A Verdade sobre o DMAE

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Por RAUL PONT*

Os partidos que sustentam o governo Melo em Porto Alegre (MDB, PP, PSDB, PL e outros) aprovaram autorização na Câmara Municipal que, na prática, liquida com o Departamento Municipal de Águas e Esgotos (DMAE). Disfarçado de uma “concessão”, o projeto garante que o vencedor fique com a receita do fornecimento de água na capital, assumindo a manutenção da rede e o tratamento do esgoto cloacal. Mais um grande negócio do prefeito Melo contra o interesse público!

Ao DMAE caberia manter e ampliar as estações de captação e tratamento da água bruta, toda a drenagem urbana e o sistema de proteção contra enchentes. Com qual orçamento? O sistema protetivo contra cheias vimos, no ano passado, como se encontra. Ou seja, o feliz vencedor do leilão ficará com o filé e o osso fica para a população roer.

Será que os vereadores que aprovaram essa estultice dormem tranquilos? Passaram na igreja para expiar seus pecados e erros? Qual deles sabe o prazo de concessão; como será a tarifa para quem vai só distribuir e cobrar; como garantir investimentos necessários e os prazos a serem cumpridos; como organizar e planejar um sistema complexo e articulado com comando duplo, público e privado? Mais um cheque em branco, como aconteceu com o grande negócio com o patrimônio da Carris!

É inimaginável a irresponsabilidade dessa maioria que aprovou o projeto com o patrimônio público, com um serviço que não é uma mercadoria, mas um bem público essencial à vida e indicador civilizatório básico.

Mais que a irresponsabilidade, o descaso, a incompetência que todos presenciamos no caso das enchentes, quando a cidade sofreu uma de suas maiores tragédias devido ao abandono, à não manutenção do sistema protetivo das casas de bombas, comportas e drenagem urbana, ao fechamento do Departamento de Esgotos Pluviais (DEP), estamos diante de um novo “negócio de compadres” em curso.

O caso da Cia. Carris já foi um escândalo. Todo o patrimônio dos imóveis da empresa, sua frota de mais de 200 ônibus, o monopólio das linhas, indicador seguro para avaliar a tarifa, sua marca secular — tudo isso — foi entregue em um leilão de um só interessado, pela bagatela de 120 suaves prestações (10 anos!), facilmente pagas com pequeno percentual da receita corrente. Um capitalismo sem capital e sem risco.

O prefeito Melo e seu partido, o MDB, têm longa tradição nesses negócios. Lembram do governo Britto e da entrega da superavitária CRT (Companhia Riograndense de Telecomunicações) no momento em que o setor de comunicações vivia mudanças profundas para a telefonia celular e o mundo digital? Perdeu-se uma empresa superavitária, que desenvolvia tecnologia, que gerava empregos e redes de serviços em todo o Estado.

Quem sabe quem são os donos da Oi, da Claro, da Vivo etc.? Para onde vão seus lucros e dividendos? Onde estão seus centros de pesquisa e desenvolvimento? Quem controla seus preços? Sua eficiência e racionalidade operacional conhecemos — é só olhar para qualquer poste de esquina e reconhecer sua “funcionalidade urbana”.

Façamos justiça. Essa política privatista, subdesenvolvida, dependente, é também de seus aliados. O PP devia ao menos renegar sua origem na ARENA do regime militar. A criação das grandes empresas de saneamento nos Estados foi obra da ditadura e não de ardilosos esquerdistas. Por razões simples de reconhecer: o atraso no saneamento num país de acelerada urbanização; o papel do Estado e a necessidade do planejamento (coisa que o mercado abomina); e o volume, a racionalidade e o controle dos financiamentos federais para atuar junto com os Estados. No RS, algumas empresas ou autarquias municipais foram mantidas, mas assim nasceu a CORSAN, como todas nos demais estados brasileiros.

Outro aliado do prefeito Melo, o PSDB, encarregou-se de liquidar a CEEE. Ou melhor, o que restava da empresa pública, pois dois terços já haviam sido privatizados pelo MDB. O governo Leite, agora no inodoro PSD do Kassab, entregou o que restava da CEEE pela dívida que alegava que a empresa possuía. Com a cumplicidade da mídia monopolista no Estado, fez-se muito alarde da dívida e dos impostos como impagáveis, da eficiência da empresa privada etc.

O preço pago: o valor de um carro usado! Mas nem o governo nem a mídia falaram sobre qual a relação com a receita da CEEE, da rede instalada em um terço do Estado, seu patrimônio e imóveis. Desde a posse, a prometida eficiência da Equatorial não saiu mais do rol das empresas mais inoperantes e mais reclamadas nas comunidades que deveria atender.

Por ironia da História e para contradição do discurso dos Britto, Leite, dos Melo e de seus partidos e aliados neoliberais, a maior parte dos serviços de transmissão e distribuição de energia no RS está hoje sob propriedade da CPFL e da RGE, ambas empresas subsidiárias da State Grid, gigante estatal chinesa. Ironias da globalização para contradizer argumentos fajutos, mas repetidos diariamente pela mídia hipócrita que temos.

Mas voltemos à concessão do DMAE, um péssimo negócio para a população de Porto Alegre, mas ótimo para quem pegar toda a receita e não tiver que se preocupar com a captação da água e seu tratamento, não ter que cuidar de toda a drenagem urbana, que está sem conservação, e nem se preocupar com todo o sistema de proteção da cidade. Um grande negócio para quem vai enriquecer com o serviço público essencial à vida.

Mais um engodo do governo do MDB e seus aliados. Na campanha eleitoral, o prefeito e candidato repetiu à exaustão que a privatização da Carris não elevou a tarifa do transporte, mas escondeu que transferiu centenas de milhões do orçamento público às empresas a título de subsídio, como fez com a compra de ônibus elétricos cedidos às empresas, sem exigência de contrapartida, para virar peça da propaganda eleitoral de veículos não poluentes.

Qual o argumento, agora, para justificar o próximo negócio? Outra falácia que não se sustenta à mínima constatação, a não ser da mídia aliada e conivente, que repete sempre os dados “oficiais”: “Defender o meio ambiente”; “Cumprir a meta de atingir 90% de esgoto tratado até o ano de 2033”; “Alcançar 99% de oferta de água tratada”. Tudo repetido e reafirmado para justificar a política neoliberal sem buscar a base histórica do serviço nem a verdade.

Em 1989, quando iniciou o primeiro governo da Administração Popular, com Olívio Dutra (1989–1992), Porto Alegre já tinha mais de dois séculos como cidade e, até então, nenhuma política de tratamento de esgotos. Havia tratamento primário em conjuntos habitacionais como os do IAPI, do IAPC, do Cohab-Cavalhada e outros. O tratamento não passava de 2%. Essa era a realidade no final do século.

Os serviços de água tratada e da rede coletora de esgotos cloacais estavam na média de grandes cidades, até um pouco acima, mas a carência nos bairros era enorme e o esgotamento cloacal era dirigido todo para o Lago Guaíba. Desde o final dos anos 60, as praias do Guaíba foram sendo proibidas devido à poluição.

A Administração Popular e a ativa participação e cobrança das comunidades no Orçamento Participativo iniciaram uma grande transformação nessa realidade. No primeiro governo, foi construída a Estação de Tratamento de Esgotos (ETE) no Lami e sua bacia, dando início a um planejamento da periferia ao centro. No segundo governo, Tarso Genro (1993–1996), entrou em funcionamento a ETE Ipanema e o tratamento saltou para 15%. No terceiro governo, Raul Pont (1997–2000), foi a vez da região São João–Navegantes, com a nova ETE chegando a 25% do esgoto tratado e, em seguida, uma nova ETE em Belém Novo, inclusive voltando a liberar a tradicional praia para uso, como já ocorria na praia do Lami.

E não eram obras apenas de tratamento de esgoto, mas também de moradias dignas para as famílias que ainda viviam na orla sem condições de habitabilidade. Também não inviabilizaram obras de drenagem e canalização de arroios urbanos de grande custo, como os condutos forçados do 4º Distrito.

Nessa época, o DMAE já possuía um “Plano Diretor de Esgotos de POA” e iniciaram-se as tratativas para conseguir financiamento e projetar um grande salto: o tratamento dos esgotos centrais da bacia do Arroio Dilúvio e Centro Histórico e do Arroio Cavalhada (Cristal). Com isso, projetava-se alcançar mais de 70% dos esgotos tratados na capital. O Projeto Integrado de Saneamento Ambiental (PISA), com um conjunto de obras complementares, acabou encontrando respaldo no governo Dilma, através dos PACs — programas de aceleração do crescimento —, que permitiram também financiamento para a ETE Sarandi, a última estação construída há mais de dez anos, nos governos Fortunati (2011/2012–2013/2016).

Em 1999, na virada do século, o DMAE já festejava ter alcançado o atendimento universal em Porto Alegre: 99% da população já era atendida com água tratada. E as Estações de Tratamento de Água (ETAs) São João, Belém Novo e Menino Deus, com projetos de ampliação garantidos para os 10 anos seguintes, assim como a interligação dos sistemas Belém Novo–Restinga.

Portanto, cai por terra um dos argumentos da “concessão”. A cidade já possui o serviço universalizado. Os últimos censos confirmam que Porto Alegre é a capital com menor crescimento demográfico. Assim, não há nenhum amparo à justificativa apresentada pelo prefeito Melo. A capacidade instalada, com os ajustes necessários, não exige nenhuma “concessionária” salvadora. E isso foi alcançado numa década famosa pelo torniquete aos Estados e Municípios do período FHC. No caso do tratamento dos esgotos, nas últimas duas décadas, não faltaram fontes de recurso federal, como vimos com o tratamento das bacias do Dilúvio e Cavalhada, canalizadas até a Serraria, e a do Sarandi, na Zona Norte.

Por que os dados do governo Melo e da mídia repetidora não batem com essas informações? Sempre o engodo e a trapaça para apresentar saídas falsas. Diz o governo que só temos 52% do esgoto tratado, mas não diz que a capacidade instalada atual já alcança os 90% — ou pode alcançar e superar isso com pequenos investimentos suportáveis no orçamento e no prazo de 2033.

Essa capacidade ociosa é fruto da ausência de redes coletoras, de um órgão que planeje e execute isso permanentemente, envolvendo as comunidades, fazendo educação ambiental, combatendo loteamentos irregulares, punindo ligações clandestinas no pluvial — ou seja, um governo atuante e que dê o exemplo do bom uso do dinheiro público.

Nesse momento, podemos afirmar com segurança que a rede de tratamento de esgotos atual, ou com ajustes suportáveis pelo orçamento do município, cumpre os compromissos internacionais assumidos, assim como o abastecimento de água tratada para a população. Esse projeto de concessão não dialoga com a realidade nem com as necessidades escancaradas na crise de 2024. O que Porto Alegre precisa é de democracia, governos competentes, participação popular na gestão pública com poder decisório e estrutura pública baseada no planejamento e no desenvolvimento histórico do município.


*Raul Pont é professor e ex-prefeito de Porto Alegre.

Foto de capa: Jonas Tiago Silveira

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