Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumiu novamente um papel de destaque no cenário internacional ao abrir, em setembro, a 80ª Assembleia Geral da ONU. Em um discurso firme, amparado por dados e repleto de posicionamentos contundentes, Lula denunciou desigualdades globais, cobrou coerência das potências ocidentais e reafirmou o compromisso do Brasil com a democracia, a justiça social e a preservação ambiental. Mas não se limitou ao palco institucional: sua passagem por Nova York também gerou repercussão diplomática ao receber elogios públicos de Donald Trump, atual presidente dos Estados Unidos.
“Uma excelente química”, disse Trump sobre o breve encontro com Lula nos bastidores da ONU. A declaração, seguida do anúncio de uma reunião bilateral “na próxima semana”, acendeu alertas e especulações sobre os rumos da política externa brasileira. Para além do gesto diplomático, há interesses em jogo — e riscos reais.
Enquanto acena para o diálogo, Lula articula alianças multilaterais em novas bases, buscando reformar o sistema internacional por meio da cooperação entre países historicamente marginalizados. A estratégia brasileira já começa a gerar resultados concretos.
Fome, ganância e hipocrisia internacional
Lula voltou a apontar a fome como um problema político, não natural. “A fome voltou ao mapa do mundo não por falta de comida, mas por excesso de ganância”, afirmou diante da Assembleia. Sua fala denuncia a lógica perversa que rege o mercado global de alimentos, em que o lucro é colocado acima da vida. O presidente também atacou o sistema financeiro internacional, que impõe juros abusivos aos países pobres e compromete sua soberania econômica.
O embargo a Cuba foi classificado como “desumano, injusto e inaceitável”. Lula acusou os países ricos de hipocrisia por sustentarem sanções que atingem diretamente a população civil, ao mesmo tempo em que discursam em defesa dos direitos humanos. A crítica ecoou entre os países do Sul Global e marcou um dos momentos mais aplaudidos de sua intervenção.
Ambientalismo com soberania
No campo ambiental, Lula apresentou resultados concretos: o desmatamento na Amazônia caiu mais de 40% em 2025, conforme dados do INPE. Mas rejeitou tentativas de imposição externa. “Não terceirizamos responsabilidades nem abrimos mão da nossa soberania”, afirmou. O Brasil, segundo ele, cumprirá suas metas climáticas, mas exige que os países desenvolvidos façam o mesmo, inclusive no financiamento da transição ecológica.
Esse posicionamento articula responsabilidade ambiental com autonomia política — um equilíbrio necessário em tempos de crescente pressão internacional sobre os países amazônicos. Ao fazê-lo, Lula resgata uma tradição diplomática brasileira de busca por equilíbrio entre cooperação e autodeterminação.
Paz, Palestina e armas nucleares
Em um dos trechos mais sensíveis do discurso, Lula tratou da escalada do conflito entre Israel e Palestina. Condenou a ocupação dos territórios palestinos, pediu o fim dos ataques contra civis e defendeu a retomada das negociações de paz. “A paz exige coragem. O mundo não pode se acostumar com a guerra como norma política”, advertiu, num raro posicionamento claro entre os líderes ocidentais.
Também cobrou a desnuclearização global, questionando os gastos trilionários em armamentos diante da persistência da fome e da falta de acesso à água potável. Essa crítica rompe com a lógica da segurança baseada na força e reafirma a tradição diplomática brasileira de defesa do desarmamento.
Reformas multilaterais e papel do Brasil no G20
Lula propôs reformas nos organismos internacionais, como a ONU e o FMI, com o objetivo de ampliar a participação dos países em desenvolvimento. Denunciou a concentração de poder nas mãos de poucos e apontou a necessidade de uma governança global mais equitativa. Sob sua presidência do G20, o Brasil tem buscado articular consensos e propor uma agenda baseada em justiça social, sustentabilidade e combate às desigualdades.
Seu discurso foi bem recebido por líderes latino-americanos, africanos e por parte da diplomacia europeia, consolidando sua imagem como articulador do Sul Global num contexto de polarização e fragmentação internacional.
Iniciativa Global sobre o Direito Internacional Humanitário
Entre os pontos altos do discurso, Lula destacou a adesão crescente à Iniciativa Global para Galvanizar o Compromisso Político com o Direito Internacional Humanitário — também conhecida como Iniciativa Global sobre o DIH. Lançada há um ano, a articulação já conta com 89 Estados signatários, dos quais 27 co-lideram ativamente o processo. O Brasil está entre esses articuladores centrais.
A proposta visa fortalecer o respeito às normas humanitárias internacionais, promover a responsabilização por crimes de guerra e proteger civis em conflitos armados. Mais do que uma declaração de intenções, a iniciativa representa um esforço concreto para reconstruir a legitimidade do direito internacional em tempos de militarização e impunidade. O apoio crescente de países do Sul Global revela a potência diplomática do Brasil quando aposta na articulação multilateral com base em princípios.
Trump e Lula: aproximação ou armadilha?
A declaração de Donald Trump sobre a “excelente química” com Lula gerou repercussão imediata. A expectativa de uma reunião bilateral pode indicar uma tentativa de reaproximação entre os dois países, após anos de instabilidade nas relações. Um eventual fim de sanções comerciais impostas pelos EUA — especialmente aquelas aplicadas após a tentativa de golpe de Jair Bolsonaro — beneficiaria setores exportadores brasileiros e ampliaria a margem de manobra diplomática do governo.
No entanto, o histórico de Trump sugere cautela. O atual presidente dos EUA já expôs líderes estrangeiros a situações embaraçosas, como ocorreu em 2025 com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, e anteriormente com o sul-africano Cyril Ramaphosa. Em ambos os casos, Trump utilizou encontros diplomáticos para fazer acusações infundadas e declarações hostis diante das câmeras.
Diante disso, Lula precisará conduzir com habilidade a possível reunião: mantendo canais abertos, mas sem ceder à lógica do confronto performático ou da submissão. O Brasil não pode se prestar ao papel de figurante num jogo de interesses que não dialoga com seus princípios históricos.
Por fim, caso se confirme o clima de cordialidade e respeito mútuo entre Trump e Lula, com a suspensão e/ou não aprofundamento das sanções comerciais ao Brasil, será quase uma pá de cal sobre o bolsonarismo ou, pelo menos, sobre as articulações de Eduardo Bolsonaro contra o Brasil. Depois das derrotas recentes dos bolsonaristas no Brasil, soma-se agora a “derrota” frente a Trump, com a declaração de simpatia feita a Lula.
*Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Foto da capa: Lula discursa na 80ª Assembleia Anual da ONU com boné O Brasil é dos Brasileiros – Imagem gerada dos IA ChatGPT
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