Por CASTIGAT RIDEND*
As doenças que só aparecem quando a justiça bate à porta
Há quem diga que a política brasileira vive de coincidências. Eu, mais modesto, prefiro chamar de “milagres clínicos de ocasião”. Porque não é todo dia que três expoentes do chamado “núcleo central” da trama golpista—todos condenados por atacar a democracia—descobrem, quase em uníssono, enfermidades tão graves quanto oportunas. Um espetáculo de saúde seletiva digno de debate na Academia Brasileira de Letras… ou no Conselho Federal de Medicina, dependendo do humor do leitor.
O martírio gastrointestinal do capitão
Jair Bolsonaro, condenado a 27 anos e 3 meses de prisão, encontrou no próprio corpo uma espécie de habeas corpus orgânico. Intestino sensível, coração fatigado, sequelas da facada de 2018, e agora um “surto” atribuído a interações medicamentosas tão potentes que quase fizeram a tornozeleira eletrônica virar um adereço opcional. Tudo isso convenientemente informado após o STF interpretar a investida contra o equipamento como fuga. A defesa pede prisão domiciliar humanitária, enquanto ele segue preso preventivamente. O país assiste, perplexo, ao reality show fisiológico que ora tenta convencer, ora distrai.
E não é a primeira vez que um medicamento entra em cena como explicação para comportamentos politicamente desastrosos. Basta lembrar que, dois dias depois do 8 de janeiro de 2023, quando o país ainda contava escombros e feridos, Bolsonaro publicou um vídeo atacando as urnas eletrônicas — e depois apagou. A justificativa? Teria postado sob o efeito de remédios ministrados durante uma internação hospitalar. Um clássico: o político não errou, foi o fármaco quem apertou o botão.
O Alzheimer estratégico do general
Augusto Heleno, condenado a 21 anos, revelou em exame de corpo de delito que sofre de Doença de Alzheimer desde 2018. Sim, 2018. Exatamente o período em que chefiava o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência e ocupava posição central no Conselho de Defesa Nacional. Uma doença degenerativa grave, silenciosa e, aparentemente, agradável o suficiente para permitir decisões estratégicas de Estado sem qualquer controle ou parecer oficial. Se for verdade, o país foi governado por alguém cuja memória institucional caberia dentro de um post-it. Se for exagero, trata-se de mais um capítulo da dramaturgia da impunidade.
A ansiedade turística de Ramagem
Alexandre Ramagem, condenado a 16 anos e 1 mês, inovou: apresentou à Câmara atestados para justificar ausências em razão de “tratamento de saúde” nos Estados Unidos. Poucos dias antes da condenação, um laudo psiquiátrico recomendou trinta dias de afastamento por ansiedade generalizada. Durante o repouso terapêutico, porém, Ramagem foi visto em Miami—e não exatamente na sala de espera de um psiquiatra. Participou de eventos, sorriu para fotos, manteve redes sociais ativas. A ansiedade, ao que parece, debilita apenas quando o assunto é cumprir obrigação institucional. O STF decretou sua prisão e a Câmara foi avisada: o mandato tem data de validade.
A tríade e a psiquiatrização da política
Há um detalhe curioso—e revelador—nessa coreografia de diagnósticos emergenciais: os três, cada um a seu modo, alegam condições psiquiátricas ou neurológicas. É a nova fronteira da autopreservação política: quando faltam argumentos jurídicos, sobra laudo.
E aqui, sem ironia, surge uma pergunta incômoda: se os diagnósticos forem reais e estavam presentes enquanto exerciam cargos estratégicos, seria plausível afirmar que fomos governados por pessoas com graves limitações cognitivas e emocionais? Ou seria exagero?
A resposta precisa ser ética: doenças psiquiátricas não tornam ninguém inepto por definição, nem são insulto. O problema não está na enfermidade, mas no seu uso instrumental como álibi.
O que se pode afirmar, sem medo de errar, é algo ainda mais grave: fomos governados por pessoas que, agora, alegam doenças cuja gravidade, se verdadeira, tornaria irresponsável sua permanência no poder. E, se falsas ou convenientemente ampliadas, revelam não doença, mas oportunismo patológico.
Quando a biologia vira instrumento político
Os três casos revelam um padrão inquietante. Se as doenças são tão antigas quanto afirmam, como exerceram cargos de altíssima responsabilidade sem qualquer questionamento oficial? E se são recentes, por que surgem apenas quando o cerco judicial aperta? O Brasil já viu elites tentarem escapar da lei por todos os meios possíveis, mas transformar diagnósticos médicos em salvo-condutos é uma sofisticação que mereceria estudo antropológico.
O Judiciário—e a sociedade—precisa tratar essas alegações com o rigor que a democracia exige. Direitos humanos não podem ser confundidos com acrobacias cínicas para driblar o Estado de Direito. Quando a saúde vira argumento de conveniência, o doente real é o país.
*Castigat Ridens é um pseudônimo criado a partir da expressão latina ‘Castigat ridendo mores’, que significa ‘corrige os costumes rindo’ ou ‘critica a sociedade pelo riso’, muito usada no contexto da comédia como instrumento de crítica social.”
Ilustração da capa: Doenças milagrosas do trio golpista – Imagem gerada por IA ChatGPT




