Hora de uma Ministra Preta no Supremo

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Por MARIA LUIZA FALCÃO SILVA*

Uma Corte que ainda não reflete o país real

O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição e um dos pilares da República. Mas, em mais de duzentos anos de história, nenhuma mulher negra ocupou uma de suas cadeiras. Esse dado é, ao mesmo tempo, um sintoma e um espelho: mostra o quanto o Brasil, apesar dos avanços democráticos, ainda resiste a se enxergar em toda a sua diversidade.

Em toda a trajetória da Corte, apenas um ministro negro foi nomeado: Joaquim Barbosa, indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2003, cuja atuação firme e independente marcou época. Sua presença solitária, porém, continua sendo exceção num tribunal historicamente composto por homens brancos e oriundos dos mesmos círculos sociais e acadêmicos.

Das 170 pessoas que já passaram pelo Supremo, apenas três foram mulheres — Ellen Gracie, Carmen Lúcia e Rosa Weber —, todas brancas. A ausência de uma mulher negra na mais alta instância do Judiciário é um retrato do racismo estrutural que ainda permeia as elites brasileiras e suas instituições.

Agora, com o pedido de aposentadoria antecipada do ministro Luís Roberto Barroso, que deixou o cargo em outubro de 2025, abre-se uma nova vaga no Supremo. E a decisão caberá, mais uma vez, ao presidente Lula. O momento é histórico: o país espera que ele reitere o gesto de coragem institucional de duas décadas atrás e faça avançar a representatividade dentro do STF.

Mérito e diversidade: um falso dilema

Ninguém discute que o critério de notório saber jurídico e de reputação ilibada seja essencial para integrar a mais alta corte. A questão é outra: por que, entre tantas juristas negras altamente qualificadas, nenhuma jamais foi lembrada para o Supremo?

A noção de que diversidade comprometeria a competência é um argumento de quem teme perder privilégios. Diversificar não significa renunciar a mérito — significa redefinir o que entendemos por mérito em uma sociedade que, por séculos, negou oportunidades iguais à maioria de sua população.

Como ensinava Lélia Gonzalez, “o racismo é uma forma de alienação cultural”. Isso vale para o racismo institucional: ele empobrece as instituições, porque as priva de olhares diversos sobre o mesmo país. Uma Corte plural é uma Corte mais inteligente, mais legítima e mais conectada à realidade social.

Um gesto histórico e necessário

Ao presidente Lula cabe agora uma decisão com valor histórico: indicar uma mulher negra para o Supremo Tribunal Federal (STF). Não como gesto simbólico, mas como compromisso com o Brasil real — o Brasil que trabalha, que luta, que pensa e que resiste.

A indicação de uma ministra preta seria uma reparação histórica de séculos de exclusão, mas também um avanço concreto. O olhar de uma mulher negra sobre o direito constitucional, o racismo ambiental, a violência de gênero e a desigualdade econômica ampliaria o campo da jurisprudência. A Constituição é a mesma, mas sua interpretação muda conforme o olhar de quem a lê.

Nos Estados Unidos, por exemplo, a nomeação da juíza Ketanji Brown Jackson para a Suprema Corte representou uma virada simbólica e institucional. Sua presença alterou o debate público e mostrou às jovens negras que o sistema jurídico também lhes pertence. O Brasil pode e deve fazer o mesmo.

Nomes que representam competência e compromisso

Uma simples consulta ao chatgtp mostra um número razoável de mulheres negras com trajetória jurídica sólida e legitimidade pública para ocupar uma cadeira no STF. Entre os nomes frequentemente lembrados estão Vera Lúcia Santana Araújo, advogada, integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB Nacional,  ministra  substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), reconhecida por sua atuação na defesa dos direitos humanos e da igualdade racial; Edilene Lôbo, também ministra substituta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), com destacada carreira acadêmica e jurídica; Juliana França, procuradora e referência nacional em justiça racial; Silvanna Bahia, advogada e pesquisadora na área de direitos humanos e Maju Souza, professora e doutora em Direito Constitucional.

Esses nomes — e tantos outros — demonstram que não há escassez de competência, mas de vontade política. O que falta é romper o ciclo de exclusão que impede que a experiência negra, feminina e popular integre o topo do pensamento jurídico nacional.

Democracia e representatividade caminham juntas

Uma Suprema Corte plural é condição para a consolidação democrática. Instituições compostas apenas por uma elite homogênea tendem a reproduzir seus próprios valores, afastando-se da vida concreta da maioria da população.

O Judiciário precisa se abrir à sociedade. Precisa compreender que inclusão não é favor, é justiça. Assim como a presença de mulheres transformou o debate sobre direitos reprodutivos e igualdade de gênero, a presença de uma mulher negra pode transformar o debate sobre o racismo institucional, o encarceramento em massa, a violência policial e a desigualdade de acesso à Justiça.

O Brasil é o maior país negro fora da África. No entanto, continua sendo um dos que menos reconhecem o papel das pessoas negras em suas estruturas de poder. O Supremo tem agora a chance de romper essa contradição histórica.

Um Supremo à altura do Brasil que somos

Não se trata de concessão identitária, mas de reconhecimento histórico erepublicano. A democracia brasileira amadurece quando suas instituições refletem a diversidade do povo que as sustenta.

Ao indicar uma ministra preta, Lula não estaria apenas escolhendo um nome para o Supremo, mas reescrevendo uma página da história nacional. O gesto teria alcance simbólico e político comparável à criação do Bolsa Família ou à aprovação da Lei de Cotas.

Afinal, como lembra a filósofa Djamila Ribeiro, “representatividade importa não porque queremos estar em todos os lugares, mas porque queremos mudar todos os lugares onde estamos ausentes”.

O Brasil precisa, e merece, uma ministra preta no Supremo Tribunal Federal. É uma questão de justiça, de coerência e de futuro.

A Constituição de 1988 prometeu pluralidade, mas até hoje o Judiciário tem falhado em cumpri-la na prática.


*Maria Luiza Falcão Silva é PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED). Entre outros, é autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England/USA.

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