Se os Olhos da População Ardem, Meu Bem, o que a Desindustrialização tem com Isso?

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Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*

Introdução: tudo e nada

Estou que não me contenho em mim, em si e para si de tanta alegria, revisando as provas do livro que sairá em breve sobre a “Estrujuntura Brasileira”. E já estou na campanha pela presença dos amigos no lançamento na Feira do Livro desse ano. Nisso, encontro um dos meus leitores mais atentos e qualificados e anuncio a efeméride (cuja data, apesar da promessa no artigo anterior, ainda não sei). E ele responde que não faltaria de forma alguma, pois concorda integralmente com “minha” tese que – segundo ele – seria: ou o Brasil se reindustrializa, ou estamos fadados ao fracasso! Ele só não estaria convicto da “minha” segunda assertiva, de que, para reindustrializar, precisaríamos desvalorizar o real. E, alegando um compromisso urgente, foi-se embora apressado.

E lá fiquei eu com aquela cara de “ah, é, é?” Cara de: como assim? eu disse isso? onde? como? quando? por quê? … E com vontade de gritar: Volta aqui! Não me abandone com essa dúvida. Onde foi que eu escrevi que sem reindustrialização não há solução?

Mas acho que encontrei a resposta sozinho. Eu realmente digo (nos textos publicados na RED, que são a base do livro que logo sairá do “forno”) que a principal diferença entre nossos “Anos Dourados” (entre 1932 e 1980) e nossa “Estrujuntura Perversa” (de 1981 a 2024) encontra-se em dois marcos indissociáveis: 1) no primeiro período, a taxa média anual de crescimento do PIB foi de 6,71%, e, no segundo, foi de meros 2,17% a.a.; 2) no primeiro período, a economia era puxada (e empurrada) pela Indústria de Transformação (IT, que crescia a 9,03% ao ano, em média), enquanto, no segundo, a IT é o vagão mais lento do comboio e atrasa todos os demais, com um crescimento  médio de 0,89% ao ano. … Então, não está errado derivar desses dados que a retomada do crescimento global envolve acelerar o vagão mais lento; vale dizer, ampliar a taxa de crescimento do produto e a taxa de acumulação (investimento) da Indústria de Transformação.

Mas meu amigo-intérprete deu um passo a mais quando pretendeu que a solução seria nos “reindustrializarmos”. Eu não disse isso! Por quê? Porque, desde logo, esse termo é ambíguo. O que significa reindustrializar? Voltar a ter a mesma estrutura industrial da década de 70? Como se o mundo todo não tivesse dado inúmeras “voltas e cambalhotas” no último meio século! Recuperar a participação da IT no PIB do início dos anos 80, em torno de 25% do total? Se é isso que se pretende com o termo “reindustrialização”, estoy fuera (como dizem os gaudérios fronteiriços); ou “me inclui fora dessa” (como diz um querido amigo, metido a piadista crônico). Essas são metas impossíveis na divisão internacional do trabalho do mundo globalizado. Digam o que disserem os críticos do agronegócio (apelidado por tantos de “ogro-negócio”), a verdade é que o Brasil tem vantagens competitivas estruturais no segmento e ele continuará cumprindo um papel central na inserção produtiva nacional dentro da nova estrutura econômica global. Daí não se extrai que devamos capitular à “commoditização” ou projetar uma participação coadjuvante à IT. Mas se extrai, sim, o reconhecimento de que qualquer projeto viável de “reindustrialização” passa pelo engate da nova indústria aos setores produtivos primários (agricultura, pecuária, mineração), onde o Brasil é um player de grande expressão internacional. Ou nos termos do debate: qualquer retomada da participação da IT deve ser pensada e planejada enquanto uma nova IT, com outra estrutura e com outra participação relativa no PIB.

Mas antes de tratarmos da “reindustrialização” possível e necessária, é preciso definir qual é o “busílis” da questão. Qual é o problema que reputo central, qual é o foco que, acredito, deve guiar o planejamento do desenvolvimento nacional.

O Busílis da Questão

A mensagem que venho tentando passar em meus trabalhos recentes – e que eu caracterizaria como “o foco” dos artigos sobre a “Estrujuntura Perversa” – é dúplice: 1) precisamos crescer a taxas superiores à taxa média dos últimos 44 anos (2,17% a.a.); para ser mais exato: precisamos crescer a taxas próximas de 5% a.a. se quisermos realizar as reformas necessárias à plena inclusão social dos estratos de renda mais baixos da população; 2) para voltar a crescer de forma acelerada, precisamos parar de olhar cada problema como se ele fosse um ponto específico, passível de ser superado sem uma mudança global, sistêmica, profunda. Explico-me.

    Imagine uma economia muito simples com uma renda de 100 bilhões (ou trilhões) de uma unidade monetária qualquer. Imagine que os 10% mais bem aquinhoados dessa economia aufiram 1/3 da renda total; o estrato imediatamente inferior, corresponde a 20% da população e aufere outro 1/3 da renda total. Restaria, assim, para os 70% mais pobres apenas um terço da renda. Imagine que essa porção mais pobre aufira, em média, 20 mil unidades monetárias (por exemplo, reais) ao ano e, portanto, um pouco menos de R$ 1.600 reais ao mês. Imagine, ainda, que o rendimento necessário para garantir acesso pleno à cesta alimentar e à aquisição de casa própria, medicamentos, telefone, transporte etc. seja de R$ 3.000 ao mês (em torno de R$ 38 mil ao ano). Se a economia crescer a 2,17% ao ano e se não houver, nem redistribuição, nem concentração de renda, os 70% mais pobres da população só chegariam a obter o rendimento médio necessário à segurança alimentar e habitacional após 30 anos. Vale dizer, toda uma geração viverá abaixo das condições de bem-estar efetivo.

    O problema é que – sabemos todos! – as relações de trabalho vêm se alterado de forma acelerada no capitalismo contemporâneo, e as alterações em curso trabalham no sentido do aprofundamento das desigualdades. Ou seja: no plano das tendências imanentes ao sistema, deixado a si mesmo, o que se projeta para a o futuro imediato no interior da ordem capitalista seria um aprofundamento da concentração. Nos termos do exemplo acima: a parcela apropriada pela porção mais pobre da população cresceria abaixo do padrão médio. Imaginemos que o crescimento da renda dos 70% mais pobres seja de apenas 1,5% a.a.. Quantos anos seriam necessários para que a renda chegasse (em termos reais, descontada a inflação) ao patamar de R$ 3.000,00 mensais? Exatos 42 anos e seis meses.

    Imaginemos, agora, que os governos operem no sentido oposto às tendências de mercado e adotem políticas ousadas de redistribuição de renda, ampliando a cobertura do Bolsa Família e dos programas de habitação (tipo Minha Casa, Minha Vida), de saúde pública gratuita (SUS) e de Previdência Social em geral. E que, em apenas dez anos, o estrato inferior da população atinja a meta de R$ 3 mil reais mensais. Para tanto, a renda efetiva do estrato que (em média) aufere, hoje, R$ 1.600 teria que crescer a 6,5% ao ano. … Qual o problema?

    O problema é que a renda total, a renda global, está crescendo a meros 2,17% a.a., de forma que ela terá crescido 24% ao longo desses dez anos. Mas a renda da porção mais pobre da população teria crescido 6,5% a.a., de sorte que, ao final de dez anos ela passará a corresponder a pouco mais de 50% da renda total. Mas isso não é tudo. Nem mesmo o principal. Como a renda total cresceu 24% em dez anos, o crescimento da renda da população mais pobre só poderia alcançar esse patamar em dez anos caso a renda dos estratos superiores da população (que auferiam dois terços da renda total no início do período, e agora auferem, em conjunto, apenas 50%) decaísse em termos absolutos ao longo da década. Para ser mais exato: ao fim da década, a renda absoluta da população mais bem aquinhoada corresponderia a aproximadamente 90% do que esse segmento recebia no início do período. Isso é possível? Teoricamente, sim. Na prática, em um país como o Brasil, tão acostumado a séculos de latifúndio e escravidão, os “meritocratas” do andar superior não permitiriam tal transição. Ela seria classificada como paternalismo, compra de voto e corrupção. E um tal governo seria “lavado a jato”.

    Por oposição, se a renda global (vale dizer, o VAB e o PIB da economia) crescesse a uma taxa próxima a 5% a.a., a renda dos 70% mais pobres poderia crescer a 6,5% a.a. durante dez anos sem que os estratos superiores perdessem renda em termos absolutos. Ao fim do período, a renda do “andar de baixo” teria sido multiplicada por algo próximo a 1,8 vezes e a participação desse estrato na renda total teria passado de 33,3% para algo em torno de 38%. Mas a renda do “andar de cima” também teria crescido, aproximadamente 50% em termos absolutos, correspondendo, agora, a 62% da renda total. Isso, sim, é politicamente factível num país como o Brasil.

    Poderíamos estar pautando uma taxa de crescimento menor? Sim, sem dúvida. Mas é preciso entender, um elemento da maior importância: se houve algum equívoco na avaliação de Marx das tendências globais do capitalismo esse equívoco foi ter previsto para o final do século XIX e início do século XX um processo de automação que começou a se manifestar efetivamente no último quartel do século XX e que vem se acelerando e ganhando uma velocidade assustadora no primeiro quartel do século XXI. A automação que Marx viu emergir na indústria têxtil não alcançou ser universalizado para o setor mais importante da maquinofatura – o segmento metalmecânico (e, posteriormente, como uma derivação desse, o eletroeletrônico) – antes da emergência das máquinas de controle-numérico e da robótica. É só agora, no século XXI, que a negação do trabalho – e, por extensão, a precarização virtualmente universal, o que Marx chamava de lumpenização geral – está se realizando. Ora, nesse quadro, a manutenção de pelo menos uma parte da população em condições de trabalhar em empregos de alta qualidade só é possível se a taxa de crescimento da economia for expressiva.

    O argumento de que o mundo todo está crescendo a taxas menores é, em grande parte, enganoso. Nos últimos 50 anos, quando dizemos que a China cresce “pouco”, estamos dizendo que ela saiu dos dois dígitos (acima de 10% a.a.) para algo em torno dos 5% a.a.; a taxa que estamos almejando para o Brasil. E essa também tem sido a taxa de crescimento dos novos emergentes do sudeste asiático, no eixo que vai da Índia a Taiwan, passando por Bangladesh, Tailândia, Malásia, Cingapura, Indonésia, Camboja e Vietnã. Os países com menores taxa de crescimento no mundo são os países maduros, são os países que fazem parte do G-7 assim como as economias da União Europeia, cuja dinâmica é comandada pelas antigas (e envelhecidas) locomotivas do continente: Alemanha, França, Bélgica, Holanda e (agora, fora da UE) Reino-Unido. E mesmo no âmbito da UE, as economias ainda não totalmente amadurecidas e que operam com taxas de salário relativamente menores vêm apresentando taxas de crescimento muito superiores à média brasileira. Entre 1995 e 2025 a taxa média anual de crescimento da Polônia foi de 3.94% a.a. E a taxa média anual de crescimento da Irlanda entre 1996 e 2024 foi de 5,63% a.a. Alguém poderia argumentar que esses países foram beneficiados pela extroversão manufatureira das economias já industrializadas, aproveitando-se das vantagens da homogeneização fiscal e, de forma crescente, a homogeneização monetária da UE. Sim, é fato. Mas o Brasil também conta com unidade aduaneira no Mercosul e cumpre um papel de grande importância na criação e na gestão dos BRICS. E nem por isso vem conseguindo sequer aproximar suas taxas de crescimento econômico daquelas que caracterizam a periferia europeia e as maiores economias dos BRICS. Está muito longe disso.

    A questão da “reindustrialização”

    E é aí que entra a questão industrial. Nos anos de “Estrujuntura Positiva” – nossos Anos Dourados – era a Indústria em Geral e a Indústria de Transformação, de forma particular, que puxava(m) o crescimento da economia como um todo. Nos últimos quarenta e quatro anos, a Indústria de Transformação cresceu, abaixo de 1% a.a.. E isso, a preços constantes (vale dizer: em volume, em quantidade). A preços correntes o desempenho da IT é ainda pior. E é a dinâmica em valor (vale dizer: em “lucros”) que orienta as decisões de investimento e, por consequência, as decisões de inovação. Mais: a pequena recuperação da participação da IT no VAB a preços correntes só emerge quando o dólar volta a se valorizar – levando a uma desvalorização relativa do real –, a partir de meados de 2018. Exploramos e procuramos demonstrar esse ponto crucial nos artigos sobre a “Estrujuntura Perversa” publicados na RED, em especial aqui e aqui.  

    Ou seja: o ponto central não é propriamente a retomada da indústria. Esse não me parece ser um valor em si e por si. O ponto central é que, objetivamente, a nossa taxa de crescimento global é baixa porque a taxa de crescimento da indústria tem sido ínfima. E esse setor “reverbera” sobre os demais. Nos mais diversos sentidos. Ele é um segmento que gera alguns dos melhores (e mais seguros) empregos. Ele é uma base importante de exação fiscal, tendo em vista o fato de ser estruturalmente concentrado. Ele é a sede crucial da transformação de desenvolvimentos científicos em inovações tecno produtivas. E, nesse sentido, ele alimenta o processo de generalização, difusão e controle nacional dos processos de inovação – e ganhos de produtividade – nos mais diversos setores. Uma IT estagnada fere a economia pelas mais diversas dimensões: na geração de emprego e renda, na geração de demanda agregada interna, na geração (ou, pelo menos, na exação) de recursos fiscais, na ampliação dos déficits comerciais e exportação dos estímulos de demanda, na perda de competência e competitividade tecnológica etc.  Ela não é um fim em si. Ela é um meio – mas um meio importante – para que voltemos a contar com as taxas de crescimento econômico necessárias para enfrentarmos e superarmos a pesada dívida social do Brasil.

    Por isso mesmo, ela sequer é um objetivo de longo prazo. O crescimento a qualquer custo não é um objetivo em si. Por mais não seja, pela necessidade de respeitarmos o nosso exaurido Planeta. … Porém – e de outro lado – pretender que seja possível redistribuir renda no Brasil com uma taxa de crescimento de 2,17% a.a. é brincar de avestruz e subestimar a força dos adversários e superestimar o poder da “vontade política”.

    O problema do raciocínio “por partes”

    O problema do Brasil não é pontual. Não se reduz às baixas taxas de crescimento, à concentração da renda, à desindustrialização, aos juros escorchantes, à baixa taxa de investimentos, à falta de cultura inovativa, ao déficit crônico na Balança de Transações Correntes, à inflação persistente e acima da média mundial (a despeito do Plano Real). O nosso problema são todos esses problemas, simultaneamente. E mais alguns. Especificamente no plano econômico, vejo um outro grande problema, usualmente desconsiderado ou subdimensionado: a dificuldade dos economistas em superarem o raciocínio do tipo coeteris paribus (vale dizer: supondo tudo mais constante).

    A turma do coeteris paribus é a turma do “basta diminuir a taxa de juros”; “basta mudar a política industrial”; “basta mudar a estrutura tarifária”; ou “basta apoiar a inovação e o empreendedorismo”. Não existe esse tal de “basta isso ou aquilo”. E não existe exatamente porque “tudo o mais se recusa a ficar constante”. Em dois sentidos: seja porque a pequena mudança alimenta um tsunami; seja porque a pequena mudança é tão pequena que é imediatamente destruída e sufocada pelas mudanças (determinadas por tendências do sistema) do “tudo o resto inconstante”. Dois exemplos.

    Há muitos que pretendem que “o” – artigo definido singular – problema do país seria a taxa de juros elevada. Eu a vejo como um dos nossos vários problemas. A vejo como um instrumento (péssimo, perverso, excludente) de enfrentamento do déficit crônico em Transações Correntes e um instrumento de controle da inflação via sobrevalorização do real. Essa estratégia se desdobra em desindustrialização, baixo crescimento, baixo investimento, crescimento das importações de bens e serviços acima do necessário, crescimento das exportações de bens e serviços abaixo do necessário, financeirização e depressão da capacidade de gastos sociais e investimentos governamentais. Um sistema interligado.

    Mas – poder-se-ia perguntar – rebaixar a taxa de juros não resultaria, então, em desdobramentos positivos: desvalorização, reindustrialização, depressão do déficit em BTC etc.? Não! Pois ela resultaria, primeiramente, em elevação da inflação, especulação cambial, depressão das reservas e desestruturação da confiança na economia e na gestão pública. Se ela é tomada como um problema separado dos demais, seu enfrentamento não leva a solução alguma: levaria ao caos. E, aqui, um ponto crucial que – aparentemente – escapa até a economistas de excelente formação teórica: os juros NÃO são mantidos elevados para deprimir a demanda agregada e controlar a inflação via desemprego (a chamada “Curva de Philips”). Sua função é atrair hot money (ou cercear a saída do mesmo, em movimentos especulativos contra o real). Por isso mesmo, tem mais razão aqueles críticos das taxas escorchantes que as veem como um mecanismo de sustentação de ganhos financeiros especulativos e de contenção da capacidade de gastos e investimentos governamentais, através da imposição de transferências do Tesouro para o Sistema Financeiro. Mas ambas as interpretações críticas são limitadas pelo mesmo viés: a redução da política monetária à incompetência e/ou corrupção dos gestores. Para esses críticos, bastaria substituir os gestores ignorantes e/ou comprometidos com a especulação para que tudo se resolvesse. … Mais uma vez, incorre-se no pecado maior da “Ciência Econômica”: oraciocínio coeteris paribus.

    Outros tantos veem “o” problema nas políticas industriais insuficientes e na baixa cultura inovadora. E pedem mais e melhores políticas industriais e de apoio à inovação. Pedem – na bela imagem do Bresser-Pereira – mais panos para enxugar o gelo. Enquanto deixam a indústria derreter ao sol de um câmbio sobrevalorizado. E enquanto o governo é engessado por uma política monetária e fiscal (baseada em pesados subsídios de “apoio industrial) cronicamente inviável.

    O que nossos “inovacionistas” parecem não entender é que o crescimento nos nossos Anos Dourados só se deu com base na Indústria de Transformação porque ela inovava. E muito. Lembrem-se que o país vivia sob crônico constrangimento cambial, o que deprimia sua capacidade de importar máquinas e insumos industriais. Mas, mesmo assim, a IT crescia a taxas quase “exorbitantes”. Porque inovava. E o fazia mesmo quando os sistemas públicos de apoio à inovação eram (ainda mais) incipientes do que são hoje.

    Mas o maior problema dos “inovacionistas” encontra-se na dificuldade em entender a peculiaridade do padrão produtivo e competitivo da IT. A baixa flexibilidade dos sistemas produtivos industriais (ao contrário dos sistemas produtivos agropecuários, muito mais flexíveis), os enormes ganhos de escala e escopo que a caracterizam (que envolvem grandes investimentos e grandes – e poucos – concorrentes) e a velocidade do progresso técnico em seu interior exponenciam a incerteza/risco imanente a investimentos no segmento. Essa incerteza/risco não pode ser superada com políticas industriais. Pelos mais diversos motivos. Mas, antes de mais nada, porque políticas industriais são governo-específicas. Troca-se o governo e troca-se a política. Mas os investimentos em capital fixo são … fixos. Como o nome mesmo diz. Logo, precisamos de uma âncora expectacional. A âncora que perdemos: a âncora cambial. Entre 1930 e 1980, fosse quem fosse o gestor da nação – de Vargas a Geisel, passando por Dutra, JK, Jânio, Jango, Castelo etc. – havia algo claro: as importações foram, são e continuarão sendo caras.

    Mas porque é tão difícil escapar das leituras pontuais, da identificação de “um único problema” e, por extensão, de “uma única solução” para todos os problemas? Ora, desde logo, o raciocínio totalizante é de maior complexidade. E não porque ele exija que se leve tudo em consideração com o mesmo peso simultaneamente. O raciocínio totalizante não se fecha a hierarquizações. Mas a hierarquização não é pré-determinada. Ela é um resultado, um ponto de chegada! Um exemplo ajudará na compreensão do argumento.

    Recentemente, assisti a uma exposição sobre a estrutura produtiva gaúcha e o sistema regional de inovação no Rio Grande do Sul. Os expositores, como regra geral, mostravam-se felizes e envaidecidos com os dados apresentados. E sobra razão para tanto. Os palestrantes lembraram – cada um, em seu momento de fala – que, apesar do RS contribuir com apenas 6% do PIB nacional, o Estado responde por 13% da produção científica, 12% das inovações, conta com 10% das startups nacionais, recebe 15% dos financiamentos para a inovação industrial (via FINEP), conta com a única fábrica de microchips do Brasil (o CEITEC) e conta com alguns dos melhores, mais qualificados e mais produtivos Parques Tecnológicos do país, sediados em centros universitários de excelência. Sem dúvida, há muitas razões para orgulho e é preciso apoiar, dar sustentação e qualificar ainda mais um sistema inovativo tão rico. Estamos todos de acordo.

    Porém, é preciso ter coragem para olhar outras dimensões da realidade do RS. Nos 44 anos em que o Brasil cresceu meros 2,17% a.a., a dinâmica econômica do RS foi ainda inferior, em quase 0,7 pontos percentuais. Nos últimos 20 anos, a dinâmica estadual ficou 1 ponto percentual abaixo da média nacional. O RS é o Estado com o pior desempenho demográfico do Brasil há 50 anos. Santa Catarina, nosso Estado irmão e vizinho, tem a mesma pirâmide etária, mas apresenta uma das melhores performances demográficas do país (abaixo, apenas, de alguns poucos Estados da Região Norte, de ocupação recente). Mais de 60% da área do Estado do RS é ocupada por municípios que perdem população em termos absolutos a cada ano que passa desde, pelo menos, o início do século XXI.  Com a depressão populacional, cai o consumo. E o comércio e os serviços – os dois segmentos mais empregadores da economia – se ressentem. Algumas firmas abrem falência e demitem, aprofundando a depressão do consumo e o êxodo populacional.

    Agora, juntemos os pontos, por favor. O sistema inovativo gaúcho é exemplar, um dos melhores do Brasil. Nossa performance econômica é medíocre e está abaixo da medíocre performance nacional. O que se deve concluir? Que o “gargalo” do nosso crescimento não se encontra no sistema inovativo? Que não basta qualificá-lo ainda mais para resolver nossos – NO PLURAL, PLISS! – problemaS? … Sim? …. Ótimo! Compungido, agradeço. E onde está o gargalo? Podemos refletir sobre isso? … Pliss!


    *Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.

    Ilustração de capa: IA

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