Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A pobreza absoluta se refere à carência de bens e serviços essenciais (alimentação, moradia, saúde). Pode ser combatida por políticas públicas de redistribuição direta, por exemplo, via Bolsa Família, Food Stamps, Medicare.
A pobreza relativa se refere à desigualdade entre classes sociais. Depende da estrutura de propriedade e de distribuição relativa da renda — e não apenas da renda média. Por exemplo, a concentração patrimonial e desigualdade de riqueza nos EUA parece ser insuperável, porque o top 1% tinha mais de 30% da riqueza total em 2020.
Erradicar a miséria é decisão política e orçamentária. Erradicar a desigualdade é decisão estrutural e socialmente conflitiva.
As condições políticas, para combater a pobreza absoluta, exigem governos trabalhistas com hegemonia parlamentar. Assim, eles conseguem reduzir a pobreza extrema se houver: gasto social elevado e progressivo; crédito público direcionado à produção e emprego; valorização real do salário mínimo; tributação progressiva e investimento em infraestrutura social.
Exemplo histórico, entre outros, foi o Reino Unido (1945–1979): NHS, previdência universal, pleno emprego. Recentemente, foi o caso do Brasil (2003–2014): redução da pobreza extrema e expansão do emprego formal.
Há claramente um limite. Tais políticas melhoram o consumo das famílias, mas não transformam a propriedade do capital. Logo, não reduzem a desigualdade estrutural.
A superação excepcional da desigualdade (1930–1970) ocorreu nos Estados Unidos sob a Grande Depressão e o New Deal. A Crise de 1929 levou à destruição massiva de valor das ações com a desorganização da oligarquia financeira.
Respostas institucionais foram o Glass-Steagall Act (1933) com separação entre bancos comerciais e de investimento; Social Security Act (1935) com fundação da previdência pública; imposto progressivo sobre grandes rendas e heranças. O maior efeito social foi o fortalecimento dos sindicatos e expansão da classe média.
Na Europa do pós-guerra, o Estado de Bem-Estar Social buscou superar a destruição física e financeira de ativos durante a Segunda Guerra Mundial. O risco de revoltas comunistas conduziu ao pacto social redistributivo. Modelos emblemáticos foram a social-democracia nórdica, o Welfare State britânico, a planificação francesa.
A redução da desigualdade não foi resultado de crescimento pacífico, mas de rupturas históricas do capital (crise e guerra).
A contrarrevolução neoliberal (1979–1990) com o Reaganomics (EUA) e o Thatcherismo (Reino Unido) inverteram o pacto social: cortes de impostos sobre lucros e heranças; privatizações e desregulação financeira; enfraquecimento sindical e repressão à negociação coletiva; globalização produtiva e financeirização do lucro.
Exemplos empíricos foram a taxa máxima do imposto de renda nos EUA ter caído de 91% (1960) para 28% (1988). Resultado: retorno da concentração de riqueza aos níveis pré-1929. Da social-democracia ao “capitalismo acionário”, o capital retomou a hegemonia ideológica e institucional.
A Era da Financeirização e dos ETFs (1990–2020) surgiu devido às inovações financeiras: fundos mútuos, ETFs e plataformas de investimento. A financeirização se tornou popular quando as famílias se tornaram “acionistas indiretos” via fundos de pensão e previdência.
Aparência democrática foi todos “participarem” do mercado. Mas a realidade estrutural foi os 10% mais ricos deterem 85% das ações corporativas.
O efeito sociológico foi o cidadão comum ser transformado em “investidor” e medir sua sorte pela bolsa de valores, não pelo salário. A inclusão financeira substituiu a redistribuição social e o rentismo tornou-se comportamento social de massa.
Há limites atuais da redução da desigualdade, inclusive pela ausência de ameaça socialista, ou seja, reduz o custo político da desigualdade. Diante a alta mobilidade do capital financeiro, os governos temem fuga de capitais se elevarem impostos.
Crescimento patrimonial autônomo se dá pela valorização de ativos (ações, imóveis, títulos) ampliar a desigualdade mesmo sem crescimento produtivo. Dados de referência (EUA) mostram: em 1978, o top 1% detinha 22% da riqueza; em 2020, o top 1% passou a deter 32% da riqueza. A tributação sobre ganhos de capital é menor se comparada à incidência sobre salários.
Sem colapso do capital, não há redistribuição estrutural. Apenas ocorre mitigação social da miséria.
Em comparação com o caso brasileiro, brevemente, no período 1945–1980 no Brasil ocorreu um certo desenvolvimento industrial com o Estado investidor. Levou à redução relativa da pobreza absoluta.
No período 1990–2002, houve liberalização, financeirização e desemprego. No período 2003–2014, pelo contrário, houve inclusão social via crédito e transferência, mas com aumento do endividamento das famílias. No período 2015–2022, reverteu-se com austeridade fiscal e concentração patrimonial acelerada.
O dilema atual diz respeito ao Brasil ter reduzido a pobreza absoluta, mas ter mantido a pobreza relativa, isto é, a desigualdade patrimonial entre as maiores do mundo.
A desigualdade contemporânea não deriva do trabalho, mas sim do regime de propriedade financeira com uma nova oligarquia rentista. O capital vive hoje de juros, dividendos e valorização de ativos, enquanto o trabalho se endivida para consumir. A elite atual não é industrial nem fundiária: é patrimonial-financeira.
Em resumo, a pobreza absoluta é superável com governo com hegemonia congressual/parlamentar e política fiscal redistributiva. A desigualdade relativa só se reduz quando o capital perde valor — e isso só acontece em crise, guerra ou revolução. O desafio contemporâneo é político: reconstruir a capacidade de o Estado regular e tributar o patrimônio financeiro globalizado.
“Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
Foto de capa: Palafita desabou na comunidade da Sharp, área alagada em Manaus, em 2023 | Carolina Diniz/Rede Amazônica





Respostas de 2
Uma análise muito didática. Em minha limitação de leigo, percebi e percebo isso ao longo da minha vida, mas aqui está bem pontuado e fundamentado, aclarando a ideia de que sem um posicionamento político das sociedades, continuaremos ao sabor dos movimentos de quem entende, e explora quem não entende.
Ótimo texto! Mostra muito bem, pelo que entendi, que a política se tornou muito mais importante nos dias de hoje. Porque, de certa forma, o “capitalismo” passou a se alimentar de si mesmo com o financismo/rentismo. A produção de bens e o trabalho se tornaram fatores secundários nesta pseudo-economia. Sobretudo, quando se juntou a tudo isso a revolução digital. Parece que entramos numa era pós-econômica.