Por BENEDITO TADEU CÉSAR* – versão atualizada
Ontem, o país assistiu a uma onda de manifestações de larga escala contra a PEC da Blindagem (ou “da impunidade”, como tem sido chamada) e contra a proposta de anistia aos envolvidos na tentativa de golpe à democracia em 8 de janeiro de 2023. Foram grandes mobilizações, registradas em todas as unidades da Federação, que revelam tanto o receio de retrocessos autoritários, quanto a vitalidade de setores da sociedade civil dispostos a defender o Estado Democrático de Direito.
Um caráter “espontâneo”, sem liderança político-partidária visível
Apesar da presença de partidos, sindicatos e organizações políticas, as manifestações tiveram um traço marcante: a ausência de uma convocação institucional centralizada, o não predomínio de discursos de representantes políticos e de bandeiras hegemônicas entre o público. Em Porto Alegre, não houve discursos de lideranças partidárias ou aparato logístico robusto, sequer havia carro de som.
O impulso parece ter vindo das redes sociais, alimentado por artistas de grande alcance e por um senso comum de indignação. Esse traço confere às manifestações um caráter quase “espontâneo”, em que a participação popular emergiu mais da consciência democrática coletiva do que de estruturas organizativas formais.
Esse tipo de movimentação, por mais desestruturada que possa parecer, mostra que a sociedade reage quando percebe riscos reais ao pacto democrático. E mostra, também, que figuras culturais com reconhecimento nacional — músicos, atrizes, cineastas, escritores — seguem desempenhando papel relevante na ativação política do país.
Comparações com o passado: lições e diferenças
A história recente oferece marcos importantes para pensar o presente. As Diretas Já, em 1984, foram fruto de uma articulação estratégica entre lideranças de diversos partidos democráticos, movimentos sociais e setores organizados da sociedade. Percorreram o país com um roteiro claro de mobilização, buscando furar o bloqueio da grande imprensa — e conseguiram.
O movimento pelo impeachment de Fernando Collor, em 1992, contou com o impulso midiático da Rede Globo, diretamente afetada pelas políticas do governo, e se alimentou da energia simbólica da série Anos Rebeldes, que inspirou os jovens Caras‑Pintadas.
As manifestações deste 21 de setembro não alcançaram ainda o volume dessas duas mobilizações históricas anteriores. Mas carregam sinais de algo que pode se desenvolver: têm capilaridade, ressoaram nas capitais e no interior, mobilizaram diferentes gerações e tocaram um ponto nevrálgico da democracia — a responsabilização de quem atenta contra ela.
Potencial de efeito político
A ausência de liderança partidária explícita e de convocação formal tradicional não é necessariamente um sinal de fraqueza. Ao contrário: pode ser uma vantagem estratégica ao associar mobilização popular genuína com visibilidade midiática, pressão institucional e capacidade de se organizar por redes.
Se artistas, movimentos sociais e cidadãos mantiverem uma articulação descentralizada — fortalecendo atos locais, pressionando parlamentares, usando redes para denunciar, convocar e acompanhar — há chance de que essa mobilização se torne um marco como as Diretas ou o Fora Collor em termos de repercussão política.
A urgência de articulação entre os defensores da democracia
A força demonstrada ontem é um ponto de inflexão. Sinaliza que há disposição social para enfrentar riscos autoritários, mesmo sem lideranças tradicionais à frente. Mas também revela os limites da ação fragmentada: sem continuidade, mobilizações desse tipo tendem a perder impacto diante da velocidade dos acontecimentos políticos e do cinismo de certos setores institucionais.
Talvez por isso, cresça a percepção de que é necessário encontrar formas mais consistentes de articulação entre os diversos atores comprometidos com a democracia — ainda que sem modelos prontos. O passado mostra que campanhas nacionais bem estruturadas podem fazer diferença. A história também ensina que o improviso, sozinho, raramente sustenta vitórias duradouras.
Uma base cidadã para a democracia
O que se viu ontem foi uma demonstração de que existe uma base cidadã para a defesa da democracia — não mediada por partidos, mas organizada em torno de valores: justiça e igualdade perante a lei, responsabilização pública dos representantes políticos, impunidade zero. Esse espírito remete tanto à energia dos anos 80 quanto às lutas mais recentes pela democracia, mas precisa transformar‑se em ação contínua para impedir retrocessos.
A PEC da Blindagem e a anistia aos golpistas são uma violência contra o pacto constitucional que nos rege desde 1988. Não basta que manifestantes gritem nas ruas; é necessário que deputados e senadores sintam o peso desse grito. A democracia não se sustenta somente com leis, mas com o vivo consenso de que elas devem valer para todos — inclusive para os poderosos.
*Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Foto da capa: Manifestação contra as PECs da Impunidade e da Anistia aos Golpistas – Foto: José Cruz/Agência Brasil
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