Opinião
Santa felicidade!
Santa felicidade!
De SOLON SALDANHA*
Em Curitiba existe um bairro com esse nome: Santa Felicidade. Ele se caracteriza por ser uma região cheia de restaurantes e lojas com produtos gourmet. Por lá se encontram excelentes vinhos e queijos, por exemplo, além de charcutarias de qualidade. Trata-se de um enclave italiano, com grande movimento de turistas. Nele existe o Memorial da Imigração Italiana, espaço cultural localizado em um parque, que abriga eventos como a Festa da Uva – está longe de ser como a de Caxias do Sul, mas tem seu valor e importância. E existe a igreja da Paróquia São José e Santa Felicidade (eu não sabia que santos faziam condomínios), na avenida Manoel Ribas, que possui um teto ricamente ornamentado e foi construída nos anos 1800. Confesso que estive poucas vezes na capital paranaense, mas gostava muito de lá. Um pouco da mística se perdeu quando a cidade passou a sediar a inquisição, que de santa não tinha nada, liderada pelo ex-juiz nada ‘neutro’ Sérgio Moro.
Mas isso tudo já passou: o tribunal de exceção mostrou a que veio e perdeu sua aura e força. O magistrado que o liderava está na lata de lixo da história – pena ser pequena a chance de se ver ele algum dia na prisão, ainda mais agora que conseguiu imunidade parlamentar – e, acima de tudo, mesmo tendo perdido quatro anos de sua história, o Brasil está voltando para os eixos. Aliás, não foram quatro, mas seis anos, somando os dois de ensaio com os quatro de desastre. Nesse tempo não se avançou nada e, na realidade, se voltou pelo menos um século atrás. O país, nesse período, cresceu como rabo de cavalo: em direção ao chão. É por isso que sugiro que o dia 30 de outubro passe a ser declarado como o Dia do Banho de Descarga. Ou então Dia do Descarrego, se alguém achar que esse termo é melhor. Deveria ser tão generalizado a ponto de causar falta de sal grosso nessa Terra Brasilis, por tanta procura, por demanda absurda, com ele deixando de lado o uso culinário e adentrando nossos banheiros.
Para os gaúchos, ainda bem que estamos em dia de semana, pois se imaginariamente isso já tivesse acontecido, logo depois da apuração, ainda assim teríamos tempo de esperar que os estoques todos fossem repostos antes do tradicional churrasco do próximo domingo. Se bem que a eleição de Lula, que não completou 48 horas, não poderia ter conseguido a proeza de baixar o preço que vem sendo cobrado pela carne. Ela, durante o desgoverno de Bolsonaro, andou fugindo dos olhos, espetos e pratos das pessoas. Esses últimos não comportam sequer arroz e feijão, não tendo como se dar ao luxo de conter cortes bovinos.
Os únicos que estão em pedaços são justo aqueles que acreditaram que seu mito iria emplacar mais uma vez. Mas, como diria minha vó Dorinha, do alto de sua sabedoria, ela que costumava repetir ditados populares com oportunidade ímpar, “não há mal que sempre dure”. ACABOU! Aliás, em homenagem ao falso cristão que agora vai deixar o trono onde nunca deveria ter sentado – ao seu sucessor, na realidade –, vai uma passagem bíblica: “Ele lhes enxugará dos olhos toda a lágrima; não haverá mais morte, nem pranto, nem lamento, nem dor, porquanto a antiga ordem está encerrada!”. Apocalipse 21:4.
Bolsonaro, ao menos por algum tempo, pode ser considerado passado. Sua (des)ordem acabou, uma vez que sem poder ele não é nada. Ou volta ao nada que sempre foi. Sem os seus 65 sigilos de cem anos, vai conseguir ser pessoalmente menos do que isso. Menos do que um zero à esquerda. No máximo restarão alguns estertores familiares e seu ranger de dentes até a passagem da faixa presidencial, o que ele com certeza não terá coragem suficiente para fazer. Certamente fugirá da responsabilidade como fugiu de todas as anteriores e do trabalho. Só esperamos que não consiga fugir da prisão, tão logo seja julgado por boa parte dos inúmeros crimes que vinha sistematicamente cometendo.
Claro que sobrará o bolsonarismo, essa versão tupiniquim do fascismo, que ainda precisará ser combatida com o mesmo rigor e sem tréguas: o vetor está agora neutralizado, a doença por ele transmitida ainda não. Mas, que isso seja feito assim que se respire um pouco, sentindo esse ar delicioso de novos tempos. Porque temos o direito de dedicar alguns bons momentos para festejar, antes de que se prossiga com a luta. Na batalha contra a ignorância, não contra quem perdeu, porque a perseguição é característica desse governo que o povo não quis mais, não do que voltará ao poder.
O que não se pode esquecer, no entanto – e isso é fundamental –, é que mais de 50 milhões de brasileiros seguiram acreditando no canto da sereia. Nas falsas mensagens, enviadas por robôs, ao invés de ouvir os alertas de familiares e amigos que não haviam se contaminado. Pessoas que passaram a agir movidas por instruções de WhatsApp, que também repassavam, ao invés de exercitarem sua capacidade de raciocínio, de pensamento crítico. É mesmo inacreditável que tanta gente possa ainda estar seguindo alguém responsável por milhares de mortes, por não ter comprado vacinas a tempo, durante a pandemia. Um falso cristão, racista, homofóbico, que admite que devoraria um ser humano, que diz que “pintou um clima” com meninas e que ofende mulheres e minorias. As mesmas pessoas que acreditam que Lula é um comunista, que ele vai destruir nossa economia e restringir a liberdade das pessoas. Bastava se dar conta que o PT esteve por 14 anos no poder, com o próprio Lula e Dilma, sem que isso tivesse acontecido. Ao contrário, vivemos naquela época uma pujança imensa, com distribuição de renda sem que algo tivesse sido tirado de ninguém, mas graças ao crescimento do país.
Pior ainda, nesse contingente enorme de pessoas existe quem jure serem projetos do futuro governo criar os banheiros únicos nas escolas, fechar as igrejas (foi Lula que assinou a Lei da Liberdade Religiosa), legalizar o aborto (quem elabora leis é o Congresso, não o presidente), que o novo presidente tinha ligações com o PCC (quem passou a vida homenageando e dando emprego para milicianos?), que as casas das pessoas seriam confiscadas para dar aos sem-teto, que Lula iria destruir o agronegócio e que uma cartilha do PT incentivava o consumo de drogas. Isso para citar apenas algumas das inúmeras mentiras que precisaram ser contestadas na justiça. O que foi feito, com sucesso. Com essas pessoas ainda se precisará conversar muito. Porque o entendimento se faz necessário, mesmo que a cegueira do fanatismo dificulte isso.
Mas, enfim, o assunto de hoje é felicidade. A minha é imensa, como também é imenso o número de quem me acompanha nesse sentimento sublime. É enorme a do Brasil inteligente e solidário. Domingo à noite brindei com um espumante de boa qualidade. Dormi pouco e segui com um sorriso persistente, que não abandona meu rosto. Hoje nem mesmo a minha lombar, que vez por outra é inconfiável, terá o poder de me tirar do prumo e do sério. Até porque eu já saí deles por conta própria: gritei, bati panela, toquei jingle com volume alto na minha sala – que desculpem os vizinhos, mas era necessário –, me senti tão jovem que fico desejando uma eleição dessas por semana. A parte ruim seria a ansiedade, mas no frigir dos ovos faria muito bem ao meu corpo, mente e espírito.
*Jornalista e blogueiro. Apresentador do programa Espaço Plural – Debates e Entrevistas, da RED.
Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.
Imagem do bairro Santa Felicidade – divulgação site Prefeitura de Curitiba.
As opiniões emitidas nos artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da Rede Estação Democracia.
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