Celso Furtado: o desenvolvimento como projeto civilizatório

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Por CIDOVAL MORAIS DE SOUSA*

Especial para A União

Celso Furtado ocupa um lugar singular entre os grandes intérpretes do Brasil. Economista, intelectual público, gestor e pensador de alcance universal, sua obra transcende os limites da economia para se tornar uma reflexão abrangente sobre história, cultura, política e sociedade. Ao longo do século XX e início do XXI, sua voz se destacou como uma das mais lúcidas na tarefa de compreender as contradições do país e propor caminhos para sua transformação. Vinte e um anos após a sua morte, sua presença continua viva, não apenas pela densidade teórica de seus escritos, mas pelo caráter militante de sua esperança: a convicção de que o Brasil pode ser mais justo, democrático e criativo.

Furtado não foi apenas um estudioso das estruturas econômicas. Foi um homem de pensamento e ação, que circulou entre universidades, organismos internacionais, órgãos de governo e espaços culturais, sempre com o mesmo propósito: enfrentar a armadilha histórica do subdesenvolvimento. Sua obra se insere na linhagem dos grandes intérpretes nacionais, como Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Jr., mas com um diferencial decisivo: além de compreender o Brasil, atuou sobre ele. Criou instituições, formulou políticas, defendeu ideias e se engajou na vida pública, convencido de que o conhecimento só cumpre sua função quando se transforma em prática social.

A atualidade de seu pensamento decorre justamente dessa combinação entre rigor acadêmico e engajamento político. Furtado rompeu com o “complexo de vira-latas” e com o colonialismo mental que insistia em ver o Nordeste e o Brasil apenas como espaços de atraso. Ao contrário, mostrou que havia potencialidades criativas, energias sociais e culturais capazes de sustentar um projeto nacional. Sua obra é provocativa e instigante porque confronta preconceitos e paradigmas, questiona verdades estabelecidas e propõe alternativas. É por isso que se tornou um clássico: um autor que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer, cuja leitura permanece sempre atual.

Mais do que economista, Furtado foi um militante da esperança. Sua visão de desenvolvimento não se confundia com crescimento econômico ou acumulação de capital, mas com um projeto civilizatório que incluía reformas estruturais, democratização, valorização da cultura e equilíbrio ambiental. Para ele, o desenvolvimento só fazia sentido se fosse capaz de reduzir desigualdades, ampliar a cidadania e liberar as forças criativas da sociedade. Essa compreensão, que articula economia, política e cultura, continua a oferecer pistas para enfrentar os dilemas contemporâneos do Brasil: a persistência da pobreza, a concentração de renda, a fragilidade do mercado interno, a degradação ambiental e os desafios da democracia.

Os vários Furtados

Celso Furtado nasceu em 26 de julho de 1920, em Pombal, no sertão da Paraíba, em uma região marcada pela seca, pelo mandonismo e pelas desigualdades sociais. Desde cedo, esteve exposto tanto à cultura erudita quanto à realidade dura do Semiárido nordestino, experiências que moldaram sua sensibilidade intelectual e seu compromisso com a transformação social. Formou-se em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1944, mas logo se voltou para a economia, concluindo doutorado na Sorbonne em 1948 com a tese L’économie coloniale brésilienne. Sua formação foi marcada por uma visão interdisciplinar, que integrava economia política, história e sociologia, e que se tornaria a base de sua obra.

A trajetória de Furtado, como bem definiram Alexandre de Freitas Barbosa e Alexandre Macchione em Celso Furtado: trajetória, pensamento e método, pode ser compreendida como a sucessão de diferentes papéis que se sobrepõem e se complementam: o jovem existencialista, marcado pela experiência da guerra como oficial da Força Expedicionária Brasileira na Itália, em 1945, que buscava sentido para sua vida e para o destino do país; o economista da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), onde, ao lado de Raúl Prebisch, consolidou a visão estruturalista e formulou a teoria do subdesenvolvimento e da dependência; e o gestor público, criador e superintendente da Sudene entre 1959 e 1964, primeiro ministro do Planejamento em 1962 e formulador do Plano Trienal, que buscava implementar reformas estruturais e políticas distributivas.

Registre-se ainda o intelectual exilado, professor em Yale, Cambridge e Sorbonne, que elaborou obras fundamentais como Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina (1966) e O mito do desenvolvimento econômico (1974), ampliando sua crítica ao modelo de crescimento excludente e ambientalmente insustentável; e, finalmente, o militante da cultura e da democracia, ministro da Cultura entre 1986 e 1988, membro da Comissão Mundial de Cultura e Desenvolvimento da UNESCO e acadêmico da Academia Brasileira de Letras a partir de 1997.

Essa multiplicidade revela que não há em Furtado separação entre teoria e prática. Cada intervenção política se apoiava em sólida reflexão histórica e teórica, e cada obra trazia propostas de ação. Sua experiência internacional na Cepal lhe permitiu compreender que o subdesenvolvimento não era uma etapa transitória, mas uma condição histórica produzida pela inserção desigual da América Latina na economia mundial. De volta ao Brasil, assumiu papel decisivo na formulação de políticas regionais, especialmente no Nordeste, onde sua leitura inovadora rompeu com a ideia da seca como problema natural e a vinculou às estruturas sociais arcaicas. No Ministério do Planejamento, buscou implementar reformas estruturais e políticas distributivas, mas o golpe de 1964 interrompeu esse projeto. Cassado e exilado, produziu algumas de suas obras mais influentes, que ampliaram sua crítica ao modelo de crescimento excludente e ambientalmente insustentável.

Com a redemocratização, Furtado voltou ao Brasil e assumiu o Ministério da Cultura no governo Sarney, onde elaborou a primeira legislação de incentivos fiscais para o setor. Sua visão de que a cultura é parte essencial do desenvolvimento antecipou debates contemporâneos sobre economia criativa e identidade nacional. Em 1997, foi eleito para a Academia Brasileira de Letras, consolidando seu reconhecimento como intelectual de dimensão universal. Ao longo de sua vida, publicou cerca de quarenta livros, traduzidos em mais de onze idiomas, tornando-se o economista brasileiro mais conhecido internacionalmente. Sua obra é marcada pela capacidade de construir utopias e pela convicção de que o Brasil poderia superar o subdesenvolvimento por meio de reformas estruturais, democratização e valorização da cultura.

Contribuições Furtadianas

As contribuições de Celso Furtado ao pensamento social, econômico e político brasileiro são vastas e multifacetadas, constituindo um verdadeiro patrimônio intelectual para compreender os dilemas do país e da América Latina. Um dos pilares de sua contribuição é a teoria do subdesenvolvimento. Diferentemente das concepções lineares que viam o subdesenvolvimento como uma etapa transitória rumo ao desenvolvimento, Furtado demonstrou que se trata de um processo histórico autônomo, resultado da inserção colonial e periférica na economia mundial.

Em Formação Econômica do Brasil (1959), analisou os ciclos econômicos — açúcar, ouro, café — e mostrou como eles estruturaram economias regionais desarticuladas, gerando heterogeneidade e desigualdade persistentes. Essa leitura rompeu com a ideia de que bastaria industrializar para superar o atraso: a industrialização tardia, dependente de tecnologia importada e voltada ao consumo das elites, reproduziu o subdesenvolvimento em novas bases. O subdesenvolvimento, portanto, não é uma fase, mas uma forma específica de inserção no capitalismo global, marcada pela dependência e pela concentração de renda.

A questão da dependência ocupa lugar central em sua obra. Influenciado pelo estruturalismo da Cepal, mas avançando além de Raúl Prebisch, Furtado destacou que a dependência não se limitava à deterioração dos termos de troca, mas se enraizava na condição colonial e na incapacidade de internalizar centros de decisão. Nos anos 1970 e 1980, enfatizou a dependência tecnológica e cultural: a periferia industrializava-se com base em tecnologias externas, sem capacidade de recriar internamente a lógica da “civilização industrial”. Isso gerava concentração de renda, desemprego estrutural e padrões de consumo imitativos, que reforçavam a desigualdade e a subordinação. Para Furtado, superar o subdesenvolvimento exigia não apenas industrializar, mas construir autonomia tecnológica e cultural, valorizando a criatividade endógena e a capacidade de inovação própria das sociedades periféricas.

A industrialização foi, aliás, um tema recorrente e decisivo em sua reflexão. Nos anos 1950 e 1960, Furtado defendia a industrialização acelerada como condição para romper com a dependência primário-exportadora. A criação da Sudene, em 1959, e o Plano Trienal, em 1962, expressavam essa convicção: era preciso diversificar a economia, ampliar o mercado interno e desconcentrar renda. Contudo, já nos anos 1970, após a onda industrializante da periferia, Furtado passou a questionar os limites dessa estratégia. A industrialização por substituição de importações, baseada em tecnologia externa e voltada ao consumo das elites, não eliminou a dependência, mas a elevou a um novo patamar. A nova dependência era tecnológica e cultural, e a industrialização periférica entregava a dinâmica industrial a grupos transnacionais. Transplantava estruturas produtivas modernas sem gerar mecanismos internos de apropriação da tecnologia, mantendo a periferia como apêndice do centro. Para Furtado, a industrialização só seria emancipadora se articulada a um projeto nacional de desenvolvimento, capaz de mobilizar o Estado, democratizar o acesso aos frutos do progresso técnico e valorizar a cultura própria.

Outro eixo decisivo é sua compreensão do Nordeste. Furtado foi o primeiro a formular uma leitura estrutural da questão regional, rompendo com a visão naturalista que atribuía o atraso à seca. No relatório do GTDN (1959) e na criação da Sudene, mostrou que o problema era a estrutura agrária concentradora e a marginalização da região no processo de industrialização nacional. O Nordeste aparecia como a mais extensa área de pobreza do hemisfério ocidental, e sua integração exigia planejamento estatal, industrialização e reforma agrária. Essa visão transformou a questão regional em problema nacional e inaugurou uma política de desenvolvimento regional que permanece referência. Para Furtado, não havia desenvolvimento nacional possível sem enfrentar as desigualdades regionais, e o Nordeste era o espelho mais nítido das contradições do país.

A partir dos anos 1970, Furtado ampliou sua análise para incluir a cultura como dimensão do desenvolvimento. Em obras como Criatividade e dependência na Civilização Industrial (1978) e Cultura e Desenvolvimento em Época de Crise (1984), argumentou que o desenvolvimento não poderia ser reduzido ao crescimento econômico, mas deveria incorporar valores, identidade e criatividade. A dependência tecnológica era também dependência cultural, marcada pelo mimetismo das elites e pela descaracterização da cultura popular. Para ele, a verdadeira alternativa estava em um desenvolvimento endógeno, capaz de mobilizar a criatividade cultural e científica das sociedades periféricas, revertendo a heterogeneidade social e a dependência externa. A cultura, nesse sentido, não era ornamento, mas motor do desenvolvimento, pois definia padrões de consumo, valores e formas de organização social.

Sua contribuição mais visionária talvez esteja na crítica ambiental, formulada em O Mito do Desenvolvimento Econômico (1974). Antecipando debates que só se tornariam centrais décadas depois, Furtado denunciou que a universalização dos padrões de consumo dos países ricos era impossível, pois levaria ao colapso ecológico. O desenvolvimento, tal como concebido pelo capitalismo industrial, era um mito: não havia “bilhete de primeira classe” para todos os passageiros da nave Terra. A industrialização periférica, baseada em recursos não renováveis e em padrões de consumo excludentes, agravava a crise ambiental e social. Sua proposta era repensar o desenvolvimento em bases sustentáveis, incorporando os custos ambientais e redefinindo prioridades sociais. Ao questionar o PIB como “vaca sagrada dos economistas”, Furtado antecipou a crítica contemporânea aos indicadores que ignoram a destruição ambiental e a desigualdade social.

Dimensão civilizatória do desenvolvimento

A reflexão de Celso Furtado sobre o desenvolvimento ultrapassa os limites da economia e se projeta como uma verdadeira compreensão civilizatória. Para ele, o desenvolvimento não poderia ser reduzido a taxas de crescimento do produto interno bruto ou à expansão da industrialização. Tratava-se de um projeto de sociedade, de uma utopia concreta que articulava economia, política, cultura e meio ambiente. Essa visão totalizante é o que confere à sua obra uma atualidade impressionante, pois antecipa debates que hoje se tornaram centrais.

Em primeiro lugar, Furtado via o enfrentamento da desigualdade social como condição indispensável para qualquer projeto nacional. A concentração de renda, a marginalização do Nordeste e a dualidade entre elites modernizadas e massas empobrecidas eram obstáculos que não se resolveriam espontaneamente. Para ele, não havia desenvolvimento possível sem redistribuição, sem reforma agrária, sem democratização do acesso aos frutos do progresso técnico. O combate à desigualdade era, portanto, o núcleo ético e político de sua proposta.

Essa exigência conduzia à redefinição do Estado. Furtado não o concebia como mero regulador ou árbitro neutro, mas como agente transformador, capaz de planejar, induzir e coordenar mudanças estruturais. O Estado deveria ser o motor da industrialização, da integração regional e da democratização social. Sua experiência na Sudene e no Ministério do Planejamento mostrou que o planejamento estatal era condição para enfrentar desequilíbrios históricos e regionais. Mais tarde, ao refletir sobre os limites da industrialização dependente, insistiu que apenas um Estado ativo, comprometido com a sociedade, poderia romper o círculo vicioso da dependência e da exclusão.

Outro aspecto decisivo de sua visão civilizatória foi a incorporação da economia criativa e da cultura ao conceito de desenvolvimento. Desde os anos 1970, Furtado antecipou debates que hoje se tornaram centrais sobre inovação, identidade cultural e economia criativa. Para ele, a dependência tecnológica era também dependência cultural. O verdadeiro desenvolvimento deveria ser endógeno, mobilizando a criatividade cultural e científica das sociedades periféricas. Ao assumir o Ministério da Cultura nos anos 1980, Furtado traduziu essa visão em políticas públicas, defendendo que a cultura era parte essencial da cidadania e da soberania nacional.

A dimensão política de sua proposta se expressava na defesa da democracia. Para Furtado, desenvolvimento era inseparável da participação cidadã. Não se tratava apenas de modernizar a economia, mas de construir instituições democráticas capazes de garantir que os frutos do progresso fossem distribuídos de forma equitativa. A ditadura militar, que o cassou e exilou, mostrou-lhe que crescimento sem democracia resultava em concentração de renda e exclusão social. Por isso, em sua obra posterior, insistiu que o desenvolvimento só poderia ser concebido como processo democrático, envolvendo escolhas coletivas e participação popular.

A crítica ambiental, formulada em O Mito do Desenvolvimento Econômico (1974), acrescentou outra dimensão à sua compreensão civilizatória: o meio ambiente. Furtado percebeu, antes da maioria dos economistas, que a universalização dos padrões de consumo dos países ricos era impossível, pois levaria ao colapso ecológico. O desenvolvimento, tal como concebido pelo capitalismo industrial, era uma falácia: não havia recursos naturais suficientes para sustentar o estilo de vida das elites em escala planetária. Antecipando a agenda da sustentabilidade, Furtado propôs repensar o desenvolvimento em bases ecológicas, incorporando os custos ambientais e redefinindo prioridades sociais.

Em última instância, Furtado concebia o desenvolvimento como projeto civilizatório. Não se tratava de acumular capital ou aumentar a produtividade, mas de construir uma sociedade justa, democrática, criativa e sustentável. O desenvolvimento era, para ele, um processo de afirmação da identidade nacional, de valorização da cultura, de democratização da economia e de preservação do meio ambiente. Era um projeto de sociedade, não apenas de crescimento econômico. Essa visão civilizatória é o que torna sua obra tão atual: em tempos de crise ambiental, desigualdade persistente e desafios à democracia, Furtado continua a oferecer um horizonte de esperança e de utopia concreta.

*Professor e Pesquisador da Universidade Estadual da Paraíba, vinculado aos programas de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Ensino de Ciências, consultor do Programa Celso Furtado da SECTIES (Governo da PB) e autor/organizador de obras como a trilogia Celso Furtado: A esperança Militante e Celso Furtado e o Mito do Desenvolvimento 50 anos depois, publicadas pela EDUEPB.


*Cidoval Morais De Sousa é professor e Pesquisador da Universidade Estadual da Paraíba, vinculado aos programas de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional e Ensino de Ciências, consultor do Programa Celso Furtado da SECTIES (Governo da PB) e autor/organizador de obras como a trilogia Celso Furtado: A esperança Militante e Celso Furtado e o Mito do Desenvolvimento 50 anos depois, publicadas pela EDUEPB.

Foto de capa: Reprodução

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