominal cai – a relação dívida/PIB sobe ainda mais – novas pressões de juros → austeridade reincidente – volta para o primeiro passo (armadilha). Resultado: loop pró-cíclico recessivo → a dívida cresce por falta de crescimento da renda e consequente arrecadação.
Em uma interação dos loops, adquire-se uma visão macrossistêmica.
- Loops A e B → estabilizam (função macrofinanceira)
- Loop C → concentra riqueza (função distributiva)
- Loop D → pode desestabilizar a economia real (função política)
Nesse sentido, a estabilidade financeira pode coexistir com instabilidade social, distributiva e macroeconômica.
A síntese sistêmica pode ser apresentada apenas em uma frase. A dívida pública é, simultaneamente, 1. o ativo seguro capaz de sustentar a riqueza financeira, 2. a base da liquidez do sistema financeiro nacional (do qual todos os agentes econômicos – Pessoas Físicas e Pessoas Jurídicas – são clientes) e 3. a alavanca política disciplinadora (ou estranguladora) da política econômica pelo poder político midiático simbólico.
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
Foto de capa: Reprodução




