Bolsonaro descartado e Kirk transformado em mártir: o duplo chororô da hipocrisia política

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Jair Bolsonaro e Charlie Kirk - Imagem gerada por IA ChatGPT

Por CASTIGAT RIDENS*

abandono programado (que nem parece abandono)

É um espetáculo tragicômico digno de novela das oito: Bolsonaro condenado, inelegível até 2030. Surge o coro de aliados que “não o abandona”, que exige anistia, que lamenta “injustiça”. Mas percebem o seguinte: advogar anistia sem rever a inelegibilidade é como prometer ressuscitar alguém, mas sem reanimá-lo — a plateia pensa que vai ter volta; mas a parte técnica mostra que não vai.

Todos sabem disso. Especialistas e analistas não param de dizer que a anistia — caso aprovada — dificilmente vai permitir que Bolsonaro concorra, porque a inelegibilidade decorre de decisão do TSE, amparada pela Lei da Ficha Limpa.

Então pra que tanto discurso? Pra manter a base acesa. Pra segurar o fogo do bolsonarismo. Pra que a figura de Bolsonaro continue alvo de lealdades, gatilhos, retórica de perseguição. Pra, quem sabe, manter o golpe como ameaça latente, ainda que disfarçada em “direito de defesa”, “liberdade de expressão”, “vitimização”.

A peça está bem montada. O centrão entra no palco: Tarcísio de Freitas aparece como herói da causa da anistia, prometendo lutar pelo réu, denunciando “tirania”, “sentença injusta”, “desproporcionalidade”. Mas, simultaneamente, se sabe que esse grandioso empreendimento de anistia é tão provável quanto Bolsonaro se eleger em 2030, no cenário atual — ou seja, quase nada.

Aliás, o mais caótico do teatro é que, se a anistia viesse de forma mais ampla, há quem a rejeite de fato, porque ela “roubaria” o espólio político dos herdeiros do discurso bolsonarista — que se beneficiam mais da sombra do pai condenado do que da reeleição dele. Ou seja: mantém-se o mito, cultiva-se a mística, mas a possibilidade prática de reviravolta é tratada quase como lenda urbana.

Assim, a ilusão serve. E os “abandonos” públicos são efeitos de cena, gestos calculados. Bolsonaro vira, de fato, figura descartável para muitos de seus pares — mas não porque deixaram de precisar dele; sim porque ele se tornou mais útil como vítima do que como agente.

Não por acaso, o presidente do PL, Valdemar Costa Neto, acabou deixando escapar — ao lado de Gilberto Kassab, presidente do Democratas — que havia, sim, preparação para um golpe de Estado, ainda que sem sua implementação. A retratação posterior não apagou o estrago: a confissão pública confirmou o que todos já sabiam, mas que muitos fingiam não saber. O “não foi bem isso que eu quis dizer” de Valdemar serviu apenas para reforçar o teatro de conveniências que sustenta o bolsonarismo.


O assassinato de Charlie Kirk — aplausos e espanto tardio

Charlie Kirk, ativista da direita estadunidense, foi assassinado num debate público em Utah. A violência política deixa de ser teoria quando alguém de carne e osso sofre esse horror. Repúdio é obrigatório. Democracia, decência, ética, etc.

Mas — há sempre um “mas” — o repúdio de ocasião funciona como máscara de moralidade seletiva. Trump e empresários brasileiros (e brasileiros que reverberam elogios às “liberdades” americanas) soltam discursos de choque e pesar. Bandeiras a meia-haste, silêncio constrangido, notas oficiais. Tudo muito apropriado para as fotos.

O problema é que muitos desses mesmos agentes do repúdio nunca aplicaram os princípios que tanto exaltam: liberdade de expressão com limites (“ou sem limites”?), responsabilização ética, combate ao autoritarismo — exceto quando o autoritarismo convinha. Quando Bolsonaro falava em golpe de Estado, em dissolver instituições, quando ofendia minorias, quando disseminava discurso de ódio: silêncio. Quando se precisava regulagem de redes sociais para conter desinformação e violência, omissão. Quando se esperava solidariedade real às vítimas de violações sistemáticas de direitos, esquecimento. Quando ética significava algo mais do que tuitar indignação, passou.

Donald Trump, por exemplo, que processa veículos de imprensa que considera caluniadores, que pressiona para controlar narrativas, que elogia regimes autoritários ou os aproxima dos seus pares — é o mesmo que grita “censura!” quando há regulação de redes sociais no Brasil, “liberdade!” quando o devido processo legal parece ameaçado, “garantias democráticas!” quando lhe convém. Um pêndulo moral muito seletivo.

E no Brasil? Empresários que agora ameaçam demitir quem expressou alegria (erradamente, claro) pela morte de Kirk, foram os mesmos que se calaram diante dos 700 mil mortos por falta de vacina ou quando Bolsonaro deixava de comprar oxigênio, ou de agir. Políticos que hoje se sobressaem no “repúdio democrático” foram cúmplices ativos ou omissos de ataques à democracia. Todos eles sabiam, quando dava para saber, das tendências autoritárias, do negacionismo, dos atos antidemocráticos — e nada fizeram que não fosse discurso ou oportunismo parlamentar.


O elo: performatividade, hipocrisia e política de espetáculo

As duas situações se abraçam num mesmo nó: a política cotidiana do fingimento. Aonde o discurso alimenta expectativa, o show de indignação substitui ação, o mito persiste porque convém economicamente, eleitoralmente, simbolicamente.

No caso Bolsonaro / anistia: o mito do perseguido mantém viva a “necessidade” de mobilização, gera lealdades, permite que seus seguidores se vejam como vítimas de uma conspiração, e sustenta espaço para narrativas de instabilidade institucional — úteis para quem aposta no retrocesso autoritário. O abandono real? Talvez exista pedacinhos. Mas o abandono retórico, dramático, estratégico — esse sim está convocado.

No caso Kirk: o martírio usado como pedestal moral por quem ignorou dezenas de outras mortes — muitas delas bem mais silenciosas, menos emblemáticas, menos úteis como bandeira política — revela que a ética política vigente vale pouco se não for aplicada universalmente. A indignação seletiva é irmã gêmea da hipocrisia. Serve como selo de legitimidade de quem quer aparecer bem na foto, não de quem quer comprometer-se com mudança estrutural.


Além do chororô, uma exigência mínima

O que se espera, se queremos democracia de fato, não de cartaz:

  1. Coerência. Não basta repudiar Charlie Kirk — é necessário que se condenem também os mecanismos que permitiram que discursos de ódio, radicalização, impunidade, racismo e mentiras proliferen. Que se regulem redes sociais, sim, que se responsabilize mídia e empresas, que se encampe educação política.
  2. Transparência. No Brasil, que se explique o porquê da insistência na anistia, quais são as condições reais de inelegibilidade, quem vai se beneficiar — de fato — e quem quer conservar o poder simbólico do mito do pai para erguer o filho ou sucessores.
  3. Compromisso ético permanente. Que o repúdio não seja único ante o choque midiático. Que ativismo de ocasião seja substituído por políticas duras, reais, e por punição consistente do discurso autoritário — inclusive quando ele fizer parte da família política ou ideológica de quem protesta agora.

Até lá, tudo isso será pouco mais que teatro de protesto, coreografado para plateia certa.

*Castigat Ridens é um pseudônimo criado a partir da expressão latina “Castigat ridendo mores”, que significa “corrige os costumes rindo” ou “critica a sociedade pelo riso”, muito usada no contexto da comédia como instrumento de crítica social.


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Ilustração da capa: Jair Bolsonaro e Charlie Kirk – Imagem gerada por IA ChatGPT


Tags: política brasileira; Bolsonaro; anistia; inelegibilidade; ética; violência política; Charlie Kirk; hipocrisia democrática; discurso público

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