Por FÁBIO DAL MOLIN*
O universo das chamadas “artes marciais” contempla distintos saberes e práticas ao longo dos séculos e das culturas. Podemos fazer a seguinte organização didática:
Arte Marcial: conjunto de saberes práticos e teóricos sobre a guerra, o combate e a defesa pessoal. Envolve estratégia, ética, filosofia, e desenvolvimento de habilidades de luta com armas, com o corpo e objetos adaptados. A arte marcial inclui a luta esportiva e a defesa pessoal.
Luta esportiva: constitui na prática lúdica ou de comparação das técnicas marciais em combates amistosos e em competições com regras. Os esportes de luta podem envolver armas ou o corpo, e não necessariamente envolvem combate , como nas exibições de quebramento de objetos ou competições de Kata no karate ou ou Kati no Kung Fu. ( que são avaliados como nas competições de ginástica olimpica). As lutas esportivas sempre existiram na arte marcial como modos de pesquisar e testar técnicas avançadas, competições entre soldados do mesmo exército, troca de conhecimento entre mestres aliados ou nas disputas entre países.Um.exemplo são as Olimpíadas. Todas as modalidades originais dos jogos olímpicos derivam da guerra ( corrida, luta corpo a corpo, arremesso de disco, arremesso de Dardo…)
Defesa pessoal: técnicas que envolvem o uso do corpo, de armas improvisadas ou específicas, voltadas para proteção do patrimônio.ou da integridade física de indivíduos ou grupos. Em suas origens , todas as escolas de artes marciais possuem treinamento de defesa pessoal.
Legítima defesa: conjunto de aparelhos sociais, jurídicos e técnicos que legitimam o uso da violência e da força e incluem a legítima defesa da honra, duelos, guerras de clãs ou gangues e linchamentos.
Autodefesa: conjunto de estratégias e aparatos técnicos, éticos, jurídicos e comportamentais que envolvem o direito de corpos vulnerabilizados a se protegerem da opressão, da tirania. Não necessariamente envolvem defesa pessoal ou arte marcial.
O processo colonial e a revolução capitalista industrial contaminaram as lutas esportivas em dois aspectos importantes: o desarmamento das populações nativas sob os eufemismos de “pacificaçao” e “conservação dos costumes e da cultura” e a assimilação do esporte de competição como mercadoria, o chamado “alto desempenho”.
A esportização, que é compreendida pelo filósofo alemão Norbert Elias como um processo civilizador e sublimatório da guerra, trouxe a taylorização das práticas em competições cujas pontuações valorizavam técnicas específicas: o Tae Kwon Do com os chutes, o judô com as quedas, o box valoriza as mãos, etc. Com o advento das olimpíadas da era moderna e o neoliberalismo os esportes de luta converteram a energia das artes marciais em técnica, estratégia, controle, cobrança, desempenho. Tanto nas artes marciais quanto na ginástica, ou qualquer outra ´prática, atletas de alto desempenho são corpos explorados como mercadoria pelo capital e pelas grandes empresas de mídia ou mercadorias.
Essas lutas tiveram início na década de 1950 e 1960, principalmente no Brasil, onde o vale tudo surgiu como uma forma de testar diferentes estilos de luta em um único combate, sem restrições de técnicas ou regras específicas. O objetivo era determinar qual arte marcial era a mais eficaz em uma situação de combate real.
O vale tudo ganhou popularidade nas décadas seguintes, especialmente na década de 1980, com eventos clandestinos e, posteriormente, com a realização de competições mais organizadas. Essas lutas eram caracterizadas pela ausência de regras, o que muitas vezes resultava em confrontos violentos e perigosos. Apesar disso, elas serviram como uma plataforma para o desenvolvimento de técnicas e estratégias que posteriormente influenciaram o MMA.
O MMA, ou Mixed Martial Arts, surgiu como uma evolução mais estruturada e regulamentada dessas lutas. Nos anos 1990, o esporte começou a ganhar reconhecimento internacional, com eventos como o UFC (Ultimate Fighting Championship) sendo pioneiros na profissionalização e regulamentação das competições. O MMA combina técnicas de diversas artes marciais, incluindo boxe, jiu-jitsu, muay thai, wrestling, judô, entre outras, promovendo um combate mais seguro e justo para os atletas.
Ao longo dos anos, o MMA passou por diversas mudanças na regulamentação, com a implementação de regras de segurança, categorias de peso, e critérios de arbitragem. Essas mudanças ajudaram a transformar o esporte em uma modalidade de alto nível técnico, com atletas treinados especificamente para competir de forma segura e eficiente.
O predominio inicial foi do “jiu jitsu brasileiro” e do wrestling, por motivos óbvios: chutes e socos são técnicas naturais do corpo, e as técnicas de queda e imobilização são mais complexas e refinadas, nunca lutadores de boxe ou tae kwon do imaginaram que alguem os agarraria pelas pernas. Então cada atleta que se submetesse a essa modalidade teve que treinar fundamentos de outras.
Para o senso comum dos não iniciados as vigorosas lutas de MMA são espetáculos de guerra sangrenta, contudo, sua história demonstra que são esportes de luta como quaisquer outros, como extremo profissionalismo e estratégia e seus atletas contam com equipes multiprofissionais das diversas modalidades de luta, fisioterapia, nutrição, motivação e muito, mas muito patrocínio oriundo de grandes marcas de roupas e acessórios, suplementos, bebidas energéticas, aplicativos de apostas e… marcas de cerveja.
Como todos os atletas de alto desempenho, os lutadores de boxe e MMA sofrem de um mal ocasionado pela exploração do corpo como mercadoria: a aposentadoria precoce. Em um mundo de expectativa de vida crescente e revisão das idades mínimas para aposentadoria, são raros os trabalhadores do esporte de alto rendimento cuja carreira ultrapassa os 50 anos de idade. Fernando Lucio da Costa, o Fernandão, histórico atacante do Internacional, anunciou a sua aposentadoria aos 35 anos de idade alegando estar exausto das dores e da fisioterapia diária. É assim no judô, na ginástica olímpica, no vôlei, e na maioria das lutas esportivas: artrose, hérnias de disco, cirurgias recorrentes, lesões cerebrais e mal de Parkinson, acometem atletas de elite em média antes dos 40 anos, e os obriga a abandonar os holofotes da glória e os condena a praticar pilates ou hidroginástica e consumir medicações para a dor e mudarem de profissão.
Nesse fim de semana Wanderley Silva e Acelino “Popó” de Freitas pereiras dois atletas relativamente longevos aposentados aos 49 e 47 anos protagonizaram um desafio com alto valor de mercadoria na atualidade, entre lutadores aposentados contra celebridades ou de outras modalidades. Tais lutas tem sido frequentes por aproveitar o capital midiático dos ex-atletas e também dar-lhes alguma sobrevida em termos financeiros e também da manutenção de seu prestígio e status principalmente entre seu público majoritário: homens brancos de classe média.
Ocorrida na noite de sábado, 27 de setembro de 2025, a luta ocorreu com amplo domínio para Popó, pois foi nas regras do Boxe, mesmo que o seu caráter de exibição tenha permitido uma discrepância enorme de peso e envergadura com vantagem para Silva. Com a extrema especialização das técnicas era esperado que um atleta veterano como Wanderley conseguisse resistir a virtuose de Popó mas tivesse dificuldades e especialmente na adrenalina da luta mostrasse reflexos involuntários de dar chutes, cotoveladas e cabeçadas, e foi isso que aconteceu. Popó venceu a luta com folga, mas Silva foi desclassificado por ter dado três cabeçadas, comuns nos primórdios do MMA mas ilegais no boxe.
Wanderley Silva treinou Muay Thay, modalidade que enfatiza chutes, socos, cotoveladas e joelhadas, mas, como todos os outros também precisou aprender Jiu Jitsu. Acelino de Freitas, o Popó, foi um exímio boxeador especialista e multicampeão.
Com o fim do combate entrou em cena outro aspecto histórico obscuro e funesto das artes marciais: as competições por poder e virilidade machistas e misóginas que sempre foram mediadas pelo controle sobre as propriedades, as mulheres ou o poder, e que hoje são também atravessadas pelo fetiche da mercadoria, desde as tretas do desafio, as provocações, ofensas a prooção da luta no mundo dos algoritmos e a competição entre os “clãs” do boxe e do MMA. E o resultado foi uma manchete bizarra Luta de Popó com Wanderley Silva acaba em briga”. Tal atitude parece encaixar naquilo que os antropólogos americanos Richard Wrangan e Dale Peterson apresentam em sua obra “Macho Demoníaco”. No livro, os cientistas apresentam descrições impressionantes e desconcertantes de evidências comportamentais evolutivas que demonstram que nós, os “humanos”, somos, na verdade, uma das cinco classes de grandes primatas juntamente com orangotangos, gorilas, chimpanzés e bonobo, porém anabolizados com uma estrutura cerebral única chamada neocortex. A obra dos norte-americanos tem como foco os comportamentos agressivos: infanticídio, estupro, formação de grupos organizados de batalha, relações de dominância de machos e fêmeas e entre machos. Os grandes primatas agressivos possuem grupos configurados pela dominação do alfa, macho ascendente em juventude, força física e liderança. Tal liderança é exercida por uma rede de relações com machos aspirantes a alfa, bajuladores e fêmeas. Entre os grupos de chimpanzés há o que nas relações políticas chamamos de “baixo clero”. Na luta da noite de sábado, após o combate dos machos alfa os demais machos do “baixo clero” se engalfinharam em uma briga de gangue, o que deu mais visibilidade e empolgação ao terrível espetáculo de masculinidade extrema e capitalismo. O advento do neocórtex colocou o homo sapiens em uma encruzilhada na linhagem dos grandes primatas, ele permitiu a ausência do cio e a criação da filosofia, da cultura da paz e do humanismo, porém gerou a tecnologia e o capitalismo que amplificaram nosso ethos de primata assassino em escala planetária. E aqui estamos tendo que debater esse lamentável espetáculo de brutalidade.
Alguns podem dizer “isso não é arte marcial”. Discordamos. É sim, seu aspecto mais sombrio, contra o qual todos nós temos que lutar, a luta de verdade, no campo das ideias e da violência positiva, da quebra de paradigmas. Temos que acabar com o neoliberalismo e com a escravização dos esportes de alto desempenho, desde o tênis de mesa ao MMA, que, como tudo no capitalismo, transformam os corpos em mercadoria.
Para mais informações sobre o tema sugerimos seguir @autodefesa2025 e @rosartesmarciais
*ábio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, professor da Universidade Federal do Rio Grande, professor colaborador do PPG em Psicanálise Clínica e Cultura da UFRGS. Texto escrito com a fúria dos injustiçados.
Contatos @b.dalmolin, dalmolinorama@gmail.com
lustração de capa: TV Globo/Reprodução




