Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A crítica do editorial antipetista da Folha de S.Paulo, ecoando o receituário neoliberal, inverte a causalidade: culpa a política social e fiscal pela desaceleração econômica, quando o verdadeiro freio está no arranjo macroeconômico restritivo da política monetária com meta de inflação irrealista e juros altos. Ela adota o fetiche da austeridade fiscal.
A Folha incorre em uma crítica ideológica e não factual. Ela naturaliza as amarras institucionais (meta de inflação, independência do BC, teto de gastos disfarçado), e atribui ao gasto social um papel inflacionário, devido a pressuposto aquecimento propiciado pela política fiscal, sem respaldo empírico. Isso gera o paradoxo: a política econômica capaz de sustentar crescimento econômico e inclusão social é vista como problema, enquanto a política econômica criadora da desaceleração e concentradora de renda e riqueza é invisibilizada pela “grande” (sic) imprensa brasileira.
Vou apresentar um quadro comparativo textual entre o mainstream neoliberal e a visão crítica heterodoxa, quanto aos principais tópicos do debate público entre imprensa e portais digitais como GGN, A Terra é Redonda, Fórum 21, RED etc.
1. Gasto público
- Visão mainstream (Folha/ortodoxia): Gasto social do poder público é política populista, capaz de pressionar a demanda agregada e gerar inflação. Deve ser contido para evitar desequilíbrio macroeconômico.
- Visão crítica: A inflação recente no Brasil não é de demanda, mas de custos e choques de oferta (commodities, câmbio, energia, margens oligopolistas), senão inercial pela indexação. O gasto social sustenta consumo básico sem provocar aceleração inflacionária.
2. Meta de inflação
- Visão mainstream: Meta de 3% aa é sinal de credibilidade. País “maduro” deve convergir para padrões dos países centrais.
- Visão crítica: Meta é artificialmente baixa e incompatível com a estrutura brasileira (média histórica 2001–2024: 6,2% aa). Mantê-la força juros reais muito altos, inibindo crescimento e investimento e premiando rentistas.
3. Banco Central independente
- Visão mainstream: Independência garante decisões técnicas, blindadas de pressões políticas, reforçando a “confiança de O Mercado” por ser pautado por Ele – um ser onipresente, onipotente e onisciente (apesar da contradição lógica entre essas duas últimas virtudes: ao anunciar o futuro perde o poder de modificá-lo).
- Visão crítica: O Banco Central decide arbitrariamente, com viés pró-rentista. Na prática, é um poder não eleito com poder de veto sobre a política econômica, neutralizando a política fiscal e impedindo a expansão da atividade econômico em longo prazo de maneira sustentada.
4. Dívida pública
- Visão mainstream: Aumento do gasto social ameaça a sustentabilidade da dívida. Risco de “explosão fiscal” exige austeridade.
- Visão crítica: A dívida bruta brasileira (≈ 75–78% do PIB) é menor diante a dos países centrais (por exemplo, França 110% do PIB, EUA 120%, Itália 140%, Japão 250%). É interna, em moeda nacional, sem risco de insolvência típica de países com dívida externa dolarizada. O discurso da “crise da dívida” é ideológico em vez de ser técnico.
5. Dinâmica de crescimento
- Visão mainstream: Para crescer com estabilidade, o Brasil deve conter gastos, manter juros altos e perseguir meta de inflação rígida.
- Visão crítica: O arranjo macroeconômico restritivo (meta de inflação irrealista e juros disparatados, bem como austeridade fiscal) semeia a desaceleração econômica. A política social ativa e o gasto público são sustentação mínima da demanda agregada, não obstáculo ao crescimento.
Na narrativa fantasiosa do mainstream, com sua abordagem neoliberal, o governo Lula seria “gastador”, provocando inflação e aumento da dívida. Na abordagem estruturalista, o verdadeiro freio ao crescimento está na combinação de metas de inflação irrealistas, independência do Banco Central e austeridade fiscal, porque transformam um cenário de potencial expansão em estagnação do fluxo de renda e concentração de riqueza financeira, isto é, “estagdesigualdade”.
Meu ex-colega Waldir Quadros analisou o primeiro biênio do governo Lula 3 (2023-2024). As principais ideias abordadas giram em torno das dificuldades políticas e financeiras enfrentadas pelo governo de Frente Ampla Antifascista, contrastadas com os avanços significativos na mobilidade social e na renda.
Desde logo, no primeiro ano, sofreu restrições políticas e econômicas. O Governo esteve “manietado” (constrangido) por duas forças principais: o Congresso com maioria de direita e O Mercado exigente de “juros nas alturas”.
O Congresso explorou o “presidencialismo de coalisão”, imposto por a base governista eleita ser muito minoritária. O Congresso só demonstra interesse em emendas parlamentares e cargos, enquanto O Mercado, por meio da “grande” imprensa, visa só justificar os altos juros para seu enriquecimento. Ele é dominado pelos interesses rentistas dos “bancos de negócios” e do agronegócio, apesar da FIESP ser politicamente reacionária – e a FEBRABAN não ser, como demonstrou durante o governo anterior.
A mídia brasileiros é muito tendenciosa a favor do neoliberalismo dos anos 90. Essa defesa do Tripé Macroeconômico e do fim da política do salário-mínimo com reajustes reais é sempre reforçada pela ampla cobertura tendenciosa dos meios de comunicação, com raras exceções.
Essas forças reacionárias contra o avanço social, na história do Brasil, preferem um governo fraco e incapaz de conseguir escapar do seu “garrote”. Essa dificuldade é confirmada pela fragilidade da base governista com poucos representantes de esquerda no Congresso Nacional.
Apesar da elevação do emprego e renda e da redução do desemprego, a aprovação do governo com hegemonia petista e do Presidente Lula caiu antes dele mudar o rumo de sua Comunicação. As expectativas de melhoria se depararam, em uma época, com a “inflação de alimentos”, levando a uma grande frustração.
A principal consequência dessas restrições fiscais é a falta de recursos para investimentos com a finalidade de desenvolver o país. Essa carência é impeditiva da implementação da reindustrialização e de maior volume das políticas públicas (saúde, educação, transporte, segurança, habitação e saneamento), porque ainda o povo pobre acumula enormes carências.
Em paralelo, houve o problema da criminalidade. Sob responsabilidade dos Estados, ela se agravou e não foi enfrentada, de forma estrutural, com comando unificado. Houve também o agravamento da carestia com a forte elevação do custo de vida pela quebra de oferta por problemas climáticos.
Quanto à disparidade orçamentária, a mídia opositora nada fala. Os gastos do governo com juros atingiram R$ 950 bilhões, em 2024, valor significativamente superior aos gastos com Saúde (R$ 216 bilhões) e Educação (R$ 111 bilhões) no mesmo período.
Apesar das dificuldades políticas, houve avanços expressivos na estrutura social, em mobilidade social e na renda, no primeiro biênio (2023-2024). Houve uma expansão significativa da alta e média classe média e uma forte redução da população miserável.
A Alta Classe Média cresceu +26,7% entre 2022 e 2024. A Média Classe Média cresceu +17,9%. O número de Miseráveis reduziu em -33,0%. Houve também redução da Baixa Classe Média (-1,7%) e da Massa Trabalhadora (-5,5%).
A renda média total familiar cresceu 14,3% no biênio (2022-2024), passando de R$ 5.416 em 2022 para R$ 6.190 em 2024 (a preços de out/2024). O crescimento da renda média foi expressivo em todas as regiões, destacando-se o avanço acima da média nacional no Sul (+18,9%) e no Nordeste (+17,1%).
A mobilidade social também foi expressiva em todas as regiões. O Sul e o Nordeste se destacaram no crescimento da alta classe média, e a Região Norte teve a maior redução de miseráveis (-40,8%).
Para explicar o descompasso entre os avanços sociais expressivos e a aprovação do governo, houve fatores políticos e ideológicos. A vitória eleitoral de 2022 só foi possível pela ampliação da frente eleitoral antifascista, com o Partido dos Trabalhadores assumindo o desgaste na parte conservadora da sociedade, devido à lembrança do lawfare judicial da Lava-Jato, isto é, do juiz de comarca, nomeado para ministro da Justiça do beneficiário e, depois, eleito senador para se refugiar na imunidade parlamentar.
A eleição em 2022 foi ganha, em grande medida, devido à figura do Presidente Lula. Transcendeu ao PT e escolheu um ex-adversário de centro-esquerda (inscrito no PSB), Geraldo Alckmin, como Vice-presidente.
A recente derrocada dos neofascistas golpistas, além do julgamento e punição, enfrentou a reação nacionalista diante a agressão externa. A recente recuperação da popularidade do Governo teve a contribuição decisiva das agressões de Trump, porque atingiram a soberania nacional e, diante a indignação da sociedade brasileira, levaram ao enfraquecimento do bolsonarismo e ao gradual afastamento da centro-direita de seus extremistas.
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
Foto de capa: Reprodução




