Da REDAÇÃO
O artigo “The Moral Battles of the Theology of Dominism in Brazilian Legislative”, assinado por Helcimara Telles e Horrana Grieg Oliveira e publicado no International Journal of Latin American Religions, analisa com profundidade o avanço do fundamentalismo religioso nas instituições políticas brasileiras entre 2018 e 2024. A pesquisa foca na atuação dos evangélicos pentecostais que seguem a chamada Teologia do Domínio — doutrina que prega a construção de uma “nação cristã” e a ocupação de espaços de poder como missão espiritual.
As autoras mostram como esse movimento, importado dos Estados Unidos e incorporado às igrejas neopentecostais brasileiras, tem produzido um discurso moralista que busca legitimar a interferência da religião nas decisões do Estado. O estudo revela um panorama preocupante: a consolidação de uma agenda que pretende submeter as leis e políticas públicas a valores religiosos, em confronto direto com os princípios da laicidade e da democracia.
A lógica do “bem contra o mal”
Segundo Telles e Oliveira, a Teologia do Domínio interpreta a vida política como uma batalha espiritual entre o bem — representado pelos “cristãos fiéis” — e o mal, simbolizado por tudo o que desafia a moral tradicional. Essa visão maniqueísta orienta o comportamento de parlamentares que se autoproclamam “soldados de Jesus” e transforma disputas éticas em guerras culturais.
As pesquisadoras citam o crescimento das igrejas pentecostais e o uso estratégico da fé como instrumento de mobilização eleitoral. A expansão dessa teologia no Brasil coincidiu com a ascensão da extrema direita e com o discurso de “reconquista cristã” do país. O movimento ganhou força especialmente durante o governo do presidente Jair Bolsonaro, que contou com amplo apoio das denominações neopentecostais. Nesse contexto, as autoras utilizam o conceito de “Christofascism” (Py, 2020) para descrever a fusão entre religião e autoritarismo, na qual símbolos cristãos são usados para justificar políticas conservadoras e práticas antidemocráticas.
O campo legislativo como território da cruzada moral
O estudo de Telles e Oliveira se baseia em levantamento minucioso de projetos de lei apresentados no Congresso Nacional entre 2018 e 2024, voltados a temas que compõem a “agenda moral”: aborto, união civil entre pessoas do mesmo sexo e educação (particularmente o projeto Escola Sem Partido).
As autoras demonstram que esses projetos não são ações isoladas, mas parte de uma estratégia coordenada pela Frente Parlamentar Evangélica, que hoje reúne quase metade dos congressistas. Essa bancada atua em aliança com grupos católicos tradicionalistas e setores da extrema direita, promovendo uma pauta que busca “restaurar valores cristãos” e restringir direitos civis conquistados nas últimas décadas.
O artigo chama atenção para o processo de judicialização das questões morais, quando o Legislativo se recusa a debater temas como a descriminalização do aborto ou o casamento igualitário, e o Supremo Tribunal Federal acaba assumindo o papel de garantidor de direitos fundamentais.
A genealogia do dominionismo
As autoras recuperam a origem da Teologia do Domínio (ou Dominion Theology), formulada nos Estados Unidos por pensadores como R.J. Rushdoony e disseminada pelo movimento conhecido como Nova Reforma Apostólica (C. Peter Wagner). A doutrina propõe que cristãos devem ocupar sete “montanhas” da sociedade — governo, educação, mídia, artes, economia, família e religião — para instaurar o “reino de Deus na Terra”.
No Brasil, esse pensamento se espalhou a partir dos anos 1980, acompanhando a expansão das igrejas neopentecostais e a reorganização política pós-ditadura. O lema “irmão vota em irmão” resume o espírito desse projeto: transformar capital religioso em poder político.
Telles e Oliveira identificam uma linha do tempo que vai da formação da bancada evangélica, nos anos 1990, à consolidação de sua influência legislativa durante o bolsonarismo. Hoje, o dominionismo é uma das matrizes ideológicas de figuras como o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), o mais votado do país em 2022, citado pelas autoras como símbolo da nova geração de políticos que usam a linguagem da “guerra espiritual” para justificar posições ultraconservadoras.
A família como trincheira política
Entre os temas analisados, a defesa do “modelo tradicional de família” ocupa o centro das batalhas morais. Inspirados por uma leitura literal da Bíblia, os dominionistas entendem a família como união entre homem e mulher, com papéis fixos e hierarquizados: o homem provedor e a mulher cuidadora. Essa concepção sustenta a oposição a políticas de gênero, à descriminalização do aborto e ao reconhecimento das uniões homoafetivas.
Telles e Oliveira destacam que o conceito de “ideologia de gênero”, cunhado pela Igreja Católica nos anos 1990, foi incorporado e amplificado por grupos evangélicos como ferramenta de mobilização política. Assim, a defesa da família torna-se o fio condutor de um discurso que busca criminalizar o feminismo, deslegitimar movimentos LGBTQIA+ e restringir a autonomia das mulheres sobre o próprio corpo.
Religião, mídia e poder
O artigo mostra que o sucesso político dos evangélicos também se explica pela combinação entre tecnologia e religiosidade popular. As igrejas pentecostais utilizam redes de comunicação poderosas — rádio, televisão e redes sociais — para difundir mensagens morais e construir identidades políticas.
A personalização da fé em torno de líderes carismáticos, a teatralização do discurso religioso e a retórica do “nós contra eles” criam uma comunidade política coesa, que se vê como guardiã da nação. Essa dinâmica, argumentam as autoras, contribui para a polarização do debate público e fragiliza a convivência democrática.
O entrelaçamento entre fé e autoritarismo
A análise de Telles e Oliveira conecta o crescimento do dominionismo à crise global da democracia e à ascensão de movimentos populistas de direita. No Brasil, essa aliança se expressa na retórica de “defesa da liberdade religiosa”, usada para justificar a supressão de direitos alheios.
A pesquisa dialoga com autores como Levitsky, Ziblatt e Przeworski para sustentar que a captura do Estado por agendas religiosas representa uma ameaça estrutural ao regime democrático. A política deixa de ser espaço de negociação e pluralidade para se tornar campo de salvação espiritual — e, nesse ambiente, quem pensa diferente é tratado como inimigo.
A relevância acadêmica e política do estudo
O artigo é um marco nos estudos sobre religião e política na América Latina. Além de apresentar um quadro detalhado da atuação legislativa dos grupos dominionistas, oferece uma leitura crítica do impacto desse fenômeno na cultura política brasileira.
A principal contribuição de Telles e Oliveira está em revelar como a moral religiosa tem sido instrumentalizada para fins eleitorais e como a retórica do “combate ao mal” legitima o autoritarismo. A pesquisa combina teoria política, sociologia da religião e análise legislativa, dialogando com referências internacionais e com a produção latino-americana recente.
Ao expor as conexões entre neopentecostalismo, extrema direita e desmonte de direitos, o texto ajuda a compreender o atual cenário político e as disputas em torno do Estado laico. É também um alerta sobre os riscos de se naturalizar a presença da religião como força normativa na esfera pública.
Um retrato das tensões do Brasil contemporâneo
Em tom rigoroso e sem militância panfletária, o estudo oferece uma leitura precisa do momento em que o país vive um retrocesso moral e institucional impulsionado por forças religiosas organizadas. Mostra que a cruzada dominionista não se limita à pregação nos púlpitos, mas opera nas comissões legislativas, nos tribunais, nas escolas e nas redes sociais.
Ao fim, Telles e Oliveira apontam que a reconstrução da democracia brasileira depende da reafirmação do Estado laico, da valorização do debate racional e da resistência a projetos que confundem fé com lei. O texto sugere que o enfrentamento dessas “batalhas morais” exige não apenas políticas públicas inclusivas, mas também uma renovação cultural que recoloque os direitos humanos no centro da vida pública.
Ilustração da capa: Plenário da Câmara dos Deputados, durante uma sessão presidida por Eduardo Cunha, quando parlamentares evangélicos e conservadores protestavam contra o financiamento público de eventos como a Parada Gay, a Marcha das Vadias e a Marcha da Maconha. Crédito da foto: Agência Brasil / Fabio Rodrigues Pozzebom
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Teologia do Domínio, evangélicos, Congresso Nacional, religião e política, extrema direita, democracia, direitos civis, Helcimara Telles, Horrana Oliveira, Nikolas Ferreira, bolsonarismo.




