Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
O recente episódio envolvendo a pré-candidata ao governo do Rio Grande do Sul, Juliana Brizola (PDT), lança uma série de interrogações que não podem ser ignoradas — nem menosprezadas. A narrativa engloba três vetores: o indiciamento policial, o vazamento de inquérito sigiloso e os interesses políticos em jogo.
O indiciamento
Conforme ampla divulgação, a Polícia Civil indiciou Juliana Brizola com base no artigo 102 do Estatuto da Pessoa Idosa, sob suspeita de apropriação de valores pertencentes à sua avó materna, Dóris Daudt, de 99 anos. O caso envolve uma conta bancária conjunta entre ambas desde 2018. Juliana nega qualquer irregularidade e afirma se tratar de desavença familiar.
A gravidade do fato é evidente: trata-se de investigação envolvendo idosa sob tutela indireta, que aciona tanto o direito penal como a dimensão simbólica da política. O cenário abre espaço para que a imagem pública de Juliana — e, por extensão, do PDT gaúcho — sofra dano significativo, em especial quando se avizinha a corrida eleitoral estadual.
Juliana Brizola, contudo, lidera as mais recentes pesquisas de intenção de voto para o governo do Estado. Seu crescimento expressivo tem alarmado tanto a centro-direita governista, liderada por Eduardo Leite, quanto a extrema-direita bolsonarista. Tornou-se, portanto, um alvo político a ser abatido por diferentes flancos do espectro conservador gaúcho.
O vazamento do inquérito sigiloso
O ponto mais grave e politicamente sensível do caso é o vazamento de informações de um inquérito que ainda corria sob sigilo policial. A divulgação inicial partiu do jornal Zero Hora, do grupo RBS, que publicou detalhes da investigação envolvendo a família de Juliana Brizola. A exposição do caso por um veículo de comunicação com forte influência política no Estado, antes do levantamento formal do sigilo, levanta dúvidas sobre a origem do vazamento e sobre a eventual utilização política do episódio.
Em artigo publicado em seu blog, o jornalista e analista político Jeferson Miola destacou que o episódio “configura uma grave violação institucional” e questionou a responsabilidade do governador Eduardo Leite, defendendo que ele determine “imediata apuração do vazamento e punição dos responsáveis”.
Importa frisar: não há, até o momento, acusação formal de que Leite tenha participado diretamente do vazamento. A dúvida, entretanto, é perturbadora e exige resposta pública. Afinal, quando um inquérito familiar — com potencial impacto eleitoral — é divulgado antes de sua conclusão, abre-se um precedente de vulnerabilidade institucional e de manipulação política.
Os interesses conflitantes e a hipótese da ultradireita pedetista
Aqui se instala o cerne mais espinhoso da questão: por que o vazamento ocorreu? Quem ganha com ele? E em que contexto?
- Bloqueio à aliança PDT-PT
Conforme o próprio Miola e outros analistas, o governador Leite teria manifestado oposição a qualquer tentativa de aliança entre o PDT e o PT no Rio Grande do Sul. Juliana Brizola seria a figura capaz de representar o PDT nessa aliança — e, por conseguinte, ameaçar o arranjo eleitoral preferido por Leite e seus aliados no Estado. - Setores da ultradireita dentro do PDT
Há indícios de que segmentos internos do PDT, contrários a uma aproximação com o PT, estariam articulados com grupos da ultradireita gaúcha — inclusive próximos ao bolsonarismo e ao próprio governador Leite. Esses setores, interessados em bloquear qualquer recomposição de campo democrático no Estado, teriam motivos para facilitar o vazamento do inquérito, fragilizando Juliana e inviabilizando uma frente ampla de oposição. - O papel de Leite e do prefeito Melo
O prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo, do MDB, também é apontado como um dos que vetam qualquer aliança entre PDT e PT. Tanto ele quanto Leite teriam interesse em preservar o atual equilíbrio político estadual, no qual o PDT se mantém afastado da esquerda. Nesse sentido, o vazamento — ainda que não se prove sua origem — acaba por favorecer o campo político liderado por ambos.
Assim, o quadro que se desenha é o de uma triangulação complexa: Juliana Brizola (PDT) indiciada, fato tornado público por vazamento de inquérito sigiloso, e interesses eleitorais que atravessam tanto o governador Leite quanto correntes internas do PDT alinhadas à ultradireita.
O caso e o futuro da democracia gaúcha
A democracia exige processos institucionais transparentes e escrupulosos. Vazamentos seletivos de inquéritos podem decorrer de práticas de intimidação, manipulação política ou uso de instituições para fins eleitorais.
No plano estadual, o controle dos partidos, das candidaturas e das alianças configura exercício de soberania política — para que as decisões não sejam capturadas por oligarquias ou por arranjos de elite que escapam à vontade popular. Quando atores internos se utilizam de vazamentos e de imprensa-aliada para condicionar disputas, abre-se espaço para corrosão institucional.
Esse caso lança luz sobre as relações entre setores da ultradireita — que hoje operam tanto fora quanto dentro de partidos como o PDT — e as práticas políticas de bastidor no RS. Criticar essas práticas não significa neutralizar o indiciamento de Juliana, que deve ser investigado com rigor. Significa, sim, insistir para que o procedimento seja justo, transparente e não se transforme em instrumento de eleição.
Onde ficam as responsabilidades
- O grupo de mídia que divulgou o vazamento tem responsabilidade jornalística: o fato de o inquérito estar sob sigilo exigia cautela sobre a publicação e seus efeitos.
- A Polícia Civil do Rio Grande do Sul e o Ministério Público do RS têm o dever de apurar não só as acusações contra Juliana, mas também a origem do vazamento — e punir quem o autorizou ou favoreceu.
- O governador Eduardo Leite, embora não acusado de vazamento, tem responsabilidade institucional: como chefe máximo do Executivo estadual, cabe-lhe promover a investigação e preservar a integridade do processo.
- O próprio PDT deve enfrentar internamente a existência de correntes que operam fora dos canais democráticos: se setores utilizam práticas de intimidação contra uma correligionária, isso compromete o partido.
Democracia sob pressão
O caso Juliana Brizola revela como a interseção entre poder político, mídia, processos judiciais e disputa partidária pode transformar-se em campo de batalha de interesses. Não se atribui ao governador Eduardo Leite a autoria direta do vazamento — mas não se pode tampouco excluí-lo de responsabilidades institucionais. Ao mesmo tempo, há forte suspeita de que setores internos do PDT, alinhados à ultradireita e aos interesses de impedir uma aliança de esquerda, podem ter sido agentes do vazamento.
A relevância desse episódio vai além de uma disputa local: ele incide sobre a cultura da democracia, sobre a autonomia dos partidos e sobre os mecanismos de justa disputa eleitoral — que devem ser regulados pelo direito, pelo controle institucional e pelo escrutínio público. O uso de fatos da vida pessoal para minar candidaturas é prática recorrente da extrema-direita e remete a um padrão histórico. Em 1989, Fernando Collor de Mello lançou mão de acusações pessoais envolvendo Lula e sua filha Lurian, às vésperas da votação presidencial, para desviar o foco do debate político e fragilizar o adversário. Esse tipo de expediente continua a corroer o espaço público e a enfraquecer a confiança na democracia.
O caso requer uma apuração rigorosa e transparente, capaz de assegurar o direito à ampla defesa e a preservação da dignidade das pessoas envolvidas. É essencial que as instituições atuem com independência e prudência, evitando que vazamentos e manipulações desviem o curso da justiça ou contaminem o processo democrático.
BENEDITO TADEU CÉSAR é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Imagem da capa: Vazamento para prejudicar candidatura de Juliana Brizola – Imagem gerada por IA ChatGPT
Tags: Juliana Brizola, Eduardo Leite, PDT, RBS, Zero Hora, Jeferson Miola, Rio Grande do Sul, vazamento de inquérito, política gaúcha, democracia, poder, extrema-direita, centro-direita, eleições RS




