Infiltração: o Inimigo Invisível

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Por JORGE BARCELLOS*

Às costas de uma das casas, uma jovem estava ajoelhada nas pedras, mexendo um pau no cano de esgoto que saiu da pia e que parecia entupido. Ela parecia exausta, com o rosto pálido e expressão desesperançada diante da dura tarefa, refletindo como o sistema de encanamento ruim afeta diretamente a vida e o destino das pessoas.” O caminho para Wigan Pier, George Orwell.

“Um excelente encanador é infinitamente mais admirável do que um filósofo incompetente. A sociedade que despreza a excelência no encanamento por ser uma atividade humilde e tolera a falta de qualidade na filosofia por ser uma atividade exaltada não terá nem bom encanamento nem boa filosofia. Nem seus canos nem suas teorias vão se sustentar.” Escritos, John Gardner.

Os problemas cotidianos de nossa vida urbana estão se transformando em um filme de terror, um retrato do mundo em que vivemos e afetam nossa subjetividade.   Desde que Lucy Huskinson, em Arquitetura e Psiquê: um estudo psicanalítico de como os edifícios impactam nossas vidas (Perspectiva, 2021), estabeleceu as balizas para a interpretação da arquitetura como uma realidade mental e experiencial, começamos a perceber o modo das interações essenciais do self e do ambiente em seu interior e fora dele. Aqui, não se trata apenas de refletir sobre os espaços de habitar, mas dos efeitos de seus problemas cotidianos em nosso comportamento inconsciente. Se, nos termos de Huskinson, prédios nos atraem por suas características, por outro, estabelecem conexões vitais em nossos relacionamentos com o mundo e com o Outro. Para caracterizá-los, são necessárias inúmeras imagens de diferentes campos do saber.

Digo isto porque parto de um problema comum vivido por muitos que habitam apartamentos. Raramente achamos que possam ser mais do que são, mas o problema é que, às vezes, eles são. É o caso que me aflige esta semana: uma infiltração em meu apartamento. Em algum lugar perdido do prédio dos anos 50 em que moro, há um cano.  Em algum lugar de meu prédio, esse cano vaza. Às vezes pinga do teto: é um vazamento. Às vezes produz mofo nas paredes: é uma infiltração. Ele atinge a mim, provocado por algo que há no apartamento da vizinha de cima. Ele é provocado por mim, por algo que está no meu apartamento para a vizinha de baixo. Talvez estejam conectados, não sei. Mas sua forma de aparecer produz sentimentos contraditórios entre os moradores. Não, não é uma simples infiltração, é todo um mundo de sentido que se tece ao seu redor. 

Como um filme de terror

Como num filme de terror, no seu simples ato de escapar da definição original dos canos — de conter a água em seu interior —, uma infiltração transforma em inferno a vida de parte de moradores do meu prédio, eu inclusive. O silêncio continua durante a noite, mas ele está lá, imperceptível, no meu velho prédio. Seu gotejar é insistente como um sussurro de um espírito esquecido entre as paredes. A água é fria e traiçoeira, a infiltração desliza por entre as frestas da parede antiga, entre seus poros, serpenteando entre espaços milimétricos como se atravessasse sombras. Mas é seu rastro úmido que cresce e apavora seus moradores. Cada gota que cai desce pelas paredes com uma precisão tormentosa; ela escava em direção a famílias e apartamentos como se meu antigo prédio estivesse chorando por dentro, uma dor muito antiga. Estaria chorando pelos imóveis vizinhos que vê desaparecerem ao seu redor? A casa onde eu estacionava na rua anterior que foi demolida? A casa do escritor Dionélio Machado, nas proximidades? Ou chora por todas as casas ao redor que foram derrubadas para a construção de prédios altos e modernos que encaram meu prédio, dizendo que aquele bairro não é mais o seu lugar? Estes prédios com seus vidros escuros querem que meu prédio desapareça, e por isso ele chora por dentro.

Há um vazamento em meu apartamento. Ou infiltração. Ou os dois. Não sei se nasce em um lugar ou em vários, mas, como nossos rios, eles, em algum lugar, essas gotas perdidas, se unem e continuam sua descida pelo interior das paredes de meu prédio. Vejo, enquanto escrevo, manchas no teto do meu banheiro que apontam para algo que não sei no apartamento de cima; vejo manchas no chão de meu quarto que apontam para algo do apartamento de baixo. Eles são pistas, e eu, detetive. O monstro da infiltração faz sua passagem do apartamento de cima do meu e chega ao apartamento de baixo. A infiltração pulsa diferente porque vem de diferentes lugares: mas quais? Nesses lugares onde a luz não chega, suas marcas na parede são como a pulsação de um coração esquecido do meu prédio que se recusa a morrer. Ela é essa ameaça silenciosa que transforma o conforto do meu lar e dos vizinhos em um pesadelo úmido, mofado, molhado e inevitável. Somente quem tem uma infiltração em casa sabe que já está vivendo no interior de um conto de Stephen King: é a ideia aterradora de que coisas estão nas paredes, brotam delas, que você não sabe onde estão, não é exatamente essa ideia de que as coisas podem ganhar vida e se tornar ameaçadoras?   Não tem como isso não mexer com algo perdido lá no seu inconsciente.   

Um problema urbano: vazamentos e infiltrações

É natural que prédios antigos tenham problemas de vazamento e infiltrações com o passar do tempo. Esse meu prédio antigo com seus vazamentos e infiltrações é um símbolo do mundo em que vivemos: queremos que nossas instituições sejam sólidas, mas basta que algo fuja ao controle para pôr em agitação todo um universo social. Dizemos que “algo vazou” quando algo escapou ao controle no campo jornalístico; já “vaza” é um imperativo para sair, como se quiséssemos dizer que algo não está no lugar. Dizemos que “água mole em pedra dura tanto bate até que fura” para falar das pequenas coisas constantes e insistentes que têm seus efeitos, exatamente como minha infiltração que, gota após gota, tira a paciência de mim e dos moradores de meu prédio.

Tento entender o que se passa na subjetividade que essa infiltração me produz e as imagens do cinema avançam. Deixo de pensar em cenas de um filme de King e passo a imaginar os moradores de meu prédio confinados em seus apartamentos como se estivessem em um episódio de Round 6 (dir. Hwang Dong-hyuk, 2021). Imagino o gotejar constante no teto e nas paredes, numa infiltração que causa tensão. Não somos mais moradores, nos tornamos competidores para saber quem primeiro eliminará seu vazamento. Como no filme, essa sensação é também uma forma de sociabilidade: cada vez que aumenta a infiltração, cada um dos moradores pede ao de cima providências. Cobrar o outro é uma atitude. Sou do tempo em que isso era a última coisa a fazer: era uma espécie de timidez ou vergonha pedir algo ao outro, reclamar. Eu mesmo nunca reclamei do meu vazamento com a vizinha de cima, só reclamei quando a vizinha de baixo reclamou do meu. É como se eu, a todo custo, quisesse evitar que se repetisse o “experimento da utopia dos ratos” de John Calhoun, aquele que demonstrava que um ambiente ideal para ratos terminou levando a um colapso social, em que a agressividade, o canibalismo e o colapso dos laços sociais se manifestavam, apesar da abundância de recursos. Meu prédio era exatamente esse meio ideal até que um vazamento ou infiltração se transformasse na possibilidade de um colapso social pelos conflitos entre moradores que um evento como esse possa trazer. Lá, era uma experiência para provar o efeito do superpovoamento; aqui eu penso em termos de como poderiam reagir seus moradores se essa infiltração continuasse num looping de vai e volta.

Vivo agora esse momento: é preciso contratar alguém que ache o vazamento, a infiltração. Como em Round 6 ou Missão Impossível, penso que, se o caça-vazamento aceitar o serviço, ele só poderá sair vivo do prédio em que se meteu se encontrar a infiltração e a consertar. Caso contrário, uma imensa boneca saída sabe-se lá de onde disparará tiros mortais. A imagem é apenas um retrato do desespero que toma conta da minha mente. Rio porque estamos tentando nos manter firmes frente a uma situação surreal. Coletamos dados, vemos a reputação de empresas de caça-vazamentos para contratar, mas é sempre no jogo psicológico que se estabelece entre os moradores que a trama avança: quem encontrará uma prova de vazamento ou infiltração? Quem verá o sinal de uma obstrução em um cano? Na semana passada, um momento crucial aconteceu: depois de indicações do local de um vazamento em minha casa, confirmado pelo laudo técnico, e após aberto um imenso buraco na parede, o pior pesadelo de um filme de King aconteceu: o vazamento não estava lá. Imagino na imagem da infiltração de meu prédio a metáfora exata do mundo em que vivemos, a do desmoronamento de nossas crenças e instituições: como é possível que um vazamento não exista naquele buraco aberto é uma pergunta da mesma natureza daquela que fazemos de como é possível a existência do PEC da Blindagem ou da urgência do PL da Anistia em nosso país. Não avançamos nada depois da redemocratização, ao contrário, só retrocedemos? São coisas que não podem acontecer quando a tecnologia ou a ética devem dar as orientações: mas o problema é justamente esse, de que elas não dão mais. 

Meu vazamento, meu mundo

Imagino o gotejar do cano em algum lugar como esse tic-tac de relógio, essa contagem regressiva silenciosa. Cada vez que deixamos passar algo, uma bomba está sendo armada: abro a parede de meu apartamento, onde o mofo já toma conta, e imagino que um dia ele todo possa ruir, afinal, como diz o pedreiro, “cuidado, moço, aqui é estrutural”. Essa força imperceptível e constante, até que tudo um dia então desabe, é exatamente o espelho do Bolsonarismo, desse imenso mundo perverso que já estava aí até que Jair Bolsonaro assumiu o poder e entornou o copo de água com apenas mais uma… gota d’água! Essa infiltração não é só um problema estrutural de meu prédio, mas um elemento do jogo político: perversos já se infiltraram em nossas instituições políticas, nas redes sociais, um lembrete cruel de que, em qualquer lugar, nossas fraquezas podem ser exploradas até o limite, e que o ambiente está tão vivo e ameaçador quanto o próprio desafio mortal do Round 6. Infiltrar, já diziam os anarquistas, é uma grande estratégia de poder

Olho as manchas no teto de meu apartamento e me lembro de outra cena de cinema, o apartamento onde vive Hopkins no filme Meu Pai (Dir. Florian Zeller, 2021). Assim como o apartamento de Anthony era o próprio labirinto de sua mente, silencioso e traiçoeiro, os vazamentos e infiltrações de meu prédio também o são. Como os móveis de Anthony, que trocavam de lugar e desapareciam, é exatamente assim com a minha infiltração. Ora ela retorna para mostrar sua posição, ou simplesmente indica um lugar onde não estão mais. Ela quer me enlouquecer ou nosso mundo paradoxal já se encarregou disso? No filme, a equipe do diretor Peter Francis trabalhou com um ilusionismo para recriar, em termos de arquitetura, a perda da memória; meu apartamento também tem o dom de produzir a ilusão: falei que abri um buraco onde todos ao meu redor tinham a certeza de um vazamento, pois tamanho era o fungo e a umidade ao seu redor, abri, mas não encontrei nada. Como o protagonista do filme, nós, moradores, ficamos em estado de desorientação: onde está o vazamento? Vejo um vazamento dissolver as paredes de meu apartamento como Anthony vê dissolver sua identidade enquanto folhas balançam numa árvore em sua casa de repouso. Mas não é apenas meu apartamento que está se dissolvendo, é o próprio mundo.

Infiltração: entre Das Ding e Objeto

A Psicanálise possui um conceito interessante que gostaria de aplicar ao caso: é o de relação de objeto (disponível em https://abre.ai/nE3f). Ainda que seu sentido dominante seja o das representações internas desses objetos, eles podem, sim, envolver objetos físicos da realidade do sujeito. Freud coloca que o “objeto” é todo elemento externo ou interno que serve para a satisfação das pulsões, mas o problema está em reconhecer como eles se relacionam com a dinâmica psíquica de um sujeito. Se eles provocam estados emocionais intensos, se mostram fundamentais nos conflitos e frustrações. Se uma infiltração tem o poder de perturbar um morador de um prédio ou parte deles, é porque evocam sentimentos vivenciados em algum momento de sua vida e, nos termos de Freud, da relação primordial que todos temos na origem, na infância, mas que continuam nas interações que desenvolvemos ao longo da vida adulta em termos pós-freudianos. É o caso dessa infiltração, que está entrando em minha cabeça e me deixando louco. Quem leu minhas memórias em Sem indicação de importância (Clube dos Autores, 2025) sabe o quanto, por ser de origem pobre, lutei para conquistar as coisas ao meu redor, controlar os limites impostos a mim por minha condição social. Essa iniciativa infiltração mexe comigo porque não consigo controlá-la.

Mas que termos pós-freudianos são esses? Aí a coisa fica complicada porque é preciso ir ao pensamento de Jacques Lacan. Entendo que dois conceitos são aqui fundamentais. O primeiro é o “Das Ding” (disponível em https://abre.ai/nE3t) ou “Coisa” originária, um objeto primordial e absoluto que o sujeito experimenta como estranho, algo perdido e impossível de ser reencontrado. O segundo é “Objeto a” (disponível em https://abre.ai/nE3x), que, por sua vez, é o objeto-causa do desejo, representante dessa falta produzida pela linguagem, objeto parcial, específico, que pode ser representado por objetos reais ou simbólicos, mas que nunca satisfaz completamente o desejo. Essa infiltração que não vejo, não reconheço, não localizo em lugar algum é exatamente essa imagem distorcida daquilo que experimentamos como estranho, o Das Ding lacaniano, mas, ao mesmo tempo, funciona como meu Objeto a: é a causa de minha incomodação, de minha insatisfação com o mundo – ao menos o mundo de vida em meu prédio.   Ele possui a ambiguidade lacaniana de, ao mesmo tempo que ecoa como estranho, surgir como causa de um desejo sem solução. Tenho medo: essa infiltração é estranha, quero controlá-la, mas não consigo. Não é possível que um problema de um prédio mexa com o meu simbólico. Mas não estamos colocando-o em evidência no mundo desde o momento em que acordamos?

Consertar canos como sociabilidade

Quem quiser estudar o conceito de sociabilidade deveria investigar o que acontece quando há vazamentos e infiltrações nos apartamentos. Vivemos aglomerados em edifícios, mas pouco nos encontramos ou falamos nos prédios onde moramos. É a chamada vida moderna. Ela não é um tempo de sociabilidade, mas de extrema solidão. É o individualismo capitalista.  Lembro-me de uma passagem de Jean Baudrillard em que ele compara os conjuntos habitacionais a verdadeiros cemitérios urbanos. Prédios de apartamentos podem ser prédios com vida, com moradores que se relacionam entre si ou não, quando a rotina de trabalho os transforma somente em um lugar de descanso. Poucos moradores mantêm aqui relações de sociabilidade para além de bom-dia, boa-tarde, boa-noite. Eu morei em outros e era a mesma regra: cada um na sua. Quando Baudrillard disse aquilo, ele queria falar desse depósito humano em que se transformaram nossos prédios urbanos. As redes sociais e o streaming reforçam isso: os contatos sociais se reduzem. Tenho uma casa na praia: ali é normal meu vizinho me convidar para uma cervejinha no final da tarde ou uma janta ou o contrário. Aqui não.

Isso é quebrado pelo vazamento. Ele obriga os vizinhos a conversar entre si. Pelo menos conversar sobre seus problemas. Às vezes até fazemos conversas de corredor, mas é raro. Conversar sobre o prédio é como falar sobre o tempo no interior de um elevador: rompe o silêncio. Como toda edificação desse porte, ela exige ações de manutenção e conservação constantes, sobre as quais seus moradores conversam. Sabemos fazer isso em telhados, calhas, onde os problemas são mais visíveis. Fazemos isso na pintura do prédio ou na revisão da instalação elétrica, que eu mesmo, quando fui síndico, providenciei. Mas como fazemos para conservar o interior dos apartamentos de uma edificação antiga? Raramente temos acesso a plantas originais, e os materiais e técnicas construtivas antigas já não fazem parte das correntes contemporâneas da construção civil. Ainda que meu prédio não esteja tombado, ele representa um patrimônio histórico de certa época e vejo com tristeza prédios e casas contemporâneos a ele serem demolidos pela especulação imobiliária, com o apoio, inclusive, de autoridades públicas que deveriam lutar pela sua preservação, porque fazem parte da paisagem e são testemunho de realizações: sua preservação importa para as novas gerações.

A sociabilidade envolvida no pequeno gesto de comunicação que fazemos como moradores entre si para tentar resolver esse problema de infiltração é quase uma evolução da forma como nos relacionamos em prédios. Penso no livro Darwin vem a cidade: a evolução das espécies urbanas, de Menno Schilthuizen (Turner Publicações, 2019, disponível em https://abre.ai/nE0y) e penso que talvez sejamos apenas mais uma espécie entre outras que deixou de evoluir nas florestas para continuar evoluindo (ou não) nas cidades, nesses apartamentos. Assim como o autor diz que pássaros abrem nozes usando a passagem de carros como se fossem ferramentas, besouros são atraídos por garrafas de cerveja e borboletas mudam de cor por causa da poluição, o modo como resolvemos os problemas de infiltração ou vazamentos em nossos apartamentos seja apenas mais um teste para nossa evolução no planeta. Se a natureza aprendeu a se adaptar à cidade, nós também podemos nos adaptar a viver em prédios urbanos. Nos termos do autor, um prédio urbano é como uma espécie de formigueiro, e, da mesma forma em que eles estão repletos de inúmeras espécies adaptadas para viver dentro ou à volta deles (chamadas mirmecófilos), que existem há dezenas de milhões de anos a mais do que nós, em nossos prédios as famílias tomam seu lugar e cada uma, a seu modo, precisa se adaptar ao convívio, inclusive com seus problemas. Nesse sentido, se conseguimos resolver coletivamente e sem conflitos um problema de infiltração em nosso prédio, teremos, de certa forma, num mundo bipolar e marcado pelo conflito, evoluído como espécie, o que Schilthuizen remete à mesma esperança prevista por Paul McCartney. Ele diz que uma equipe alemã provou que, como predito pelo músico em “Blackbird”, canção gravada em 1968 no álbum “The Beatles”, também conhecido como “Álbum Branco”, em que se dizia que “melros urbanos estão cantando na calada da noite”, o que não acontecia à época da gravação, só décadas depois, agora somos nós, moradores envolvidos em um problema de infiltração, que, resolvendo em comum, também damos uma esperança à humanidade.

O cuidado da casa

Talvez, tanto quanto o próprio prédio, os apartamentos deveriam ser objeto de inspeções periódicas, verificação de elementos sensíveis. Reformamos sem pensar e, muitas vezes, furamos as paredes sem olhar. Os patrimonialistas chamam isso de conservação preventiva. Não fazemos isso, pois já somos uma sociedade que não pensa no futuro, mas somente no presente, uma sociedade presenteísta, como afirma Michel Mafessoli. Vivemos pelo presente e sequer damos valor à história. Eu sei que, como meu prédio é antigo, ele foi feito de formas diferentes das construções atuais. Ainda que tenham vigas de concreto armado, difere dos atuais por suas paredes largas e feitas de tijolos maciços, o que deixa difícil o acesso aos canos em seu interior. Seus banheiros não possuem a impermeabilidade dos atuais. Não podemos reclamar da técnica de sua construção: é tão boa ou melhor que as atuais, já que se preservou sem praticamente nenhuma grande rachadura. Pensamos que os materiais novos são mais fortes e mais duráveis: nada disso, já que se deterioram mais rápido. O pior fica quando precisamos de mão de obra experiente, difícil de ser contratada, seja para correções de telhado ou encanamento.

Quando abrimos nossa parede, vimos que a tubulação original é de ferro galvanizado, como são as de prédios antigos. Testamos para ver dificuldades do escoamento, mas nada; não verificamos dificuldade no escoamento de águas em torneiras, descargas ou ralos que poderiam significar entupimentos causados por ferrugem (corrosão nos tubos). “Deus, eu nunca pedi nada, mas agora eu peço: me ajude a achar esse vazamento, essa infiltração”, penso. O que descobrimos: que, num prédio antigo, o principal agente de degradação é o mais simples, a água: parece fácil tratá-la quando é uma troca de telha quebrada, mas infiltrações não. Como Patrick Bateman, personagem de O Psicopata Americano, de Bret Easton Ellis, minha infiltração é como o executivo que se infiltra na alta sociedade americana para levar a tragédia a uma cidade, exatamente como meu vazamento faz no prédio.

Pedreiros, empreiteiros e caça-vazamentos

Além de colocar em contato os moradores de um prédio, os vazamentos possibilitam outra forma de relação social. Desde que minha vizinha de apartamento de baixo apontou problemas de vazamento em seu apartamento, procuramos encontrar uma solução. A primeira tentativa de solução foi a reforma no box de nosso apartamento e do apartamento da vizinha de cima. É aí que novos atores sociais entram em cena, como diz o sociólogo Eder Sader. Descobrimos o mundo de hidráulicos, pedreiros, empreiteiros e caça-vazamentos que sobrevivem nas nossas cidades. O empreiteiro contratado por ambos os apartamentos fez uma análise visual de todos os apartamentos envolvidos e diagnosticou que os problemas eram os boxes de ambos os apartamentos. Foi então providenciada a reforma. Tempos depois, fomos surpreendidos pelo testemunho da vizinha de baixo de que as reformas não tinham tido sucesso e que o vazamento continuava. Fui atrás de especialistas, os chamados caça-vazamento.  Fiz isso porque entendia que estávamos enfrentando um vazamento de difícil localização, já que as medidas adotadas não resultaram na solução do problema. Era preciso um caça-vazamentos.

Eu gosto do nome destes profissionais, pois me lembram os personagens do filme Caça-Fantasmas (Dir. Ivan Reitman, 1984). No clássico filme, um grupo de cientistas excêntricos e destemidos se une para combater entidades invisíveis que perturbam a tranquilidade de Nova York. Aqui eu procuro profissionais destemidos, os tais caça-vazamentos, para combater as infiltrações que perturbam minha paz. Ambos usam equipamentos inovadores, mas os segundos não precisam da coragem dos primeiros, mas de muita paciência. Esses caça-vazamentos são a versão moderna e muito mais prática desses heróis invisíveis. Em vez de fantasmas, o inimigo são as infiltrações silenciosas, as goteiras escondidas e as manchas que ameaçam danificar estruturas, móveis e a qualidade de vida dos moradores do meu prédio. Como os Caça-Fantasmas, os Caça-Vazamentos possuem ferramentas especializadas: câmeras térmicas, aparelhos de ultrassom e sensores que detectam o que os olhos não veem.

Enquanto na tela o desafio é capturar o sobrenatural, na vida real o desafio é capturar o fantasma da água invisível. Eles surgem das paredes, dos encanamentos e das lajes, causando transtornos que só quem já enfrentou entende a dimensão do problema. Assim como os cientistas do filme, os caça-vazamentos precisam de conhecimento técnico, paciência e um olhar aguçado para identificar a fonte do problema e executar a solução definitiva. Os Caça-Fantasmas compartilham com os Caça-Vazamentos a mesma missão: proteger o espaço onde as pessoas vivem, restaurar a segurança e a tranquilidade, enfrentando desafios que a maioria não vê — sejam espectros assustadores ou infiltrações furtivas que ameaçam o lar. Ambos transformam o invisível em visível para que a vida possa seguir em paz. A ficção inspira a realidade ou é o contrário?

É sempre uma forma de conhecimento e saber que está em discussão. Como na citação de John Gardner que abre este ensaio, toda a filosofia pode ser vista por meio do modo como é feito o diagnóstico de infiltrações realizado por encanadores e por empresas especializadas em caça-vazamentos. Eles apresentam diferenças importantes, sobretudo no método utilizado para localizar o problema. Enquanto os encanadores costumam basear seu diagnóstico na experiência e na intuição adquirida ao longo do trabalho prático, as empresas caça-vazamentos adotam uma abordagem científica, utilizando equipamentos específicos para identificar com precisão o ponto da infiltração; enquanto os primeiros possuem insights de forma rápida e direta, os segundos demandam tempo de investigação e experiência técnica; os primeiros são subjetivos, os segundos, racionais. Não se resumem à formulação de hipóteses, como o primeiro, precisam da validação em métodos científicos, como os segundos. 

Vejo isso no comportamento dos profissionais que vieram ao meu prédio, que valorizaram os sinais visíveis, como manchas de umidade, mofos e aparentes fissuras nas paredes, confiando no conhecimento empírico que possuem e na observação direta para determinar a possível causa do vazamento. Isso não deve ser desprezado nos termos de Gardner, mas pode não ser suficiente, como entendo ser o caso. Essa abordagem é intuitiva, rápida e econômica, porém depende muito da habilidade individual do profissional e pode levar a imprecisões ou a intervenções desnecessárias, como foi o caso da reforma do box e abertura da fachada. Não queremos quebrar desnecessariamente para encontrar o problema.

A lógica da caçada como princípio

Procuro um vazamento em meu apartamento. Eu o caço. Procuro instrumentos que me possibilitem ver por meio das paredes. Encontro o Walabot DIY, um scanner de parede que utiliza um sensor 3D e tecnologia de ondas de rádio para detectar fiações elétricas, canos e outras estruturas dentro de uma parede e exibe uma imagem detalhada no ecrã do telemóvel por meio de uma aplicação dedicada, como um raio-X. É como a live-shot.com, o site da internet inaugurado em 2004 por John Lockwood, que permitia, por alguns dólares, por meio de uma câmera numa arma de fogo móvel, sem sair de casa, abater animais vivos em um rancho no Texas. Eu quero esta máquina para caçar meu vazamento, e eis eu, da insignificância de meu apartamento, inserido em escala reduzida no mesmo tipo de guerra protagonizada pelos Estados Unidos depois do 11 de setembro. Se os Estados Unidos podem se organizar internamente para caçar homens nas ruas de países considerados inimigos, eu poderia caçar meu vazamento. Os princípios são os mesmos: identificação, rastreamento, localização e captura que, se nos Estados Unidos era a eliminação física de oponentes em cidades distantes, no meu apartamento significava o extermínio de um vazamento pela realização de uma obra. Em ambos, a definição clássica de Clausewitz, de guerra como duelo, de dois lutadores que se enfrentam em situação de igualdade, é substituída pelo paradigma do caçador e da presa, um que avança e outro que foge e se esconde. Nela, meu vazamento, quase consciente de si, foge para evitar sua captura. Minha goteira só tem vencido porque tem tido sucesso em fugir de mim, por isso, como em qualquer caçada, eu preciso primeiro identificá-la e localizá-la. Se, na guerra global, utiliza-se vigilância aérea por vídeo, na guerra doméstica, também. Quero muito o Walabot; essa é a nova forma de resolução dos conflitos, em que se faz o cálculo preditivo para eliminação profilática. Meu vazamento me ensina, por isso, muito sobre a sociedade: se a guerra por drones, por redes sociais, por dentro do governo, como vem fazendo a direita, por projetos de lei escusos e antiéticos tem uma característica comum, é a de serem uma estratégia de defesa social de grupos, como minha estratégia é a defesa privada. Foi assim que a direita tentou eliminar Eduardo Bueno, como mostrei no artigo anterior (disponível em https://abre.ai/nEww). Mas, se começarmos a viver num mundo de caça, com predadores e presas, para onde irá a cidadania?


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

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*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: : Meta IA

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