O País que Naturalizou a Desigualdade

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Por ALEXANDRE CRUZ*

Há um momento em A Luz é Para Todos que sempre me acompanha. Gregory Peck olha para a mulher que ama e percebe que o abismo entre eles não nasce da maldade. Ele nasce daquilo que a sociedade chama de normal. O preconceito não aparece apenas nos insultos explícitos. Ele mora nos silêncios, nas desculpas elegantes, nas frases que começam com “não tenho nada contra”. Vive no conforto de quem pode escolher não enxergar. Essa cena não fala de nós individualmente, mas fala do tecido social que nos envolve.

O cinema às vezes nos oferece chaves para abrir portas que insistimos em manter fechadas. A Luz é Para Todos (Gentleman’s Agreement, 1947), dirigido por Elia Kazan e estrelado por Gregory Peck, é uma dessas chaves. A obra conquistou três Oscars e se tornou um marco na denúncia do antissemitismo nos Estados Unidos. A trama acompanha o jornalista Philip Green, encarregado de escrever uma série de reportagens sobre o preconceito religioso. Sem saber por onde começar, ele decide algo radical. Passa a viver como se fosse judeu e experimenta na própria pele portas que se fecham, olhares que pesam, frases que tentam soar gentis, mas carregam veneno. Descobre que o preconceito não está só nas ruas. Ele se infiltra na sala de jantar, nas amizades, na pessoa amada.

Esse recurso narrativo serve como espelho para nós. O racismo brasileiro não se manifesta apenas nos atos explícitos de violência. Ele se entranha nas estruturas, nos hábitos, nas pequenas condescendências. O filme nos lembra que a discriminação raramente se apresenta batendo palmas. Ela chega de mansinho e se acomoda onde não é contestada.

O 20 de novembro, feriado nacional do Dia da Consciência Negra, nos devolve esse incômodo. Não é uma data para celebrar um passado resolvido. É o convite para encarar aquilo que ainda pulsa. Somos a nação que aboliu a escravidão sem integrar os libertos. Que ergueu cidades inteiras com mãos negras e que, até hoje, empurra essas mesmas mãos para as bordas. Preferimos o mito da igualdade ao esforço real da justiça.

Assim como Kathy, muitos brasileiros insistem que o racismo “não é tão assim”. Acreditam que tudo se resume a casos isolados, que as pessoas exageram, que o problema é de outra época. Mas o olhar de Gregory Peck atravessa o tempo e nos chama à responsabilidade. O que você não vê não deixa de existir. O que você tolera se perpetua. O que você ignora se torna regra.

Neste 20 de novembro, vale repetir a pergunta que Philip Green faz ao longo do filme. Onde estão os limites que aceitamos como naturais. Onde começam os gestos que mantêm viva a desigualdade. O Brasil só será inteiro quando a igualdade deixar de ser uma frase bonita e se tornar hábito, política pública, prática cotidiana. Até lá, continuaremos repetindo a história de Kathy. Pessoas que se dizem de boa intenção, mas que, por medo de romper o círculo, preferem fechar os olhos.

E fechar os olhos nunca trouxe luz para ninguém.


*Alexandre Cruz é jornalista político.

Foto de capa: Freepik

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