A Nova Caçada Urbana

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Por JORGE BARCELLOS*

“O grande poder da caça, que lança suas redes a níveis até então desconhecidos, na história, é o poder do capital”. Grégoire Chamayou, Caças ao homem, Ed.Crocodilo, 2025.

A imagem mais remota que tenho dos prédios históricos que “pegaram fogo” no centro histórico de Porto Alegre, no último dia 5 de novembro, é de minha adolescência quando, nos anos 80, subi por escadas de madeira de um deles em direção a um estúdio de fotografias que ali existia. Eu tinha 18 anos e estava indo ali tirar minhas primeiras fotos 3×4 para a carteira de identidade. Subi as escadarias e dei de cara com um escritório onde um fotógrafo profissional tinha uma sala dividida em dois espaços, um onde eu podia arrumar o cabelo diante de um espelho e, outro, onde estava sua máquina fotográfica, o que eu considerava melhor para fazer fotos para documentos do que as dos fotógrafos conhecidos como lambe-lambes junto ao Chalé da Praça XV. O prédio me chamava a atenção porque em sua parte superior tinha em relevo a data de sua fundação, o ano de “1884”. Isso o transformava no típico prédio histórico que viria a admirar nos estudos do curso de história que fiz nos anos 80, mas, no entanto, eram as madeiras do piso rangendo que me diziam da antiguidade daquele prédio de escadarias altas e apertadas. Eu só viria a encontrar prédios históricos como aqueles, décadas depois, quando visitei Montevidéu e Buenos Aires, e por isso ainda não consigo entender a tragédia aconteceu tão rápido nos prédios que pegaram fogo no centro da cidade.

Assumir a responsabilidade por seu abandono

Olho os prédios incendiados numa foto que saiu na imprensa: são dois prédios antigos espremidos entre dois outros prédios modernos. Olho uma foto do Museu Joaquim Felizardo onde estão aqueles prédios com outros similares. Ontem, um conjunto histórico digno dos países que visitamos em nossas viagens. Hoje, uns, testemunhas da história, e os outros, ao redor, testemunhas do poder do capital. Como foi que permitimos que a área mais central de Porto Alegre, que reúne Mercado Público, Prefeitura, Chalé e que ainda tinha uma boa dezena de prédios antigos, se desconfigurasse? Só encontro uma razão: aqueles dois prédios foram abandonados por nós. Nós os desprezamos nos levantamentos de bens de interesse histórico, pois eles não constam da relação publicada no site da prefeitura (disponível em https://abre.ai/n6cE ). Nós os desprezamos ao permitir que, ao seu redor, modernos prédios substituíssem os que estavam ao seu redor. Nós os desprezamos quando fomos incapazes de reagir às políticas neoliberais de corrosão da memória, pois preservar aqueles prédios deveria ser um objetivo coletivo e de estado. A tese deste ensaio que virá ao final é: nós permitimos que eles, como outros, fossem caçados pela especulação imobiliária da capital.

Olho de novo a imagem e penso que eles são como os dois irmãos pobres de um romance qualquer, que, ao contrário dos irmãos ricos da Praça da Matriz, o Teatro São Pedro e o antigo Tribunal de Justiça, onde ao menos um sobreviveu à sina do tempo, o Teatro São Pedro, eles não tiveram a mesma sorte. Não havia ninguém a lutar por eles como Eva Sopher lutou pelo Teatro São Pedro. Não sabemos se houve investimento para sua reforma, ainda que as vigas de ferro que resistiram bravamente à força das máquinas que queriam o derrubar, me parecem dizer que ele foi reformado em algum momento. Procuro a história desses prédios em Porto Alegre: arquitetura e contexto urbano (1772-2018), de Helton Estivalet Bello e Luiz Merino de Freitas Xavier (Libretos, 2025), uma obra recente de referência inestimável, mas eles não estão lá. Sendo de 1884, são do final do período imperial e, portanto, contemporâneos do Teatro São Pedro, do Mercado Público e do Museu Júlio de Castilhos retratados pelos autores. Porque então foram desprezados por historiadores e arquitetos, o que fizeram eles para serem silenciados por tais estudos?

Esses prédios viveram 141 anos, coisa que nenhum porto-alegrense conseguiu fazer. Viram a cidade crescer e sobreviveram à passagem do tempo quando o mundo viu duas guerras e sucessivas crises econômicas. Sobreviveram, só nos últimos anos, à pandemia e a enchente, mas não sobreviveram ao abandono de todos: autoridades, técnicos e cidadãos. Não sobreviveram porque à ganância dos especuladores penetraram na administração municipal e corroeram os mecanismos e órgãos de proteção do patrimônio histórico de nossa cidade. O seu abandono não é uma política qualquer, faz parte desta caça ao território com potencial de investimento em andamento em nossa capital protagonizada por grandes interesses do capital imobiliário. É uma política que diz que é preciso que a memória seja assassinada para que o capital possa comer seus restos, exatamente como fez com a casa do escritor Caio Fernando Abreu, demolida em julho de 2025. Em estilo colonial espanhol, a residência era símbolo da memória afetiva e literária da cidade como outra casa, a do escritor Dyonélio Machado, que está sendo reformada e perdendo as características que fazem dela um patrimônio cultural. Agora, dois casarões “pegaram fogo”.

Coloquei entre aspas “pegaram fogo”, pois ainda pairam muitas dúvidas sobre o que aconteceu com os dois prédios como afirma o jornalista e editor de Griffo Celso Augusto Schöridger. Ele diz que “Incêndios sempre foram instrumentos inestimáveis da especulação imobiliária. Temos uma casa antiga atrapalhando? Taca fogo. Não sei o que aconteceu nos casarões do século 19 da Praça XV, mas chama a atenção a presteza da Prefeitura para condenar suas estruturas, definir a impossibilidade de restauro e mandar demoli-los. Notre Dame, mantidas as diferenças, é de 1123 e foi restaurada” (disponível em https://abre.ai/n6uW). É uma sexta-feira, noite, e ainda não sei o que aconteceu com os casarões enquanto escrevo este ensaio. O incêndio, ao final, foi um acidente ou foi ato criminoso? Que fatos levaram o engenheiro a considerar o prédio, ou ao menos sua fachada, insustentável? Por que houve pressa na demolição da fachada?  Isso não prejudicou a atuação de nossos órgãos de perícia? Por que tais prédios não estavam na relação de construções de interesse de preservação? E, a questão que aguarda uma resposta: os terrenos onde estavam os prédios serão vendidos para uma grande construtora ou já são propriedade de uma?

Um prédio antigo ainda vivo

Os prédios que pegaram fogo tinham abrigavam em seu interior uma loja de sapatos e uma de produtos diversos. Eu me lembro de ir na segunda, mas não na primeira. Eu me lembro de sempre olhar, quando passava pelo centro, o número que indicava a data de fundação daquele lugar.  Não adiantou ao proprietário original do prédio afixar a certidão de nascimento na fachada como uma espécie de pedido de preservação para as gerações futuras. Não adiantou manter a atividade comercial no lugar durante mais de um século, inserindo o prédio na vida da cidade, geração após geração. Não adiantou estarem os prédios no Centro Histórico, simplesmente porque o capital quer que a capital esteja a serviço do capital. Que novas atrações comerciais se estabelecerão em nossos principais monumentos históricos, do Mercado Público ao Corredor da Borges? O capital só possui uma forma de se relacionar com a cidade: transformá-la num imenso shopping de marcas. Aqueles prédios eram diferentes demais para um universo que almeja que tudo seja igual.

Até prova em contrário, pode me chamar de desconfiado, de paranóico até, mas como Schöridger, eu suspeito do que aconteceu ali. A palavra “suspeitar” tem origem no latim “suspicere”, que é formado pelo prefixo “sub-” (que significa “debaixo” ou “sob”) e o verbo “specere”, que significa “olhar” ou “observar”. Originalmente, “suspicere” queria dizer “olhar de baixo para cima” ou “olhar com desconfiança”, o que evoluiu para o sentido de desconfiar, duvidar ou ter suspeitas sobre algo ou alguém. Etimologicamente, “suspeitar” está ligado à ideia de observar cautelosamente com uma postura de dúvida. Suspeitar além de democrático, é republicano. Todos têm direito a suspeita. É isso que faço aqui: observo tudo o que se passou com aqueles prédios, com o ritmo que se passou, com desconfiança. Segundo Schöridger, não seria a primeira vez que interesses da especulação imobiliária poriam abaixo prédios históricos; não seria a primeira vez que o poder público cederia à pressão do mercado para produzir facilidades para sua expansão imobiliária. É público que o atual governo recebeu durante a campanha eleitoral doações de pessoas físicas ligadas a construção civil (disponível em e https://abre.ai/n8gZ ) e promoveu medidas de enfraquecimento da proteção do patrimônio histórico que atendem a interesses dessas empresas,  interrompendo processos e políticas de tombamento consideradas de referência para pôr em seu lugar sua flexibilização (disponível em https://abre.ai/n8gY ) .

Eu não estou sozinho em minha desconfiança. No grupo Porto Alegre de Antigamente, do Facebook (disponível em https://abre.ai/n8g0 ) encontro dezenas de manifestações de cidadãos desapontados com o incêndio. Nas redes de WhatsApp uma amiga faz uma pergunta que ainda não foi respondida pelas autoridades quanto a fachada: não bastava escorar? Lembro que há um prédio muito maior, próximo à Casa de Cultura, praticamente todo escorado; o que sobrou do prédio incendiado era muito menor, reforçando seu argumento. O parecer pela derrubada da fachada não foi precipitado? Poderia se dizer que eram prédios isolados, mas eles se relacionam com o chalé e o mercado, nas proximidades, ao contrário dos prédios modernos ao seu redor. Em termos de história, quem mereceria estar ali? Ou é como o poema de Brecht, “É preciso agir”, em sua versão patrimonialista: “primeiro foram os casarões do entorno da praça que foram derrubados e não fizemos nada para sua preservação”, “depois foram outros e mais outros e agora são esses dois pelos quais também nada fizemos para proteger”. Para mim chegará o dia em que nossas grandes referências, o mercado, a prefeitura, desaparecerão. Não porque sejam demolidos, mas por acontecerá com eles algo que me assusta ainda mais, a possibilidade de que os prédios remanescentes da história de Porto Alegre não sejam vítimas de incêndios que privilegiam uns; que sequer sejam destruídos porque eles ainda constam das listas de preservação patrimonial: isso ainda é fácil demais. Há formas superiores de destruir essa memória, basta ressignificar nosso patrimônio em direção ao capital: hoje preveem-se museus no antigo prédio da prefeitura, mas quem sabe amanhã uma parceria público-privada não instale ali grifes famosas como já há nos shoppings? Nesses momentos, os patrimônios perderão seu sentido pela morte do signo que representam na memória afetiva de seus cidadãos. Qual a razão disso tudo?

A polícia da memória

Para responder essa pergunta, é preciso se colocar no lugar da protagonista anônima de A polícia da memória (Estação Liberdade, 2023), de Yoko Ogawa. Assim como ela está sob domínio de um sistema político opressor, nós estamos sob controle de uma estrutura econômica semelhante, em que incorporadoras acham que, porque podem construir a cidade, também a podem destruir. Ambos os sistemas têm a mesma característica, estão empenhados em destruir e apagar a memória, detalhe por detalhe. Se no romance ninguém tem nome e todos acordam sem saber o que é um chapéu ou uma rosa, também nós em Porto Alegre não sabemos a história dos prédios que desaparecem porque esse esquecimento é do interesse daqueles que querem abrir espaço para novos empreendimentos. Em ambos, seja por interesse dos políticos ou desejo de incorporadores, todos os objetos de memória têm o mesmo destino: serem incinerados pelo fogo. O que o fogo faz em ambos é obrigar a esquecer. Quem se lembra dos prédios antigos ao lado dos que incendiaram e que também desapareceram?

Tanto na obra de Ogawa como na realidade de Porto Alegre, há personagens imunes ao apagamento. No livro, a personagem imune ao apagamento é a mãe da protagonista;  aqui  em Porto Alegre, são todos aqueles que, como eu, protestam contra a derrubada das fachadas centenárias, exigem a publicização dos laudos que embasaram essa derrubada e pedem pela investigação aprofundada das causas do incêndio. Como a protagonista que guarda objetos escondidos para escapar da fogueira, nós colocamos as imagens do passado do prédio nas redes sociais, pois nos recusamos a esquecê-lo. Porto Alegre já foi uma cidade cuja paisagem tinha uma identidade, não era o Império do igual no qual está sendo transformada por nossos grandes conglomerados da construção civil.  Por isso os porto-alegrenses estão condenados, como os personagens do livro, a lutar contra a força do esquecimento e o desejo de recordar. Como em outra obra de Ogawa, O museu do silêncio, teremos de construir um local para guardar as lembranças dos prédios históricos que desapareceram na cidade. O fogo que consumiu os prédios históricos aproxima ainda mais o caso dos eventos ocorridos em romances distópicos como 1984, de George Orwell, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, que também são marcados por fogueiras, responsáveis pelo apagamento de memórias, e instituições que se responsabilizam pelas ações violentas de seu desaparecimento: nas distopias, é sempre uma polícia secreta; aqui, é a própria prefeitura que se encarrega de fazer desaparecer os prédios da maneira mais rápida possível. “Tem caroço nesse angu”, me diz uma amiga em um dos grupos de WhatsApp que participo e que criticam a iniciativa. Mas, como nos romances, é preciso que alguém pratique as ações violentas para que o plano aconteça. Que plano é esse?  Esse plano é a predação da cidade, a abertura de espaços para que o capital imobiliário possa se reproduzir.

Preservar a memória era coisa do passado

Os anos 90 foram de grande efervescência de práticas de preservação da memória da capital. Eram os anos dourados do Projeto Memória dos Bairros, dirigido por Marion Kruse Nunes no Centro de Pesquisa Histórica, que produziu inúmeras publicações como Memória da Grande Santa Rosa, Memória da Grande Glória, Memória do Bairro Petropólis, entre tantos outros. Seus pesquisadores sabiam do valor da Equipe de Patrimônio Histórico da SMC/PMPA, localizada no mesmo prédio em sua luta para o tombamento dos prédios históricos da cidade. Trinta anos depois, procuro o órgão no organograma da Secretaria Municipal de Cultura e constato que ele desapareceu (disponível em https://abre.ai/n6Gt ). É assim que a memória desaparece como política pública: esses órgãos foram objeto de luta e disputa que resultou em um controle sobre ele ou seu desaparecimento. Eles tinham as informações sobre esses prédios em seus acervos. Para onde elas foram hoje? Nós, cidadãos, é que não as temos: vasculho a internet e vejo uma lista limitada de imóveis tombados; descubro que muitos imóveis até já foram retirados de uma lista de imóveis de interesse de proteção; achamos que tudo está nas nuvens, mas, em seguida, tratando destes prédios históricos, pouco está. É verdade que talvez a prioridade não fossem estes prédios, mas os milhares de documentos de memória pessoal de centenas vítimas de enchente e que somos incapazes de avaliar, esses também necessitando de serem cuidados, recuperados e conservados, mas quem os fará?

É o contrário de Funes, o memorioso, do romance de Borges, condenados a não esquecer nada; nós estamos condenados a esquecer tudo de nosso passado, e chegará o dia em que o porto-alegrense não terá lembrança alguma dele pois as contrapartidas dadas por empresários da construção civil jamais poderão compensá-las. Perderemos nesse processo nossa memória coletiva, que nos dava identidade, nossa história inscrita naquelas construções. Leio que o PPCI daqueles prédios estava em dia e, portanto, podemos supor que era um incêndio que podia ser evitado; quando as fachadas são derrubadas quando podiam ser preservadas por escoramento, quando um a um os prédios históricos vão desaparecendo por nossa omissão, pelo afrouxamento da legislação de proteção, é sinal que a distopia de Yoko Ogawa está muito mais perto da realidade porto-alegrense do que podemos supor. Para Ogawa, só estaremos vivos enquanto pudermos lembrar o passado; para o mercado imobiliário, basta que o esqueçamos e compremos os seus imóveis construídos no lugar em que estavam nossos prédios históricos para o mundo continuar como deve ser.

Como indiquei na introdução, gostaria de propor outra explicação para o que está acontecendo com a proteção aos prédios históricos em nossa cidade e por que ela está fracassando. Grégoire Chamayou lançou recentemente Caças ao homem (Crocodilo, 2025), que inspira minha tese aqui.  A obra é um mergulho filosófico nas tecnologias de poder e dominação por meio da caça a escravos fugitivos, indígenas, pobres, exilados, judeus e imigrantes ilegais. Em sua visão, a história das caçadas humanas serve de perspectiva para interpretar a violência das classes dominantes; onde Chamayou vê caçadas humanas, eu vejo caçadas empresariais: toda uma história delas por busca por fontes de insumos, produtos, mercados e terras está para ser escrita como o autor faz das técnicas de perseguição e captura humana pelos sistemas de poder. Nesse mundo, caçasse pessoas e coisas. A razão é que entendo que a metáfora da caçada serve tanto para a política moderna como para a economia moderna: onde Maquiavel diz que o príncipe é aquele que deve ter a astúcia da raposa e a força do leão, eu vejo empresários da construção civil levando prédios históricos inteiros para o abate. Não é apenas o homem que é um animal político, ele é um animal econômico também.

O poder cinergético

Chamayou define o poder que a caçada realiza como poder cinegético. Sua análise me sugere que as formas primitivas dessa caçada a terrenos para construção de novos empreendimentos imobiliários eram feitas pelas incorporadoras buscando a fronteira da cidade nos anos 50. Era assim que a expansão de Porto Alegre foi feita, primeiro em direção à zona norte e, após, em direção à zona sul, por meio de seus inúmeros conjuntos de apartamentos, condomínios e áreas de luxo que se transformaram em regiões muito valorizadas da cidade. Se os drones, que Chamayou estudou em Teoria do Drone (Cosac Y Naif, 2015), correspondem aos artefatos de ponta de caça humana no planeta, a busca de terrenos encravados no seio da cidade só pode corresponder à estratégia de captura do espaço mais valorizado da cidade: junto ao centro, onde estão a maioria dos equipamentos coletivos.

No limite, sua ação é da mesma natureza da conduta de caça e guerra citada por Chamayou, exceto pelo fato de que, ao invés de usar armas de fogo para atingirem seu fim, utilizam estratégias muito mais dissimuladas que envolvem lobbies com autoridades, redirecionamento da atuação pública e limitação dos instrumentos de proteção do patrimônio, formas políticas de violência de grandes setores da construção civil. Elas usam de técnicas indispensáveis para que possam atingir seus objetivos, o de usufruir o maior lucro possível da terra da capital: terra bem localizada, e diga-se de passagem, não distante do centro urbano, mas o mais próximo dele possível. O empresário da construção civil se transformou nesse novo caçador moderno. Nunca se tratou de ciência econômica a serviço da especulação imobiliária, mas sim de uma arte, que consiste em um conjunto de conhecimentos acumulados por uma elite econômica por meio da atividade de buscar espaços para construir novos imóveis.

É como o corretor de imóveis que deixa bilhetinhos na sua caixa de correspondência para saber se você não deseja vender seu imóvel e que, como o especulador imobiliário, ambos estão caçando: a vítima do primeiro é você, a vítima do segundo os imóveis localizados em regiões privilegiadas da cidade, de valor histórico ou não. Não, nós não sabemos se o incêndio que atingiu os prédios históricos foi criminoso ou não, o que sabemos é que esses grandes empreendedores da construção imobiliária são capazes de pensar como caçadores e sua  caça, isto é, eles identificam os possíveis imóveis em situação de risco capazes de servir para seus empreendimentos. É o caso da disputa pela área de terra onde está localizado o Quilombo Kédi, no Bairro Bela Vista em Porto Alegre: como caçadores, seguem na pressão no lugar de uma comunidade quilombola centenária, com despejos e reassentamentos forçados. Como caça, é seu esforço de minar as políticas de proteção.

Na minha opinião, eu posso estar errado, essa convivência íntima entre empresários da construção civil e autoridades é uma relação da produção do sistema de gestão da cidade moderna que constrói  uma governança que, entregue aos cuidados de agentes públicos, nos termos de Michel Foucault, constitui um regime de ilegalismos pelas concessões que faz à iniciativa privada “exército de reserva do poder governável no qual se pratica a caça entre pessoas e se aperfeiçoam as formas de controle violento das frações das populações classificadas como perigosas” (p. 14). Troque pessoas e populações por propriedades históricas e você terá uma ideia do que penso sobre o que acontece em Porto Alegre. Se Chamayou lembra que as teorias da guerra de Clausewitz são atuais, de que a geografia serve para fazer a guerra, a antropologia, a caça ao homem, então a economia desses grandes empreendedores serve para fazer a caça aos terrenos de nosso patrimônio. Se para caçar o homem é preciso conhecê-lo, para caçar terrenos, é preciso saber onde estão.

Caçar terrenos na cidade

A caça ao terreno é o equivalente da caça policial que habita o imaginário cinematográfico. Se o criminoso é abatido como suspeito ou em fuga da prisão, o prédio histórico é abatido como espaço de retirada do lucro do empreendedor. Se para caçar homens, diz Chamayou, é preciso conhecer o homem, para procurar imóveis bem localizados, é necessário saber do patrimônio histórico de uma cidade. Na minha opinião e eu posso estar errado, o novo fetiche dos incorporadores são esses imóveis esquecidos do patrimônio histórico, localizados em lugares importantes para venda e que se tornaram vulneráveis pelo fracasso das políticas públicas para sua preservação que eles próprios incentivaram. A nova face do “devido processo legal” é o “devido processo empresarial”, o abate dos imóveis que ainda estão em debate entre os próprios herdeiros ou esses imóveis históricos fora da legislação de proteção. É que, para o campo imobiliário, não importa se o imóvel é histórico ou não, o objetivo de sua aquisição é servir de espaço para construção, de preferência para outro arranha-céu ou empreendimento que produza lucro. A função caçadora desse empresariado é uma subjetividade que opera por meio de lobbies que, como diz Chamayou , “fazendo de cada um caça e caçador dentro do arco do governo a céu aberto” (p.16).

O dilema estabelecido por Chamayou que diz que a saída da condição de vítima (caça) pressupõe assumir a condição de algoz (caçador), o que precisa, nos seus termos “ser pensada em torno do problema da proteção que deve orientar a vocação de uma ‘comunidade política universal’, ou seja, seu telos” (p. 19). Ora, foi exatamente a política de proteção contra predadores do patrimônio cultural e histórico da cidade que foi enfraquecida ao longo dos recentes governos neoliberais, colocada fora do direito e, portanto, do universal. Fracassamos em construir esse “telos de proteção”, essa comunidade universal – pelo menos dos porto-alegrenses – capaz de frear essa caça aos patrimônios. Não se trata de caça aos homens, como descreve Chamayou, mas de caça a terrenos onde estão localizados patrimônios historicos, à terra perdida, abandonada, em litígio. “Se há o que ser protegido, há algo ou alguém que protege e, no limite, quem pratica a caça” (p. 20). Mas o que acontece quando aquele que tem a função de proteger abandona sua função?

Da caça aos homens à caça à terra dos homens: esta não é uma falsa descontinuidade, é o contrário em se tratando da história de Porto Alegre. Da caça aos escravos fugidos, que se escondiam no território das Emboscadas ou matas do Arraial da Baronesa, área conhecida hoje como Cidade Baixa, então cobertas por mato denso retratado nos estudos da historiadora Sandra Pesavento, aos terrenos da zona norte e sul, e agora, de prédios históricos abandonados pelas políticas públicas ou da expulsão de comunidades quilombolas, é sempre da caça a alguém ou a algo que caracteriza nossa história. Os próprios catadores de lixo da cidade, com seus carrinhos, não foram “caçados” pelo poder público recentemente, com ações que visam sua expulsão? Para pessoas, a caça gera uma revolta como reação. Mas para os patrimônios? Somente o poder público pode reagir, já que os próprios não têm voz, exceto a daqueles que, no campo da proteção do patrimônio histórico, lutam por sua preservação.  O ethos caçador de nosso empresariado da construção civil se evidencia em inúmeros artefatos conquistados com o apoio de autoridades públicas e que envolvem fragilidades no Plano Diretor, objeto de nosso último artigo em RED, em que o pathós da política urbana foi por nós qualificado de canibal, exatamente outro termo do universo da caça.

A caçada é uma forma de expulsão

Chamayou chama a atenção para o fato de que, além de entendermos a definição de caça como seu ato, ela também significa “expulsar com violência, coagir, obrigar a sair de um local” (p. 27), conforme a definição do Dicionário da Academia Francesa de 1831.   Se a caça ao homem está baseada em técnicas de rastreamento, de captura e procedimentos de exclusão, prédios se tornam objeto de caça por sua localização privilegiada. As técnicas de exclusão e de desaparecimento tornam-se sofisticadas e incluem mecanismos legais de flexibilização; diferem da caça humana, pois não ocorrem entre uma mesma espécie, mas entre seres e coisas, mas sua história também revela as resistências daqueles que observam o quanto ela produz suas vítimas. Não é uma dominação do senhor e do seu súdito, mas ainda assim é uma relação de dominação; ela não é uma relação que depende da exploração do trabalho escravo, mas é, de certa forma, associada à escravidão: como arte cinegética, diz Chamayou que é uma caça violenta: caçar territórios na cidade é da mesma natureza da pirataria, “na medida em que ela transforma os que a praticam em caçadores cruéis e sem lei” (p. 34).

A guerra por terrenos não utilizados, com prédios antigos, alguns deles históricos, é uma expressão de um modo de aquisição que ultrapassou todos os limites: “Ela não fabrica o seu objeto, mas o obtém valendo-se de uma exterioridade” (p. 34). Como os gregos que se apropriavam de seus escravos sem necessidade de organizar a sua produção, nossos empresários da construção civil se apropriam de nossos prédios históricos do modo natural como entendem a compra de um terreno qualquer na cidade, providenciando a demolição seja lá do que estiver acima dele: ora, os terrenos onde estão prédios históricos não são terrenos quaisquer, são aqueles onde estão imóveis históricos que registraram a passagem do tempo da cidade. É cinegética, pois é uma modalidade de poder exercida como dominação econômica, mas, como salienta Chamayou, “ela não se revela uma arte da polis” (p.34).

Não era natural da cidade antiga a produção de escravos, pois ela era o lugar dos cidadãos; da mesma forma, não é natural na cidade moderna que empreendedores se apoderem, cacem terrenos onde se localizam prédios históricos para sua acumulação de capital pelo mesmo motivo. Quem autoriza tais ações sobre o patrimônio histórico? Se o andrapodista, diz Chamaylou, é aquele que caça cidadãos para transformá-los em escravos, aquele que caça territórios e terrenos revive o “cercamento”, ou enclosure inglês, que transformava “terras comuns” em “propriedades privadas”, ainda que não haja melhor termo hoje do que especulador imobiliário para sua denominação. Se qualquer terreno pode ser apropriado pelos especuladores, como distinguir as aquisições legítimas das ilegítimas, das que tem valor simbólico para sua comunidade? Como diferenciar os terrenos alvos de aquisição daqueles que não podem ser objeto de especulação? A solução, que já existe, é a de tombá-los.

A história das políticas de memória

Todo a história do processo de tombamento dos imóveis de valor histórico da capital foi registrada por Ana Lúcia Meira em O passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação popular na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre (UFRGS, 2004). Ela afirma que os primeiros tombamentos na cidade foram federais, relativos à política do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional criada a partir dos anos 30. Nos anos 60, intelectuais se manifestaram por meio da imprensa em defesa do patrimônio histórico de Porto Alegre, o que levou, na década de 70, à institucionalização de ações de salvaguarda do patrimônio cultural edificado e nos anos 80 surgiram demandas sobre a preservação do patrimônio cultural da cidade em fóruns como o Orçamento Participativo, o Congresso da Cidade e outros.

É a época de formação das políticas municipais, especialmente a partir dos anos 90,  é onde Meira afirma que, frente ao patrimônio consagrado, são apontados outros patrimônios, bens culturais não consagrados, importantes enquanto referências locais pela comunidade porto-alegrense. Nos três níveis de governo, sempre predominaram tombamentos no centro da cidade, cenário só alterado nos anos 90, com ampliação geográfica para os bens em demais bairros e atuação do PDDUA, que passaram a ser feitos nos bairros. Meira destaca, nos anos 2000, a necessidade de manter a ampla participação da sociedade, valorizar o patrimônio imaterial e o Compach para manter a ampla participação da sociedade, valorizar o patrimônio imaterial e aprofundar as políticas públicas de defesa do patrimônio.

Entretanto, Meira descreve o período de auge da defesa do patrimônio da cidade: as sucessivas gestões do Partido dos Trabalhadores que construíram na capital uma política de defesa do patrimônio histórico que se tornou referência nacional. Ela não pode ver e analisar o desmonte da política de preservação daqueles anos que sucederam as políticas de esquerda quando foram substituídas pelos governos e pelas políticas de direita, com a ascensão de governos neoliberais que promoveram um duro recuo da participação popular na preservação da cidade, substituído pelo incremento do mercado e pela valorização dos interesses do grande empresariado da construção civil. Para Meira, nem todo prédio tem valor histórico para a cidade, pois, quando são construídos ou destruídos, trata-se sempre de verificar os valores materiais e simbólicos a eles associados. Este foi o espaço no qual as políticas de memória passaram a serem vistas como entraves ao processo de modernização representado pela construção de grandes prédios, sendo suas políticas de preservação flexibilizadas uma a uma pois eram vistas como obstáculos a serem superados para a efetivação do capital.

Combater o capitalismo imobiliário pela defesa da cidadania

Quando cada um de nós que passou por aqueles prédios sinistrados se recorda de algo que viu e viveu ali, nós lhe outorgamos valor simbólico. Essa é a capacidade transformadora do patrimônio, de servir como uma referência. Os prédios sinistrados foram objeto de reelaboração, novas atividades e serviços estiveram neles e se o capital tem uma função escamoteadora da realidade, é justamente a de afirmar o contrário, de que se tratam somente de “prédios velhos”. Se antes de ser tombado, nossos prédios históricos são objetos de inúmeras avaliações técnicas, quando derrubado há somente uma certeza da sociedade: era um prédio de valor histórico. Como afirma Jeudy, “assim como um indivíduo viveria mal sem uma memória, também uma coletividade precisa de uma apresentação constante de seu passado” (Jeudy, Memorias do Social, pág. 6, citado por Meira, p. 17).  O prédio foi derrubado e tivemos inúmeras manifestações contrárias: é hora de os atuais governantes neoliberais passem a valorizar a história e o patrimônio da cidade, para além dos compromissos com as elites incorporadoras: é preciso valorizar o elemento central que dá valor a esses prédios, os cidadãos.

A conclusão é que precisa parar o olhar de caça a terra das incorporadoras na direção dos imóveis de valor histórico da cidade. Não se trata de adquirir e derrubar um prédio qualquer, como se fosse eliminar uma ovelha sarnenta de que fala Chamayou: se trata de combater uma nova forma de caça que corresponde a ascensão do capitalismo imobiliário, manifestação espetacular daquilo que Marx chamou de fase de acúmulo de capital, que agora lança seu poder na capital. Esse modelo continua a predação urbana por outras formas, política mortal para a memória da cidade. É preciso dar a estes prédios perdidos o estatuto de vítima, apontando para a culpa de seus algozes. É preciso inserir este sistema de atos em uma teoria crítica da violência política urbana, da qual sua relação predatória com imóveis de valor histórico faz parte. Se quer se trata da inversão da posição, pois mesmos os empresários da construção civil têm o direito de construir: se trata identificar uma esfera de proteção patrimonial legítima de prédios que possuem a memória da cidade, sem proteção e expostos a predação. O problema dos prédios antigos continua sendo o de sua proteção como vocação política de uma comunidade.  


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21  livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa:Ao centro, os dois prédios históricos incendiados. Foto reproduzida do site Porto Alegre de antigamente, do acervo do Museu Joaquim José Felizardo.

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