Por MARIA LUIZA FALCÃO SILVA*
O acordo entre o Mercosul e a União Europeia, negociado desde 1999, tornou-se uma espécie de fantasma que atravessa governos, crises econômicas, mudanças geopolíticas e diferentes concepções de desenvolvimento. Em vez de um tratado comercial, virou um espelho das contradições da própria América do Sul: a tensão entre a ambição de integração ao mercado global e a necessidade de preservar margens de autonomia para reconstruir capacidades industriais. Depois de um quarto de século, o texto que sobreviveu às mudanças de época já não corresponde ao mundo atual. E, ainda assim, parte do debate público insiste em tratá-lo como se fosse a grande oportunidade perdida do bloco.
Um Acordo Nascido no Século XX
É impossível analisar o acordo sem recuperar seu contexto histórico. Quando as conversas começaram, no final dos anos 1990, vivia-se o auge do consenso neoliberal. O Brasil tinha acabado de privatizar setores estratégicos, o Mercosul avançava sob lógica tarifária, e a União Europeia buscava expandir sua influência regulatória. A ideia era simples e sedutora: abrir mercados agrícolas na Europa em troca de abertura industrial no Mercosul. Mas a simetria era apenas aparente. A UE dispõe de uma capacidade institucional, tecnológica e financeira que permite transformar padrões regulatórios em instrumentos de poder. O Mercosul, ao contrário, carregava — e continua carregando — profundas assimetrias produtivas e fragilidades industriais.
A Era Bolsonaro e a Construção de um Mito Diplomático
A partir de 2016, com a guinada política no Brasil, o acordo ganhou nova função: passou a ser bandeira ideológica. O governo Bolsonaro fez dele uma peça de propaganda, vendendo à sociedade a narrativa de que a diplomacia brasileira finalmente havia conseguido “abrir o mundo” para as exportações nacionais. O ex-presidente se gabava de ter “fechado o acordo histórico com os europeus”, mesmo sabendo que o texto não estava finalizado, que dependia de anexos ambientais e que os europeus jamais haviam dado aval político definitivo.
A assinatura preliminar de 2019, celebrada por Bolsonaro e por Paulo Guedes, foi apresentada como prova de eficiência liberal, mas escondeu que o conteúdo negociado era frágil e assimétrico, preservava pouco espaço para políticas industriais e transferia ao Mercosul grande parte do custo da convergência regulatória.
Bolsonaro tentou impor a lógica de que qualquer acordo era melhor do que acordo nenhum. E assim consolidou uma espécie de mito: o de que resistências posteriores — sobretudo de Argentina e França — seriam expressão de protecionismo alheio e de atraso interno. Essa narrativa simplifica a realidade. O que houve, de fato, foi o reconhecimento, tanto na Europa quanto na América do Sul, de que o texto de 2019 não resistia às novas condições do mundo pós-pandemia, marcado por regionalização produtiva, disputa entre Estados Unidos e China e necessidade de políticas industriais ativas.
A União Europeia, longe de ser um bloco liberal impecável, reforçou mecanismos ambientais e sanitários que funcionam, na prática, como barreiras não tarifárias contra países de menor capacidade tecnológica. Já o Mercosul percebeu que o acordo havia sido desenhado para um mundo que não existe mais.
A Reconstrução Diplomática com Lula
Em 2023 e 2024, com a volta de Lula ao Palácio do Planalto, o tema ganhou amadurecimento diplomático. Lula deixou claro que o Brasil deseja sim ampliar seu comércio com a Europa, mas não ao preço de sacrificar o desenvolvimento industrial, nem de aceitar imposições ambientais unilaterais que transformam o discurso verde em uma nova forma de controle geoeconômico. A posição brasileira foi reconstruída tomando como base princípios simples: respeito à soberania regulatória, possibilidade de políticas industriais e tecnológicas, preservação de compras governamentais como instrumento de desenvolvimento e compromisso ambiental que não seja assimétrico. Essa postura irritou setores que esperavam um alinhamento automático do Brasil à UE, mas foi coerente com o novo momento global.
O pano de fundo é evidente: a União Europeia luta para preservar sua competitividade diante da China e dos Estados Unidos. A disputa por tecnologias verdes, semicondutores, baterias e cadeias de valor estratégicas redefiniu o comércio internacional. A Europa percebeu que precisa garantir acesso a alimentos baratos, fortalecer sua indústria e projetar seus padrões ambientais ao mundo. O Mercosul, por outro lado, precisa reconstruir sua base produtiva, ampliar sua autonomia tecnológica e aproveitar a janela histórica criada pela transição energética. Em vez de complementaridade, o acordo cristaliza assimetria. Europeus protegem sua indústria; sul-americanos abririam seu mercado industrial sem contrapartidas equivalentes.
Assimetria Estratégica no Novo Tabuleiro Global
A discussão ambiental tornou-se o epicentro das divergências. A UE passou a exigir mecanismos de rastreabilidade e verificação que, embora importantes, são caros e complexos. A transição verde é custosa; países ricos dispõem de financiamento público maciço, enquanto países em desenvolvimento precisam equilibrar combate à desigualdade, investimentos sociais e metas climáticas. O acordo não oferece recursos significativos para financiar essa adaptação. Ao contrário: impõe “obrigações verdes” sem oferecer o “capital verde” necessário para cumpri-las. A Europa fala a linguagem ambiental, mas não se compromete com o financiamento correspondente. O resultado é perverso: sustentabilidade vira critério de exclusão comercial.
Nesse cenário, o Brasil tenta segurar a presidência do Mercosul até a conclusão das negociações finais. Trata-se de movimento compreensível: assumir a liderança regional permite ordenar prioridades, coordenar posições e impedir que o bloco assine um texto menos favorável apenas para agradar pressões externas. Mas a defesa da liderança brasileira não pode se transformar em pressa. Depois de tanto tempo, assinar por assinar não é vitória — é renúncia estratégica. O acordo só faz sentido se refizer sua lógica, incorporando o mundo real e as necessidades concretas do desenvolvimento sul-americano.
O debate sobre quem ganha e quem perde precisa ser feito com honestidade. O agronegócio de exportação tende a ganhar competitividade na Europa, embora ainda enfrente as barreiras ambientais europeias. Setores industriais sensíveis — automotivo, químico, metalúrgico, farmacêutico — tendem a perder diante da abertura ampla. As exigências em compras governamentais podem reduzir a capacidade do Estado de induzir inovação, ao passo que a tutela regulatória europeia mina espaço para políticas de conteúdo local. Os europeus preservam sua autonomia industrial; nós renunciaríamos à nossa. É evidente quem sai beneficiado.
Ainda assim, o acordo permanece politicamente carregado. Para parte da opinião pública, não concluir o texto seria prova de “fracasso diplomático” ou “atraso”. Para outros, sobretudo industriais, especialistas em desenvolvimento e setores progressistas, ele representa risco considerável para o futuro econômico da região. A verdade é que estamos diante de uma encruzilhada histórica: aceitar um acordo desenhado para o século XX ou reformá-lo para o século XXI.
O presidente Lula tem repetido que o Brasil não aceitará ser “um celeiro do mundo” subordinado às regras dos países ricos. O foco de seu governo é reindustrializar, investir em energia limpa, ampliar infraestrutura, fortalecer o complexo industrial da saúde e consolidar a neoindustrialização verde. Esse projeto exige liberdade para usar compras públicas, incentivos fiscais, financiamento direcionado, políticas tecnológicas e preferências regionais. Um acordo rígido, concebido antes da nova fase industrial do mundo, pode colidir com esse horizonte.
Ao final, o que está em jogo é muito maior do que tarifas. Trata-se de definir qual será o lugar da América do Sul num mundo em transição. O Mercosul precisa escolher se quer se prender a um acordo envelhecido e assimétrico ou se deseja negociar um novo pacto que reflita a realidade contemporânea: cadeias produtivas regionalizadas, transição energética como motor de desenvolvimento, autonomia industrial como prioridade e soberania regulatória como condição fundamental. O acordo com a União Europeia não precisa ser descartado. Precisa ser reinventado.
Os europeus sabem o que querem: proteger sua indústria, garantir alimentos mais baratos, projetar suas normas. O Mercosul também precisa saber o que quer. A escolha agora é estratégica: entre repetir o passado ou construir o futuro. Lula tem diante de si a tarefa de transformar o Mercosul num instrumento de desenvolvimento e não num mero corredor de exportações primárias. A decisão final será menos sobre comércio e mais sobre qual projeto de país — e de região — queremos para os próximos vinte anos.
A Encruzilhada do Mercosul: Assinar ou Reinventar?
O governo brasileiro intensificou sua ação diplomática para manter a presidência do Mercosul até o último momento possível. Não se trata de mera vaidade institucional, mas de algo bem mais estratégico: se ainda houver chance de assinar o Acordo Mercosul–União Europeia, que seja sob a liderança do Brasil, não da Argentina.
A fotografia importa porque o acordo, após décadas de negociação, tornou-se símbolo político de protagonismo. Mas a pergunta essencial permanece: por que tanto esforço para um tratado que nasceu velho, desalinhado com o novo cenário global e repleto de assimetrias que podem enfraquecer parte relevante da economia brasileira?
*Maria Luiza Falcão Silva é PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED). Entre outros, é autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England/USA.
Foto de capa: Reprodução





Respostas de 2
Li outro dia que uma locomotiva consome um doze avós do consumo de um caminhão, me espanta sue isso não incomode doutores em Economia, deveriam vir até Sao Paulo, viajarem de Ribeirão Preto a São Paulo de carro e talvez pudessem conhecer coisas com que se preocupar, quanto a questão sanitária na produção de alimentos centenas de bilhões são injetados no agronegocio não sei qual a dificuldade de se adequarem às normas sanitárias,Doutores de universidades tem demostrado que o nascimento de crianças com problemas de saúde são geograficamente localizados em áreas de intensa atividade do agronegócio
A sua suscetibilidade das pessoas as agressões de produtos químicos não são geográficas, não entendo porque as barreiras sanitárias europeias devam ser rejeitadas