Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
A repercussão da entrevista da professora e pesquisadora Jacqueline Muniz, da Universidade Federal Fluminense (UFF), sobre a megaoperação nos Complexos do Alemão e da Penha, no Rio de Janeiro — que resultou em mais de 120 mortos — revela como o debate sobre segurança pública no Brasil se tornou refém da polarização, da distorção deliberada e de uma máquina de violência simbólica articulada pelo bolsonarismo digital.
Jacqueline Muniz sustenta, com base em décadas de pesquisa empírica, que não há “Estado ausente” nas favelas, mas sim um Estado presente de forma seletiva, patrimonial e violenta. Em suas palavras: um Estado que governa com o crime, e não contra ele. A megaoperação, que matou mais de 120 pessoas, é vista por Muniz como expressão de uma política de exceção que substitui a inteligência policial pelo uso indiscriminado da força.
Mas foi uma frase retirada de contexto que desencadeou a ofensiva difamatória. Ao comentar o uso de fuzis por criminosos sem treinamento especializado, Muniz afirmou:
“O criminoso está com o fuzil na mão, ele é facilmente rendido por uma pistola, até por uma pedra na cabeça. Enquanto ele está tentando levantar o fuzil e colocar o fuzil para atirar, alguém joga uma pedra e já derrubou o sujeito.”
A análise técnica sobre a baixa efetividade tática do fuzil em certos contextos foi distorcida de forma grosseira e proposital para parecer que a professora zombava da polícia. Perfis bolsonaristas iniciaram uma campanha coordenada de desinformação: memes circularam afirmando que ela defendia o uso de estilingues contra criminosos armados, e o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG) debochou:
“Se você subir a favela e fizer um bandido armado com fuzil ser rendido com uma pedrada na cabeça, eu faço campanha pro Lula. Desafio lançado, pica pau.”
Mais grave: Jacqueline foi perseguida, fotografada em um restaurante e exposta nas redes por bolsonaristas com comentários como: “Acabo de ter o desprazer de encontrar esse ser humano no meu almoço…”. Uma das respostas dizia: “Dá uma pedrada nela. kkkk”. Trata-se de incitação à violência pura e simples, promovida por uma máquina de ódio que atua com impunidade. Diante disso, ela pediu proteção ao Programa de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania.
O caso mobiliza três questões essenciais para a democracia:
- Liberdade acadêmica e crítica social O que está em jogo vai além de uma opinião isolada. Trata-se do direito — e do dever — de pesquisadores interpelarem o poder e denunciarem estratégias de segurança que aprofundam a exclusão social e racial. Silenciar esse tipo de crítica é abdicar do princípio democrático da pluralidade e da razão pública.
- Segurança pública como exceção e morte As operações letais como a dos Complexos não são exceções, mas políticas reiteradas de militarização dos territórios populares. Ao invés de garantir direitos, o Estado reforça o controle armado. Muniz alerta: não se trata de ausência de Estado, mas de uma presença violenta, ilegal e corrompida.
- A máquina de hostilidade digital e a guerra informacional bolsonarista A distorção intencional da fala da professora, acompanhada de campanhas coordenadas de difamação, ameaças e humilhação pública, segue o manual da extrema direita: destruir reputações, promover o medo e inviabilizar o pensamento crítico. É um ataque frontal à democracia e à soberania popular.
O pedido de proteção formulado por Jacqueline Muniz não é apenas uma medida de segurança individual. É um grito de alerta. A democracia brasileira está sob ataque quando seus intelectuais são perseguidos por cumprir sua função pública de questionar o poder. E não há soberania nacional possível quando a violência simbólica e física contra defensoras de direitos humanos é tolerada, incentivada e politicamente capitalizada.
É preciso resistir a essa barbárie. Não com pedras, mas com coragem, argumentos e ação política coletiva. Porque o que está em jogo é o direito de existir, pensar e falar em um país livre e democrático.
*Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Ilustração da capa: Professora Jacqueline Muniz, imagem gerada por IA ChatGPT





Uma resposta
Achei a análise perfeita, estamos diante de contínuo ataque à democracia e à verdadeira liberdade. Censurar e perseguir um pesquisador tem tudo a ver com movimento anti ciência e anti- verdade da extrema direita cuja intenção é, no final das contas, a dominação das pessoas.