A derrota da MP do IOF e a resistência à tributação digital: o preço político da desordem fiscal

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Brasília - 08/10/2025 - Parlamentares de oposição comemoram a retirada de votação da (MP 1.303/2025). Foto: Lula Marques/Agência Brasil.

Por BENEDITO TADEU CÉSAR*

A Câmara dos Deputados impôs, nesta semana, uma das derrotas mais simbólicas ao governo Lula desde o início do segundo mandato. Ao derrubar a Medida Provisória 1.303/2025, conhecida como MP do IOF, o Legislativo desfez uma das principais iniciativas fiscais do Ministério da Fazenda para recompor o orçamento de 2026 e sustentar o equilíbrio das contas públicas.

Mas a dimensão política do episódio ultrapassa o campo técnico da arrecadação. O que se viu no plenário foi a consolidação de uma aliança previsível e politicamente devastadora para o governo: a união entre governadores de oposição — Ronaldo Caiado (União Brasil) e Tarcísio de Freitas (Republicanos) —, setores do empresariado financeiro e parlamentares do centro, em torno do velho discurso da “defesa do produtor” e do “não aos impostos”. Essa convergência, longe de improvável, expressa a força dos interesses que resistem a qualquer tentativa de correção tributária em setores de alta rentabilidade.

A MP do IOF: o que estava em jogo

A medida provisória pretendia compensar a perda de arrecadação decorrente da revogação de um decreto que aumentaria o IOF. O plano era gerar entre R$ 17 e R$ 20 bilhões em 2026, por meio da revisão de alíquotas sobre aplicações financeiras, aumento da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido**) de instituições financeiras e fintechs e elevação da taxação sobre bets (casas de apostas esportivas).

Era uma proposta moderada, dentro do espírito do novo arcabouço fiscal, sem ampliar a carga tributária geral — apenas corrigindo assimetrias em setores que, embora altamente lucrativos, pagam menos impostos que os bancos e o comércio formal. Ainda assim, a MP encontrou forte resistência.

Com a retirada da pauta por 251 votos a favor e 193 contrários, a medida perdeu validade e caducou. A consequência imediata é clara: o governo perde bilhões de reais em receitas previstas e será obrigado a bloquear ou contingenciar entre R$ 7 e R$ 10 bilhões em emendas e gastos. O impacto político é mais profundo: ficou evidente que o Executivo não controla a base e que a agenda da responsabilidade fiscal está sendo sequestrada por interesses eleitorais e corporativos.

Por que bets e fintechs entraram na disputa

O caso das bets e das fintechs revela o coração da disputa contemporânea sobre quem deve financiar o Estado.

As bets movimentam mais de R$ 100 bilhões anuais no Brasil, mas recolhem pouco mais de R$ 1,6 bilhão em tributos. A MP previa elevar a taxação de 12% para 18% sobre o lucro bruto das apostas (Gross Gaming Revenue). O relator, Carlos Zarattini, recuou após intensa pressão de parlamentares ligados ao lobby do setor, que argumentaram que a medida reduziria a competitividade das plataformas e estimularia o mercado ilegal.

As fintechs (empresas que operam no setor financeiro com base em tecnologia digital), por sua vez, mantêm alíquota reduzida de 9% de CSLL, metade do que pagam os bancos tradicionais. O governo queria elevar para 15%, corrigindo um desequilíbrio que não se justifica mais: empresas como Nubank, Mercado Pago e PicPay já são gigantes financeiros com dezenas de milhões de clientes e lucros bilionários.

Em ambos os casos, não se tratava de criar novos impostos, mas de estabelecer isonomia tributária — um passo elementar num sistema onde os mais ricos e as novas elites digitais continuam subtributados.

Os governadores e o cálculo político

A ofensiva de Ronaldo Caiado e Tarcísio de Freitas contra a MP ilustra o uso político da pauta fiscal como instrumento de oposição. Caiado mobilizou parlamentares do União Brasil sob o argumento de que a medida seria “um presente de R$ 30 bilhões para Lula gastar em 2026”. Tarcísio, mesmo negando envolvimento direto, foi acusado por líderes governistas de pressionar deputados de partidos de centro a votar pela derrubada da proposta.

A retórica de ambos é conhecida: “governo gastador”, “imposto sobre o povo”, “defesa do produtor”. Na prática, trata-se de disputa por espaço eleitoral, visando enfraquecer o Executivo e consolidar o campo da direita moderada em torno de nomes competitivos para 2026. A guerra fiscal tornou-se, assim, um instrumento de guerra política.

As reações imediatas do governo

A derrota provocou reação coordenada, mas prudente, do Palácio do Planalto.

Lula afirmou que a derrubada da MP “não é uma derrota do governo, mas do povo brasileiro”, e anunciou que reunirá ministros e líderes partidários para discutir alternativas fiscais. Disse ainda que “o sistema financeiro, inclusive as fintechs, precisa pagar o imposto devido ao país”, reiterando o compromisso de buscar justiça tributária.

Fernando Haddad, ministro da Fazenda, lamentou a decisão e afirmou que “a Câmara jogou contra o Brasil”, prometendo apresentar medidas alternativas de compensação, inclusive bloqueio de emendas e ajustes de despesas discricionárias para preservar as metas fiscais do arcabouço.

Gleisi Hoffmann, presidenta do PT, voltou a criticar Ronaldo Caiado por insuflar votos contrários e classificou sua postura como “mentalidade tacanha”. Ela defendeu a necessidade de reorganizar a base parlamentar e cobrar lealdade dos partidos que compõem o bloco governista.

Medidas possíveis para compensar a perda

A equipe econômica já trabalha com cinco frentes principais.

  1. Contingenciamento de gastos e emendas parlamentares. O bloqueio pode atingir até R$ 10 bilhões, como anunciou o senador Randolfe Rodrigues, líder do governo no Congresso. O objetivo é evitar que a perda de arrecadação comprometa o cumprimento do arcabouço fiscal.
  2. Decretos sobre o IOF e outros tributos reguláveis. A Fazenda estuda ajustes por decreto nas alíquotas do IOF, instrumento que dispensa aprovação legislativa e tem respaldo em decisões anteriores do STF.
  3. Nova medida provisória ou projeto de lei substitutivo. Lula pediu à Fazenda e à Casa Civil que elaborem uma nova proposta de compensação menos sujeita à resistência corporativa. Essa MP pode retomar parte das medidas anteriores, com calibragem política para não colidir com setores empresariais e parlamentares influentes.
  4. Ajustes administrativos e reforço na arrecadação ordinária. O governo pretende acelerar o combate à sonegação e à evasão fiscal, além de reforçar programas de renegociação de dívidas ativas e créditos tributários.
  5. Pressão política e reorganização da base. O Planalto deverá rever a distribuição de emendas, nomeações e alianças dentro da base governista. A mensagem é clara: quem votar contra o governo perderá prioridade orçamentária.

O custo político e institucional

A vitória parlamentar que derrubou a MP não é vitória para o Brasil. Ao inviabilizar medidas de reequilíbrio orçamentário, o Congresso empurra o governo para cortes de investimentos, bloqueio de emendas e contenção de políticas sociais.

A curto prazo, o prejuízo é fiscal. A médio prazo, é institucional: confirma-se o divórcio entre responsabilidade pública e conveniência política.

No plano simbólico, o país volta a tropeçar na mesma contradição histórica: exige do Estado que funcione, mas recusa a base tributária que o sustenta. Enquanto isso, setores digitais e financeiros ampliam lucros em ambiente de isenção relativa, sob aplausos de quem diz defender o contribuinte, mas defende, de fato, os grandes contribuintes.

Democracia e soberania fiscal

Tributar bets e fintechs não é questão de punir inovação ou lazer. É condição de soberania e justiça. Um Estado que não tributa adequadamente os setores de ponta da economia digital torna-se refém deles.

A tributação é parte do pacto democrático: quem lucra mais, paga mais; quem concentra dados, riqueza e poder, deve contribuir para o bem comum. Rejeitar esse princípio é perpetuar o Brasil da desigualdade, em que o povo paga imposto no consumo e os grandes conglomerados digitais operam em paraísos fiscais.

A derrota da MP do IOF, portanto, não é apenas um revés contábil. É um alerta político. Mostra que o projeto de reconstrução fiscal e social do país continua vulnerável às pressões corporativas e ao cálculo eleitoral. Recoloca, no centro do debate, a pergunta que define qualquer democracia madura: quem financia o Estado e a quem o Estado serve.

*Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.

**A CSLL é a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, um tributo federal criado em 1988 para financiar a Seguridade Social, isto é, as políticas públicas de saúde, previdência e assistência social. Enquanto o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) é destinado ao Tesouro Nacional para custear as despesas gerais do Estado, a CSLL tem destinação específica: ela reforça o caixa das políticas sociais que sustentam a rede pública brasileira. A CSLL incide sobre o lucro líquido das empresas, apurado depois das deduções legais e ajustes contábeis. A CSLL traduz, em números, a ideia de solidariedade fiscal: quem tem lucro contribui para sustentar o pacto social.


Foto da capa: Brasília – 08/10/2025 – Parlamentares de oposição comemoram a retirada de votação da (MP 1.303/2025). Crédito: Lula Marques/Agência Brasil.


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