O Crime da Fazenda do Inglês: Uma Crônica de Sangue e de Injustiça na Petrópolis Imperial (1887-1889)

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Por OTAVIO AUGUSTO BONI LICHT*

Buscando encontrar uma conexão entre a minha família Licht que em 10 de maio de 1828 chegou em Porto Alegre, na Província de São Pedro do Rio Grande, com a família Licht (que também é grafada como Lischt) chegada em 1846 em Petrópolis na Província do Rio de Janeiro, deparei-me com uma série de notícias nos jornais da época que referiam a um assassinato ocorrido em 1° de abril de 1887 na “Cidade Imperial”. O farto material encontrado no decorrer da pesquisa me levou a elaborar essa crônica que traça o cenário e a linha de tempo desde da preparação, a investigação, a condenação e até o desfecho, e expõe o enredo complexo e que reflete muito da sociedade daquela época. A crônica foi elaborada a partir dos Autos do Processo encontrado no Arquivo do Tribunal do Rio de Janeiro, a documentação jornalística disponível na Hemeroteca Brasileira da Biblioteca Nacional, e dados genealógicos sobre a colônia alemã de Petrópolis do arquivo de Guilherme Auler cedidos pelo colega Pedro Auler. Muitas citações e transcrições literais foram mantidas entre aspas e em itálico de modo a preservar o estilo de redação utilizada à época.

A Petrópolis, do final do século XIX, era um retiro de montanha onde a familia de Dom Pedro II buscava o ar fresco e o silêncio para fugir ao calor úmido do Rio de Janeiro. Contudo, sob o verniz de civilidade e os jardins bem cuidados, a cidade ocultava as fraturas mais profundas da sociedade brasileira, onde a lei e a honra dançavam conforme a música dos poderosos. O ano de 1887 seria marcado por um “assassinato cobarde e bárbaro” que chocou a população e expôs, em cada um de seus autos, o drama da imigração, a chaga da escravidão e a impunidade política. O palco de tudo, as florestas sombrias da Fazenda do Inglês.

Para compreender melhor o cenário, é preciso recuar no tempo.

Desde o final das Guerras Napoleônicas, as condições econômicas na Europa central eram muito difíceis. Os alimentos eram caros, o valor do trabalho e dos serviços era muito depreciado, e as doenças deixavam um rastro de dor e morte.

As promessas feitas desde 1823 pelo Major Anton von Schaeffer, emissário e representante do governo do Imperador Pedro I, ainda ecoavam nas cidades e vilarejos do vale do Mosela. Mesmo que as cartas enviadas por alguns emigrados a seus parentes e amigos na região de origem, relatassem a sofrida realidade e as duras condições de vida nas colônias de suíços e alemães que se distribuiam pelo litoral brasileiro, desde Catucá nos arredores do Recife na Província de Pernambuco, até São Leopoldo, São João das Missões, Três Forquilhas e São Pedro de Alcântara na Província de São Pedro do Rio Grande, a necessidade e a fome os empurrava para atravessar o Atlântico.

É claro que tomar a decisão de emigrar para as Américas não foi simples. Eles deixavam para trás ligações familiares, amizades, ofícios, casas, oficinas e propriedades rurais e animais de criação. Pelo excesso de oferta, os preços estavam totalmente depreciados, e assim eles vendiam todos os seus bens e conseguiam valores irrisórios mas necessários para a sobrevivência até o porto de embarque e depois por algum tempo no Novo Mundo.

Padecendo essas duras condições, uma família de imigrantes da cidade de Birkenfeld, na região do rio Mosela, naquele tempo na Renânia Palatinado e hoje no território da Alemanha, buscou no Brasil Imperial as promessas de terra e de prosperidade. Era formada pelo patriarca Friedrich Carl Licht e sua esposa, Maria Dorothea Ternes Burger (ou Maria Dorothea Ternes Haut). Friedrich Carl nasceu em 1820, era um carpinteiro alfabetizado, uma condição que, embora humilde, lhe

conferia um certo status. O casal veio com dois filhos, um deles Franz Carl com 3 anos de idade. As notícias posteriores apontam apenas ele que, no Brasil, logo se tornou conhecido como Francisco Carlos.

Como não foram localizadas as listas de passageiros, não há certeza se essa família Licht viajou na galera de bandeira norte americana Ariosto que zarpou do porto de Anvers (Antuerpia, nos Países Baixos) em 20/9/1846 e chegou no Rio de Janeiro em 13/12/1846, se no brigue de bandeira sarda Eridano, saído da Antuerpia em 25/10/1846 e chegado ao Rio de Janeiro em 22/12/1846, ou então na barca de bandeira belga Mary Key que deixou a Antuerpia em 6/11/1846 e chegou ao Rio de Janeiro em 22/12/1846. Seja qual for o barco que os transportou, a família Licht (também grafado como Lischt) chegou ao Rio de Janeiro no final de 1846.

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Eles acompanhavam uma leva de imigrantes subsidiados pelo governo imperial, mas tudo indica que a familia Licht comprou as passagens por sua própria conta. Após uma breve estada no Rio de Janeiro, o grupo foi enviado para Petrópolis se estabelecendo no quarteirão Mosela, onde Friedrich Carl recebeu o prazo de terra nº 825 e uma gratificação imperial de 20$000 relativa a uma família de quatro pessoas. Passado algum tempo, o casal teve mais dois filhos que foram batizados na Igreja Evangélica de Petrópolis: Maria Elisabeth nascida em 24/9/1848 e batizada em 8/10/1848 (Reg. Batismo N° A6-35), e Philipp nascido às 6 horas da manhã do dia 11/5/1850, e batizado em 30/6/1850 (Reg. Batismo N° B20-119). Em 1887, Frederico Carlos já se declarava como viúvo.

Friedrich Carl extraía madeira não apenas para sua oficina, mas para comercializar peças brutas, para o mercado de construção civil da cidade. Era um homem em pleno vigor, pai e empreendedor, cuja subsistência estava atrelada àquela terra recebida e legitimada por escritura.

Logo, o filho Francisco Carlos casou-se com Elisa Jung, também filha de imigrantes alemães, e com ela teve seis filhos — Anna, Leocadia, Elisabeth, Julia, João e André. Em 1876, na Lista de cidadãos votantes e elegíveis de Petrópolis, André é citado como “André Licht, 25 annos, casado, marcineiro, sabe ler, filho de F. C. Licht, 300$, não elegível.”

Em 31 março de 1886, Francisco Carlos Licht tinha adquirido outra propriedade de Florinda Ferreira d’Aguiar, que era tutora dos menores Maria, Florinda e Fernanda, filhos dos finados Maria da Conceição Fernandes da Cunha e seu marido Felicio Fernandes da Cunha. Esta data de terras se localizava na Fazenda do Inglês, e confrontava por um lado com o Dr. Manuel Antonio Bento, por outro “com quem de direito for”, e fazendo testada para a Linha Imperial e fundos “com quem de direito for”. Por essa propriedade, Francisco Carlos Licht pagou a quantia de 1:820$206.

Desde que Francisco Carlos assumiu a posse do terreno, começou uma discussão quanto aos limites dessa terra com o vizinho Guilherme Anastácio Duprat que está citado na escritura apenas como “com quem de direito for”. Duprat tinha 41 anos, era solteiro, fazendeiro, residia em sua propriedade na Fazenda do Inglês. Era filho de Benjamin Duprat, uma família de projeção na cidade. Guilherme era uma figura política influente, vereador e membro da Câmara Municipal de Petrópolis por vários mandatos desde 1871. Em 18/12/1876, foi considerado apto para ser jurado da Comarca. Enfim, uma personalidade pública e bem conhecida da cidade imperial.

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Licht, amparado por sua escritura, acusou Duprat de invadir e extrair madeira ilegalmente de suas matas, chegando a lhe mover uma ação de embargos.

A discussão sobre os limites, escalou rapidamente para uma disputa judicial, e depois para uma guerra privada. Para Duprat, a terra era um direito inato, e para Licht era uma conquista a ser defendida palmo a palmo.

Licht alegava que Duprat não só cortava suas madeiras e pontes, como depois depois confirmou a testemunha Manoel Martins Maia, mas até mesmo envenenava a comida de seus trabalhadores com uma substância tóxica, possivelmente mercúrio. Duprat, por sua vez, retrucava, alegando ser vítima de emboscadas e espancamentos a mando dos “alemães“, maneira como ele se referia à família Licht, e que estes já tinham até armado uma espingarda escondida no mato para que ela disparasse à sua passagem.

A tensão se tornou evidente na comarca. Em uma reunião, realizada como tentativa de conciliação entre as partes, na qual o Promotor de Justiça Leonel Loreti da Silva Lima que surpreendentemente também atuava como advogado de Licht, se exasperou com a recusa de Duprat em negociar. Muito irritado, Loreti chegou a insultar o fazendeiro, chamando-o de “burro

e de homem sem reputação“, e declarou ter aconselhado seu cliente a defender a sua propriedade “à viva força“, e se necessário, usando até mesmo capangas. Após ser criticado pelos presentes por seu comportamento e pelo seu conselho, o Promotor Loreti reconheceu seu erro e se declarou impedido de atuar como advogado representante de Licht.

A inimizade era pública, a ponto de testemunhas terem ouvido Duprat sentenciar com frieza que “Licht não chegaria vivo a 1888“.

O próximo passo arquitetado por Duprat exigia um instrumento invisível, que foi materializado na pessoa de João Flauta, descrito nos autos como “natural da Provincia de Pernambuco, filho de João Cassange, cor preta, estatura regular, barba pouca e já pintando, tócca um clarinete de taquara feito por elle mesmo, tem o dedo indicador de uma das mãos com a ponta cortada, e o dedo maximo de uma das mesmas, torto para um lado. Foi comprado ao Sr. Albino Ignacio da Silva morador no Corrego Sujo, Freguezia da Bemposta. Este escravo pertence hoje a Antonio da Silveira Albernaz Filho, morador no logar denominado Quilombo, Freguezia de São José do Rio Preto”. Em outra página dos autos, é descrito como “…entre outros signaes, traz barba cerrada, não aparada, já um pouco branca, cabelleira regular, não parecendo ter signal algum nas faces…” e que “… a falta de cabelos que se nota em sua cabeça é devida a bexigas e tinha.” Para alguns, João Flauta dizia ser um “fugido”, e para outros dizia ser propriedade de Antonio Silveira Albernaz, o que o tornava a arma perfeita pois, no cenário da época, era considerado como descartável.

Logo, Duprat escreveu um bilhete convocando Flauta para uma conversa, tendo servido de mensageiro o proprietário rural Christovão Candido Fragoso. A princípio, Flauta ficou desconfiado de que o encontro fosse uma armadilha para sua captura por capitães do mato. Mesmo com esse pressentimento, decidiu ir à casa de Duprat, onde recebeu uma proposta hedionda de matar o vizinho Francisco Carlos Licht. A moeda de troca do serviço, não seria ouro, mas a promessa de liberdade bancada pelo mandante, homem poderoso e influente na política local. Flauta, pobre cativo, afirmou que jamais tinha cometido ato semelhante, mas a promessa de alforria o venceu. Posteriormente Flauta declarou “Matei por ordem do senhor Duprat. Ele prometeu minha liberdade se eu acabasse com Licht“. O plano incluía até mesmo alguns ensaios, como a derrubada das pontes na estrada pública da Linha Imperial, por onde os carretões dos Licht passavam, o que teria sido realizado duas vezes por Duprat e Flauta durante a noite.

No dia 1º de abril de 1887, por volta das 14 horas, a cena macabra estava armada. Francisco Carlos regressava à cidade em um carroção carregado de madeira. Ao seu lado, estava seu pai, Friedrich Carl e um de seus filhos, André. O empregado Manoel Pinto seguia a uma pequena distância, possivelmente com João, outro filho de Francisco Carlos. Num local isolado e silencioso conhecido como Gasta-Tempo, uma curva cega na “estrada publica que vem do logar denominado Santa Catharina para esta cidade, e em terras da Fazenda do Inglez, próximo à ponte, chamada ponte da canna”, a cerca de 15 minutos da Fazenda do Inglês, o estampido de uma espingarda rompeu a paz da tarde. Fulminado pelo disparo certeiro, sem tempo para reação ou defesa, Francisco Carlos morreu em poucos minutos.

João, filho da vitima, relatou que o avô tinha corrido até Petrópolis para pedir ajuda e que ele tinha ficado só com o pai, moribundo. Este tinha pedido que lhe tirasse seus sapatos e que se “ não pudesse morrer em casa, que morreria ali”. Alguns trabalhadores chamados das matas para acudir, relataram ter visto em um barranco próximo do local, algumas pegadas incompletas de pé pequeno e descalço.

A carga era de mestre e a mão certeira.” O exame do corpo constatou diversos ferimentos por chumbo N° 1, um dos quais atravessou o coração, e por um projétil ( balote) que atravessou o estômago e o fígado, e alojou-se em uma das vértebras.

O crime, “cobarde e bárbaro“, logo deflagrou uma das mais tensas e controversas investigações da história de Petrópolis e uma cobertura implacável da imprensa local, e até do Rio de Janeiro. A indignação coletiva não tardou a pressionar as autoridades.

O inquérito foi conduzido pelo delegado de polícia interino Plácido Viard. Por algum tempo, João Hang compadre de Licht, chegou a ser “apontado pelos proprios allemães, pela propria família do assassinado, como sendo aquelle que poderia ter perpetrado o crime”. Ele tinha o agravante de na antevéspera do crime ter comprado uma espingarda para caçar com chumbo fino diferente

do usado pelo assassino. Durante o interrogatório, comprovou ter levado o filho doente ao hospital, o que o inocentou.

Pelos depoimentos, o delegado identificou o histórico das desavenças entre os vizinhos, e o nome de Duprat emergiu como o orquestrador da tragédia. Logo apontou a dupla, Guilherme Duprat e João Flauta como mandante e executor, respectivamente.

A investigação, foi maculada por polêmicas, sendo o Promotor Leonel Loreti, acusado de conduzir o inquérito “de forma autoritária e ao arrepio da lei“, e sob a alegação de coação de mais de cinquenta testemunhas, que tinham sido detidas à noite e interrogadas por longo tempo.

Duprat foi interrogado e muitas testemunhas foram ouvidas. Logo tudo se esclareceu e a formação de culpa seguiu o seu rito normal, evidenciando Duprat e Flauta como os principais acusados do “assassinato cobarde e bárbaro” de Licht. Com base nas provas e evidências coletadas nas investigações, o Delegado de Polícia requisitou e o Juiz da Comarca emitiu o mandado de prisão para ambos os acusados. Com isso, no domingo, 1/5/1887, Guilherme Duprat foi preso pela autoria do crime, mas a vitória da acusação foi efêmera pois, por força de um habeas corpus, ele foi solto em 9/5/1887. Mesmo que essa ordem de soltura tenha sido cassada rapidamente pelo Tribunal de Relação, foi tarde demais, pois Duprat usou o pequeno período dado pela brecha legal para evadir-se e desaparecer de Petrópolis.

O impacto do crime transcendeu as páginas policiais. Na noite de 10 de maio, uma companhia teatral denominada Grupo Dramático, organizou uma noite beneficente no salão da Floresta, em prol da viúva e dos filhos da vítima. No salão lotado, o artista Sr. Lima emocionou a plateia ao declamar a poesia “Festa e Caridade”.

Mesmo com a fuga de Duprat, o processo seguiu seu curso, mantendo a dupla Guilherme Duprat – João Flauta como acusada do “assassinato cobarde e bárbaro” de Licht.

O cerco se fechou em 16 de maio de 1887, quando João Flauta foi capturado no lugar conhecido como Carvão. Em 18 de maio, um telegrama enviado pelo delegado de polícia ao chefe de polícia da província comunicou a captura.

No ato da prisão, o carcereiro da cadeia de Petrópolis, Antonio de Souza Benevides, encontrou em poder do acusado “que confessa serem suas”, os seguintes materiais que foram entregues ao Juiz Municipal “uma espingarda de um cano, troxado de asso, um facão mostrando já ser uzado com bainha de couro, prezo em sintão de prezilhas de asso, com bainha de couro, dous canivetes, um já muito velho, estragado, e outro maior em bom estado, duas quantidades de chumbo, uma – quarto de balla – e outra mais fino e algumas ballas feitas grosseiramenmte de pedaços de chumbo” e “também um intrumento de sopro de taquara, uma pequena caixa com espoletas, e um polvarinho com pólvora ”.

A detenção de João Flauta produziu nas ruas de Petrópolis uma “scena barbaresca, digna dos invios sertões do remoto interior, e a que não estava habituada aquella culta cidade, perola de nossa patria e de nossa civilização“. O crime e seus desdobramentos repercutiu até na Assembleia do Rio de Janeiro, quando na sessão de 15 /11/1887, discursou o deputado conservador Candido Drummond quando alegou manipulação partidária do crime, já que correligionários liberais do Sr. Porciuncula, que eram adversários políticos do conservador Duprat, acompanharam a escolta em meio a “vozeria infernal, de vivas e morras, e o incessante estourar de foguetes” que quase levou ao linchamento do próprio preso. “No meio dessa infernal mashorca era victoriado, acclamado o promotor publico da comarca!“, declarou o deputado.

Nos dois dias seguintes, prosseguiu o interrogatório para a formalização da culpa do acusado João Flauta. Inicialmente ele negou qualquer participação porém, quando foi confrontado com os depoimentos de Napoleão Antônio Rosas e de Antônio Moleque, dois escravizados que tinham ouvido a descrição minuciosa do crime feita pelo próprio João Flauta, sua resistência foi quebrada. Ele passou então a confessar em detalhes, revelando a arquitetura do assassinato encomendado por Duprat. Declarou que “depois que chegou a Petropolis, fugido, tem trabalhado para diversas pessoas na ordem seguinte: Christovão, major José Candido, major José Innocencio, Manoel de Souza e Guilherme Duprat. Que estas pessoas, para quem trabalhou, apresentando-se como livre, excepto para Christovão, Manoel de Souza e Duprat, a quem se apresentou como escravo.” Confessou dizendo ter sido “o executor da morte de Lischt, a mandado de Jorge Duprat, que lhe promettera por paga de semelhante acção, libertal-o do captiveiro“. Teria seguido as instruções

de Duprat dizendo“que se não confessara o crime no primeiro interrogatório fora – por lhe haver o réo Duprat recomendado que – se acaso fosse preso – negasse tudo, fizesse cara-dura, que o livrava, contando para isso com com seus amigos e que tinha muitos.” Narrou o recrutamento feito por meio de um recado e de que temera “desconfiado que fosse alguma combinação de Duprat com algum capitão do matto que o quisesse prender, por isso é que se dirigira a Antonio Moleque, de quem não era inimigo; não tendo depois do assassinato de Lischt se encontrado mais com Antonio Moleque, com quem não esteve, ou com as pretas de Antonio Felizberto na fazenda da Olaria, não indo ahi por não se fiar, visto morar mais gente na fazenda.” Mesmo assim, teria ido à casa de Duprat, onde selaram o pacto. Na ocasião, Flauta pediu que, se houvesse pagamento, “que fosse em beneficio de sua liberdade, que ele respondente era um pobre captivo e que nunca tinha feito destes actos.” A frieza do plano se completou quando declarou que Duprat tinha lhe fornecido “dois ou trez kilos de toucinho, um selamin de feijão, dois kilos de café e quatro ou cinco kilos de assucar, tendo, anteriormente a isto, lhe dado o facão que lhe foi apprehendido“, para que ele pudesse viver escondido pelos matos, “á escora de Lischt“.

Durante o depoimento, João Flauta confessou outros crimes que havia cometido, mesmo que não estivessem relacionados com o crime em questão “Que tendo vindo de uma caçada à noite, na estrada próxima da fazenda de José Vieira dos Santos Werneck, foi cercado em uma roça por dois pretos deste, cujo nome ignora, e querendo fugir, pedio-lhes que o deixassem, pois que não era a pessoa que procuravão. Não sendo atendido, ele Flauta deu um tiro em um deles, que o tinha ferido com a foice, cortando-lhe um dedo e destroncando outro, da mão esquerda ambos; e continuando a ser perseguido pelo outro companheiro, conseguiu tomar uma foice deste, e com ella deu-lhe uma foiçada, deixando-o por morto. Mais tarde soubera pelo fallecimento do Felippe, que presenciara o corpo de delicto, que o ferido pela foice morrera. Que um mês depois, mais ou menos, da morte de Lischt, que teve lugar a 1 de abril próximo findo, depois de trez dias que andava molhado, estando em um matto da fazenda de José Carlos de Araujo Franco, na freguesia da Bemposta, cortando uns ramos para fazer uma coberta contra a chuva, tendo deixado sua espingarda e a tralha em um lugar do matto, foi perseguido por um preto velho, que não conhece, e que lhe apanhara a espingarda e a tralha. Retirava-se este do matto, quando foi acompanhado por ele Flauta, que lhe pedio que lhe entregasse a sua tralha e espingarda; mas, recusando-lhe aquelle a entrega do seus objetos, ele respondente, lutando com o preto velho, tomou-lhe a espingarda; e continuando o mesmo preto a recusar-lhe a entrega da tralha, ele Flauta lutou com o mesmo preto, atirando-o ao chão. Que o mesmo preto lhe declarou que, desde

o dia anterior, ele, seu senhor moço e outras pessoas andavão á procura dele respondente. Como

o mesmo velho começasse a gritar, chamando por outras pessoas, ele Flauta o matou com um tiro de espingarda.”

O círculo de testemunhas que confirmava o elo entre os réus era vasto e complexo. Christovão Candido Fragoso admitiu ter sido o portador do bilhete com o convite para o encontro fatídico. Manoel Martins Maia tinha testemunhado as ameaças de Duprat e confirmou os atos de destruição das pontes feitos pela dupla. Houve ainda o testemunho devastador de Martha, a amásia de Guilherme Duprat, que, ao ver Flauta em sua casa, desconfiou das intenções de vingança de seu amante e pediu a João Adão Molter que avisasse Licht que um negro fugido tinha a missão de matá-lo. Apesar desses alertas transmitidos por Molter a Licht na presença de Francisco Oliveira e a João Hang, compadre de Licht, e também aos filhos André e João Licht, a tragédia não foi evitada. Para piorar a situação do réu, a testemunha Martha, amante de Duprat, declarou que João Flauta era “fugido”, que ele já havia cometido quatro mortes em casa de Werneck, e que ela tinha avisado Joaquim Luiz Leuck do plano criminoso. O depoimento da testemunha, a escrava Maria Pastora, incriminou ainda mais o executor João Flauta.

Com a confissão de Flauta, o Juiz Sebastião Benvenuto Vieira de Carvalho manteve a pronúncia dos réus e os considerou incursos no artigo 192 do Código Criminal, com Guilherme Duprat na qualidade de mandante e João Flauta na de executor. Sentenciou Flauta na prisão em que se achava e que se passasse o mandado de prisão contra o evadido Duprat, lançando seus nomes no rol dos culpados e que também pagassem as custas do processo.

O Promotor Martinho Alvaro da Silva Campos Sobrinho assumiu a acusação, enquanto a defesa de Duprat, que contava com os advogados Cândido Drummond F. de Mendonça e Marcos

Fioravante, tentava uma tese desesperada, alegando a “legítima defesa da honra“, mas falhando em apresentar provas.

A partir da pronúncia, o destino dos dois réus se bifurcou. Flauta, o escravizado, foi enviado à prisão. Duprat, o político influente, usou sua rede de contatos para conseguir um habeas corpus e, antes que o mandado de prisão definitivo fosse emitido, simplesmente desapareceu de Petrópolis. A imprensa, na figura de “O Mercantil”, criticou abertamente a impunidade: “Duprat está homiziado, e a justiça, lenta, parece acovardada“.

O embate político partidário entre liberais e conservadores, foi amplamente explorado no decorrer do processo. Na mesma sessão da Assembleia do Rio de Janeiro de 15/11/1887 o Deputado Cândido Drummond declarou que durante o sepultamento de Licht, houve um republicano (liberal) que proferiu um discurso, que exaltou os ânimos dos alemães incitando-os à um ‘desforço physico imediato’. O parlamentar declarou que a tragédia estava sendo usada como combustível para a polarização política, tendo sido necessária a intervenção do pastor protestante para acalmar os ânimos, apelando para “sentimentos pacíficos e confiança na acção da lei e das autoridades”.

O julgamento do mandante Guilherme Duprat, que estava foragido, e do executor João Flauta, ocorreu em 12 de março de 1888 no Tribunal do Júri de Petrópolis, que foi presidido pelo Juiz Sebastião Benvenuto Vieira de Carvalho, Juiz Municipal e de Orfãos do Termo da Estrela . O advogado Enéas de Arrochellas Galvão defendeu o réu, e a viúva, Elisa Licht, foi representada pelo advogado Zeferino de Faria. O juri foi constituído pelo Presidente Fernando M. de Simas, Secretário José Martins Meira, Herculano d’Almeida Marques, Jacob Nicolaÿ, Eugenio Alves Pinto Guedes, Felippe Schoabenland, José Nicolaÿ, Paulo Hehn, Jacob Becker, Jacob Christ, José Antonio Ferreira Bessa e José Antonio Portugal. Às 20:15 h, perante grande público, foi lida a sentença e, por unanimidade, o réu João Flauta foi condenado à “pena de morte que lhe será dada em forca“. Imediatamente, o advogado de defesa apresentou uma apelação da sentença.

Contudo, a odisseia judicial de João Flauta estava longe de terminar. Sua condenação em Petrópolis era apenas o início de uma saga de idas e vindas que expôs sua reputação como pistoleiro e assassino de aluguel. Em março de 1888, os jornais noticiavam que Flauta havia sido levado sob custódia para Paraíba do Sul, onde estava sendo pronunciado por outro crime de homicídio, desta vez pelo assassinato de João Moçambique. Em junho, a condenação à morte pelo juri de Paraiba do Sul com base no artigo 193 do código criminal, somou-se à outra já definida em Petrópolis.

Com duas condenações à morte acumuladas, a máquina judiciária arrastava João Flauta pelo Império. Em junho de 1888, Flauta foi remetido de Niterói, onde estava custodiado, de volta para Petrópolis, para ser submetido a um novo julgamento pelo crime de Licht. O desfecho ocorrido em 24 de setembro, foi idêntico. O júri de Petrópolis, agora formado pelo Presidente José Francisco de França e Silva, Secretário Noel da Gama Moret, Antonio Aniceto A. de Oliveira, Antonio Brandão Filho, José Morges Correa S., José Antonio d’Oliveira Costa, Henrique Eckardt, Guilherme Eppinghaus, Daniel Vieira Dias, José Ribeiro de Carvalho, Francisco Martins Falleiro Junior, Alfredo José de Castro confirmou a condenação à pena capital. Além disso, o proprietário de João Flauta foi condenado ao pagamento das custas do processo no montante de 887$640.

A pena de morte, porém, não seria o final que a justiça prescrevera para ele. Condenado duas vezes à “pena ultima“, tanto por Petrópolis quanto por Paraíba do Sul, o escravizado João Flauta morreu de causas naturais, salvando-se assim do enforcamento. Na madrugada de 25 de abril de 1889, ele faleceu na enfermaria da Casa de Detenção de Niterói. Moribundo, Flauta pediu ao major Nery, que era o administrador da penitenciáaria, a presença de um sacerdote para se confessar. A notícia de sua morte encerrou a participação do executor na tragédia. Jornais como O Mercantil o descreveram como o “desgraçado, instrumento de que se serviu Guilherme Anastacio Duprat para o assassinato de Carlos Lischt“.

O mandante, Guilherme Anastácio Duprat, por sua vez, sumiu dos registros oficiais, deixando o caso sem um desfecho judicial completo. Historiadores sugerem que ele tenha se homiziado em Minas Gerais, onde o poder e a riqueza seriam capazes de neutralizar a justiça.

À família Licht, restou a dura tarefa de reconstruir a vida. Anos após o crime, a viúva Elisa Licht e seus filhos Ana, Leocadia, Elisabeth, Julia e João ainda figuravam nos registros imobiliários, lutando para manter os prazos de terra registrados em nome do falecido Francisco Carlos.

A tragédia do Crime da Fazenda do Inglês, com seu grande elenco de protagonistas e coadjuvantes, é um retrato da sociedade brasileira às vésperas da abolição da escravatura e da república. Expôs a “fragilidade da justiça e do poder corrosivo das diferenças sociais“, e assim o caso se enraizou no folclore local, ecoando por décadas como um sussurro sombrio na história da cidade imperial.

O caso Licht virou lenda local, e pode ser considerado um símbolo das mazelas do Brasil Imperial, pois desvelou a fragilidade da justiça e o poder das diferenças sociais, um retrato esquecido de como a justiça do século XIX protegia os poderosos. A vítima, um imigrante alemão, o mandante, um fazendeiro e político influente e o executor, um escravizado fugitivo, tornaram-se símbolos de uma tragédia que ecoaria na história da cidade imperial.

A propósito, ainda não encontrei a conexão que eu buscava entre a família Licht do Rio Grande do Sul com a de Petrópolis.

Fontes de pesquisa:

Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro:

Autos do Processo 00 836 605-6.

Hemeroteca Brasileira, Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro:

Annaes da Assembléa Legislativa Provincial do Rio de Janeiro, Sessão em 15/11/1887 Cidade do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro) – 1888 (16/3)

Diário de Notícias (Rio de Janeiro) – 1887 (19/5, 27/5), 1888 (2/5), 1889 (28/9) Gazeta de Notícias (Rio de Janeiro) – 1889 (23/9, 25/9)

Gazeta Nacional (Rio de Janeiro) – 1888 (13/3, 15/3), 1889 (15/3) Jornal do Commercio (Rio de Janeiro) – 1888 (26/6)

O Constitucional (Rio de Janeiro) – 1889 (29/4)

O Fluminense (Rio de Janeiro) – 1887 (18/5), 1888 (16/3, 21/3, 15/5, 27/6, 19/9,

O Mercantil (Petrópolis) – 1876 (28/6), 1878 (28/12), 1879 (9/4, 5/6, 15/11, 27/12), 1881 (12/1, 7/9), 1883 (24/1), 1884 (28/5), 1887 (6/4, 13/4, 16/4, 23/4, 30/4, 4/5, 7/5, 11/5, 14/5, 21/5, 25/5,

27/5, 28/5, 1/6, 2/6, 4/6, 8/6, 11/6, 15/6, 22/6, 15/8, 3/9, 10/9, 9/11, 26/11), 1888 (14/3, 17/3, 5/5,

4/6, 8/6, 13/6, 26/9), 1889 (1/5, 26/9)

O Monitor Campista (Campos) – 1888 (15/3) O Paiz (Rio de Janeiro) – 1887 (26/5, 2/6)


*Otavio Augusto Boni Licht é Geólogo, professor do Programa de Pós Graduação em Geologia da Universidade Federal do Paraná.

Pesquisador da imigração não ibérica para o Brasil entre 1809 -1830 e de genealogia familiar. otavio.licht@gmail.com

Foto de capa: Reprodução

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  1. Que história! Tive um professor aqui em Petrópolis, Gilmar Lischt, que se não me falha a memória foi candidato a vereador. Como ele é do Bairro Mosela, certamente descende da vítima desta tragédia. Esse Duprat devia ter sua vida devassada para se chegar ao seu paradeiro. Vai ver que nem seus descendentes sabem de seu triste histórico..

  2. Otávio,

    Parabéns pelo excelente trabalho. Apresentou profundidade na pesquisa para descrever um relato muito bem elaborado.

    Sds, Mauro Esteves.

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