Por JEAN MARC VON DER WEID*
Desde o início deste governo Lula III, tenho questionado a estratégia adotada para a difícil relação com um Congresso dominado por interesses mesquinhos de suas excelências ou pelos interesses de corporações de vários tipos, representados por bancadas conhecidas como “da bala”, “do boi” e “da bíblia”, para citar apenas as mais atuantes. Em franca minoria no Congresso (sobretudo na Câmara de Deputados) e sem os instrumentos de pressão (controle da liberação das emendas parlamentares) e de aliciamento (mensalão e petrolão) usados nos governos populares de 2003 a 2016, a atual administração procurou ganhar suporte entregando ministérios e outros cargos para o Centrão e fazendo grandes concessões no conteúdo dos projetos de lei em debate. O resultado foi muito ruim, com uma crescente perda de identidade das bancadas de esquerda, que se confundiram com a geleia geral do Congresso de maioria direitista e extremista.
A estratégia não funcionou. Aquilo que se convencionou chamar (sem ironia) de “base do governo” ficou reduzida à fidelidade do PT, do PCdoB e do PSOL, enquanto os partidos ditos de centro esquerda (PDT, PSB, PV e REDE) racharam e os ditos de centro (MDB, União Brasil, PSD e outros) votaram majoritariamente contra as propostas do governo. E os eleitores passaram a ver as bancadas de esquerda como parte de um conjunto pouco valorizado de um Congresso distante dos interesses da população.
Defendi desde sempre que o governo deveria ter enfrentado o Congresso e aceitado perder votações, mas com posições claras capazes de gerar apoio na sociedade. Esta postura permitiria galvanizar a militância social para se manifestar em apoio do governo e desgastar politicamente a direita, preparando o caminho para um enfrentamento eleitoral mais equilibrado em 2026.
O sucesso desta outra estratégia ficou demonstrado nas grandes manifestações recentes contra a PEC da Blindagem ou da Bandidagem, mas a iniciativa foi da sociedade e em discordância com as conciliações sucessivas do PT nas negociações com a Câmara. Com a massa na rua, o Congresso dobrou a espinha e recuou, abandonando, de quebra, a tentativa de votar uma anistia para Bolsonaro et caterva.
A partir deste momento, o governo adotou uma postura mais combativa, embora tortuosa em várias ocasiões.
O norte deste enfrentamento tem que estar lastreado por dois elementos chave: a escolha de temas de alta popularidade (o que aconteceu, em parte, na votação da isenção do imposto de renda para os mais pobres) e a clara apresentação das posições governamentais em campanhas de divulgação (o que também aconteceu no exemplo citado, apontando para a contradição entre a defesa dos pobres pelo governo e a dos ricos pela Câmara).
A direita recuperou a iniciativa com o foco no tema da segurança, provocado pelo massacre da operação policial nos complexos do Alemão e da Penha. O governo caiu na defensiva e bateu cabeça sem saber enfrentar a barbárie proclamada pela direita, que teve o suporte da população. O governo se intimidou com a popularidade do massacre apontado pelas pesquisas de opinião e perdeu a chance de mostrar firmeza na defesa da sua correta estratégia de combater as facções com as eficientes ações da PF e apontar a ineficácia da barbárie policial. Atrasado, Lula condenou a matança e defendeu as ações da PF que atingiram o coração das facções, mas este pronunciamento ficou prejudicado pela escorregada verbal do presidente, apontando os traficantes como vítimas dos consumidores de drogas.
Os projetos de lei sobre o tema da segurança propostos pelo governo estavam corretamente formulados, mas foram desfigurados pela Câmara sem que o governo procurasse mobilizar o apoio da sociedade. A busca de acordos com o Congresso evitou algumas das piores propostas de Derrite, mas, mais uma vez, as contradições ficaram mal explicadas para o público e o governo perdeu na votação sem conseguir mostrar as diferenças. Caiu-se, de novo, na estratégia de negociação e na confiança na “base do governo”. Apenas os três partidos fiéis deram todos os seus votos para o governo e o resto, direita, extrema direita, centrão, e centro esquerda votaram contra. Era melhor perder com uma posição mais clara.
A escandalosa tentativa da direita de enfraquecer a PF (polícia com alta aprovação na opinião pública) e blindar políticos, repetindo a manobra derrotada após as manifestações de massa, poderia ter gerado um movimento semelhante, mas o governo se perdeu em negociações com Hugo Motta e o Centrão e deu no que deu.
A cereja do bolo deste equívoco foi a escolha do futuro ministro do STF que deve ocupar a vaga de Barroso.
Este não é um tema onde exista uma atenção da opinião pública. O povão não acompanha os meandros da política nos tribunais superiores e não conhece direito os personagens envolvidos. Tudo fica, aparentemente, em uma contradição entre um amigo do presidente (Messias) e um amigo dos senadores (Pacheco).
Qual seria a alternativa correta para o governo?
Em primeiro lugar, o governo deveria respeitar uma regra que parece ter caído em desuso no Brasil. O primeiro critério de uma escolha para o STF deveria ser o chamado “notório saber jurídico” e não a fidelidade de um ou outro candidato ao presidente, ou sua identidade religiosa (caso dos dois bolsonaristas do STF).
O segundo critério importante seria a representatividade social do candidato. O governo deveria ter feito uma consulta aberta à sociedade e buscado candidatos que tivessem, além do já apontado notório saber jurídico, uma identidade que diversificasse a composição da Corte, desde sempre composta por homens brancos, com apenas três mulheres brancas participando em toda a sua história.
Ao manter a tradição de buscar fidelidade ao presidente, apesar de escaldado por algumas traições em passado recente (notoriamente Barbosa, o algoz do mensalão e Tóffoli, o algoz do petrolão), Lula foi atrás de um personagem juridicamente insignificante, mas, supostamente, caninamente fiel.
Não importou o que o personagem possa pensar sobre temas importantes que o STF tem que enfrentar. Ele pode ser mais fiel do que um cão ao presidente, mas trata-se de um evangélico com um pensamento conservador nos temas como aborto (entre outros do tipo “costumes”). Além disso, Messias é simpático à forte pressão das igrejas por privilégios contrários ao princípio do Estado laico, inscrito na Constituição, mas frequentemente distorcido por sucessivas leis votadas no Congresso por iniciativa da bancada da Bíblia e não vetadas pelo STF.
Ao escolher Messias, apesar de saber da oposição de seu mais recente aliado no Senado, Alcolumbre, Lula se colocou em posição fragilizada e corre o risco de ter um troco pesado do presidente do Senado. Alcolumbre não piou com a definição de Lula, mas seu entorno já está indicando que as votações de interesse do governo estão ameaçadas. O presidente do Senado já disse que vai pautar um projeto de lei elevando as aposentadorias dos funcionários de saúde que pode gerar um rombo sinistro nas contas do governo para o ano que vem.
Não se trata apenas de travar a escolha de Messias no Senado, coisa que Alcolumbre já fez por quase dois meses no governo Bolsonaro. O perigo reside mais na votação da PEC da Devastação, na da LDO e em outras mais. E, neste caso, Lula não pode apelar para o apoio da sociedade. O fato de que o anúncio da escolha de Messias foi feito no Dia da Consciência Negra piorou o quadro. Se a escolha tivesse sido a de uma respeitada jurista negra, Lula teria um argumento forte para enfrentar os arreganhos de Alcolumbre. A sociedade pode se sensibilizar pela candidatura de uma mulher e mais ainda de uma mulher negra, mas o critério de fidelidade prevaleceu. Ao escolher Messias ele se dispôs a enfrentar o Senado sem qualquer respaldo na sociedade e está comprando um grande risco de ser atropelado pela vingança de Alcolumbre.
O gato de Lula (Messias) subiu no telhado e pode não ser ungido pelo Senado, o que seria um raríssimo caso na história da Corte. Ou ainda, o gato (Lula) subiu no telhado e pode ser batido em votações importantes no choque de poder com o presidente do Senado.
Publicado originalmente en Geração 68.
*Jean Marc von der Weid foi Presidente da UNE entre 1969 e 1971, Fundador da ONG Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em 1983, Membro do CONDRAF/MDA entre 2024 e 2016 e Militante do movimento Geração 68 Sempre na Luta.
Foto da capa:Ia




