O direito de escrever

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Por JORGE BARCELLOS*

“Prefiro não ser lida a não fazer o que eu quero”. Wandinha, S02E04

Quando André Fersil publicou aqui em Sler seu texto Críticos e críticas (2.9), eu estava também tentando organizar minhas ideias para comentar a crítica que tomou as redes sociais: a entrevista de Aurora Fornoni Bernardini, professora aposentada da USP e tradutora renomada de italiano, inglês e russo à jornalista Carolina Azevedo, do Jornal Folha de São Paulo (disponível em https://abre.ai/nut7 ). O que viralizou foi sua opinião de que “Itamar, Ernaux, e Ferrante são interessantes, mas não são literatura.”

Nos termos de Fersil, aqui trata-se de especular sobre os significados dos argumentos de Bernardini a partir de meu lugar de completo ignorante de literatura: em relação à ela eu sou um estrangeiro porque sou um historiador, pertenço a um grupo de atores sociais que escrevem, que tem uma identidade na produção de escritos de não ficção. Mas se imigrantes são aqueles que lutam pelo direito de emigrar, do direito ao movimento, como historiador e escritor eu também reivindico o direito de escrever à maneira dos escritores: é o velho problema da estilística da produção histórica. O problema é que, frente aos argumentos de Bernardini, eu sinto que tenho de provar que tenho o direito de escrever. É que não vejo seus argumentos terem efeitos apenas em escritores de ficção; eu vejo repercutirem em escritores de não ficção, como é o meu caso, e como no caso dos migrantes, de quem explora vários territórios, inclusive a literatura, eu sinto que devo pedir uma espécie de visto para escrever.

Colocando “medalhões” na parede

Entendo que seu argumento é pesado e merece uma reflexão: “Escritos que trocam ‘significante’ por ‘significado’ podem até ser interessantes, mas não são literatura.” É sua forma de colocar o dilema forma x conteúdo nas letras, ponto de partida para suas críticas ao panteão da literatura contemporânea, listando obras como Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior que, mesmo sendo para ela um livro apaixonante e original, “não tem estilo particular,” ao contrário de Umberto Eco, de quem traduziu O Nome da Rosa, uma “obra-prima de arquitetura de conteúdo.” Só Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, ficou em segundo lugar na lista de melhores livros brasileiros de literatura do século 21, organizada pela Folha. Sua avaliação não é totalmente negativa; afinal, ela caracteriza o livro como “apaixonante, insólito e original” em seu conteúdo. Mas não hesita em dizer que “o autor não tem estilo particular.” Critica também as Nobel de Literatura Annie Ernaux e Elena Ferrante, cujas obras “O Acontecimento” e “A Amiga Genial”, segundo ela “não passariam de best-sellers.” Mas a coisa ficou ruim para o lado da simpática idosa quando ela apontou um certo exagero de trazer o passado da escravidão, que “não implica merecimentos no presente. É preciso partir da igualdade de condições de conhecimento. Não se pode dar o mérito antes das condições.” E seguiu-se outras afirmações polêmicas nessa linha: “O povo europeu é mais amadurecido, pois passou por guerras e revoluções, então reclama mais. Aqui, o povo é muito passivo.” Bernardini é uma tradutora de quase cem livros muito respeitada, ajudou a traduzir Finnegans Wake, de Joyce, o que não é pouca coisa, a melhor tradução no Jabuti de 2023, mas como defende Fersil, as críticas estão passando dos limites.  Quais limites? Em meu entendimento, estão passando por algo básico: o do direito de escrever e publicar.

Já disse aqui nas páginas de Sler o quanto sou ruim em literatura. Que tenho vergonha disso, que sequer li os livros citados, que sei que aqui há colaboradores muito mais experientes do que eu para fazer considerações as afirmações de Bernardini, mas fazer o quê? Minha trajetória intelectual me levou para o universo da escrita das humanidades, das leituras de história, ciência política, filosofia e ciências sociais, o que por si só já é um trabalho de Hércules. Na minha experiência, só pude correr atrás dos velhos e bons manuais de literatura para ter uma visão geral e de obras como Farmácia Literária (Verus Editora, 2018), de Ella Berthoud e Susan Elderkin (Verus Editora, 2018), Páginas de Sensação (Cia das Letras, 2004), de Alessandra El Far, Delícias do Crime: história social do romance policial (Busca Vida, 1998) de Ernest Mandel, entre outras obras que li mais movido pelo fato de serem propostas abrangentes de interpretação.  Eu sabia em minha formação que um bom historiador deveria também ser um bom devorador de livros de literatura, eu só não fazia isso porque sobrava pouco tempo do que dispunha depois do trabalho para ler, o que era ocupado pela leitura dos pensadores de humanas que me interessavam à época, como Paul Virilio, Michel Mafessoli e Jean Baudrillard. Eu entendia que precisava fazer uma escolha, o contrário da posição de Mandel, para quem a literatura policial era um fenômeno social também. Em minha formação, estudávamos Michel de Certeau, em seu A Escrita da História (Forense Universitária, 1982), para aprender a evolução da disciplina da história, sua escrita e as razões pelas quais aos poucos vai se diferenciando da ficção propriamente dita. Mas, de alguma forma, sempre persistiu entre os historiadores de minha geração uma certa inveja do estilo dos escritores.

O problema do credenciamento

Qual a razão que fez o depoimento de Aurora Bernardini tão perturbador? Eu entendo a crítica da tradutora é algo mais do que uma avaliação dos escritores de ficção, eu vejo uma crítica aos escritores em geral, uma espécie de censura ao ato de escrever: é como se dissesse que nem todos os escritores estão autorizados a isso porque não fazem boa literatura e, portanto, não deviam estar lutando por esse espaço, que nem todos historiadores estão autorizados a escrever livros de história, e assim por diante. Falo dessa forma porque não escrevi nenhuma obra literária, mas meus vinte e seis livros são a reivindicação de um direito: o direito de escrever. Raquel de Queiroz, em sua crônica intitulada O Direito de Escrever (disponível em https://abre.ai/nt4M ) coloca o dilema do escritor entre o reconhecimento do valor e o desejo de fama: “O sujeito escreve de uma determinada maneira. O público gostou, aplaudiu. Nas águas do primeiro êxito o sujeito em questão prepara uma nova obrinha parecida com a primeira. O público torna a aplaudir. Pronto, aí o pobre está perdido. Porque passou a pertencer ao seu êxito, fica escravo daquele sucesso. Pode lhe vir inspiração em qualquer outro sentido. Pode ser ele tentado a seguir caminhos novos – mas é arriscadíssimo deixar-se cair em tentação”.

Nesse sentido ela também cita o problema da parcialidade ou imparcialidade daquele que escreve  “Por que ser imparcial? Todo artista produz para externar suas paixões, seus recalques, seus conflitos íntimos. Como é que pode ser imparcial?” Luís Fernando Veríssimo, recentemente falecido, defendeu a mesma ideia: Victor Necchi, em reportagem ao jornal Extra Classe (disponível em https://abre.ai/nt6N ) lembra o episódio envolvendo o autor quando uma crônica sua foi contestada em Zero Hora. Era o ano de 1994, e LFV, eleitor de Lula, abriu o voto ao PT “As pessoas confundem imparcialidade com justiça. Quem pensa não pode ser imparcial, nem deve. Quem ganha a vida escrevendo o que pensa tem a obrigação de ser parcial, mesmo que sua parcialidade seja pela indefinição. […] O ideal de uma imprensa ‘isenta’, além de ser irrealista e inalcançável, é duvidoso. Posto como compromisso, obriga a imprensa a ser parcial da pior forma, que é a parcialidade disfarçada. O objetivismo pode ser o último refúgio do calhorda, como o falso objetivismo é o túmulo da ética jornalística”. A réplica veio de seu diretor em seguida, Augusto Nunes, em sua Carta ao Leitor.  Veríssimo não se fez de rogado, e publicou outro texto chamado, ironicamente, de Carta ao Editor. “Prezado Augusto: Você admira a objetividade dos jornalistas da CNN diante do bombardeio de Bagdá. Eu acho que quem mantém a objetividade diante de uma cidade bombardeada pode ser um bom jornalista, mas é um péssimo ser humano. As pessoas acham que colunista abrir o voto é abusar do poder da imprensa. Nos Estados Unidos e na Europa, não só os colunistas abrem o voto, mas o próprio jornal diz qual candidato apoia. Então foi isso; foi só uma troca de cartas. Não foi além da publicação desses textos.”

Penso nesse exemplo quando falo em direito a escrever. Ficção ou não ficção, tanto faz. Nos termos de Franco Berardi, autor de Pensar após Gaza (n-1 Edições, 2025), se estamos diante de guerras terríveis que mostram a derrota do ser humano, a tarefa de quem escreve é simplesmente dizer a verdade.  Nos comprometemos com o real por isso, razão pela qual LFV tinha o direito de dizer o que pensava em suas crônicas, mesmo enfrentando oposição interna. Penso que a crítica da tradutora repercute não apenas na literatura, na crônica, mas nas ciências humanas. Entendo que quando se diz o que é ou não boa literatura, de certa forma reduz-se a liberdade de autores escreverem. Se não é boa literatura, não deve ser escrita, não é mesmo? Mas o argumento também não se aplicaria a qualquer livro e disciplina, da história à política?  Não devemos encher o mundo de livros ruins parece ser uma verdade a ser defendida, principalmente pelos ambientalistas, mas o que é um livro ruim? É o livro que não vende? É o livro que não é entendido por todos? Entendo que é um livro que não ecoa nos leitores. Mas assim como cada leitor é diferente um do outro, cada escritor, cada historiador, também. O que pode impressionar um não impressiona outro. Mas o milagre é que pode impressionar e aí já valeu a pena ter escrito. O argumento de Bernardini nos recoloca no mundo descrito por Pierre Bourdieu em seu A distinção (Zouk, 2011): do gosto sabemos que ele é socialmente construído e que serve para reproduzir a desigualdade de classe na sociedade, criando um sistema de preferências e aversões, símbolos de status social e poder. Se o mundo de Bernardini não é o mundo da liberdade em que sonhamos viver e escrever, porque ainda buscamos parâmetros mínimos para fazer o que fazemos? Na escrita, não podemos ser o parâmetro de nada: só nos resta escrever a nossa verdade e deixar que o mundo faça o seu julgamento. Seja ela uma obra de ficção ou não.

Devemos reivindicar o direito a escrever como reivindicamos o direito à vida. Como diz Raquel de Queiroz: “Não abro mão do direito de opinar, e opinar errado, inclusive. O distinto público compra os nossos escritinhos, mas compra só o direito de ler. O resto é nosso. Goste ou jogue fora. Eu faço o que quero. Sou livre, senhor.” O direito a escrever é produto do direito mais amplo à liberdade que temos: da vida à busca da felicidade.  Ele não se confunde com fake news, é claro, exatamente porque ele é baseado na verdade. Se tolhemos a nossa escrita por não considerarmos ela boa, abrimos mão de um direito.

O direito de escrever

Meus livros não são perfeitos mas tem os seus leitores, segundo dados de meu Academia, onde estão para download. Imagino que um ou outro um dia possa ser o nono livro da lista que Giorgio Van Straten elaborou em seu Histórias de livros perdidos (Unesp, 2018). Nesta obra, o diretor do Instituto Italiano de Cultura em Nova Iorque refaz o caminho em busca de oito livros perdidos ou desaparecidos de Byron, Gogól, Hemingway, Walter Benjamin e Sylvia Plath. Fiz muitos livros, mas eu sei que eu vou perder essa corrida ao ouro de que fala Straten: meus livros existem hoje, mas no futuro podem não existir. Eles tiveram poucas impressões, foram disponibilizados no meio do qual não sabemos o futuro, a Internet, onde tiveram centenas de downloads. Mas para onde vai um download? Livros são como os homens, “os livros também desaparecem pouco a pouco da memória daqueles que os leram, evaporam-se dos livros de história da literatura, somem junto com a existência de seus autores. Esses livros podem ser encontrados em algum canto de biblioteca escondido e um editor curioso podem muito bem reimprimi-los”.

Temos o direito de escrever para preencher um vazio, mas nada garante que nossas obras permaneçam.  Quando reúno meus artigos dispersos em um livro, resgato minha produção. Se eu deixo artigos que escrevi pelas plataformas mundo afora, eu abro mão de um direito que eu tenho de escrever um livro. Desde que começamos a escrever virtualmente, nós não nos demos conta de que aprendemos a nos acostumar com a sua destruição lenta no mundo virtual: reformas digitais de jornais têm jogado no espaço inúmeras produções que poderiam transformar-se em livro; sites desaparecem da noite para o dia. Se o autor não dispuser de seus textos em outro suporte, ele está perdido. É como se fosse privado do direito de escrever pelo simples desaparecimento da escrita.

Na maioria das vezes, recusamos o direito de escrever por causa da busca da perfeição, algo impossível de alcançar para a maioria dos mortais. Livros perdidos, não publicados, publicados uma única vez e perdidos no interior de sebos do norte ao sul do país ou em arquivos digitais de um computador ou servidor: mesmo eles são produto direto de nosso direito de escrever. Talvez algum desses livros um dia seja procurado como Straten procurou seus oito livros perdidos. Mesmo que um crítico que desconheço os considere ruins— e nem todos os meus são, contudo—eu tenho o direito de escrever minhas histórias e análises, pois eles também têm sua própria história. Entendo que Bernardini defende que não.

A escrita como forma de expressão

Straten diz que a maioria dos livros do passado foi perdida por causa do fogo: foram queimados. Eu diria que a maioria dos livros atuais será perdida para o futuro por outro motivo: serão deletados. Porque tanto quanto o papel, o digital é frágil demais. Se o papel queima com muita facilidade, é mais fácil ainda apagar um arquivo de um livro na internet: basta deletá-lo e pronto. Talvez um dia vamos descobrir que este suporte tão valorizado hoje, o do e-book, seja tão frágil que voltaremos ao papel e faremos clubes do livro só para imprimir cópias do que um dia foi um arquivo digital.

Em O direito de escrever (Penguin, 2009), um desses manuais de autoajuda para escritores, Júlia Cameron começa justamente reconhecendo a escrita como um direito, como é viver e respirar. Ela diz que isso acontece porque todos nascemos com um dom natural para a linguagem, e que são as crianças as primeiras a demonstra-lo ao enfrentar a escola, que tende a discipliná-las. É ali que nasce a ideia de que a escrita tem uma maneira certa de ser, quando, ao contrário, na sua visão, a escrita é uma experiência de liberdade que precisa apenas ser praticada. Para ela a liberdade de escrever inicia, inclusive, na libertação da gramática e das estruturas rígidas da frase, para se tornarem expressão do que você é.

De certa forma, entendo que a posição de Aurora Bernardini atualiza essa função repressora da escola em relação à criatividade infantil para o mundo dos aspirantes a escritores: ela transfere para o mundo adulto o medo infantil de não estarem escrevendo a coisa certa. Nesse sentido, ao inibir nossa expressão, sua crítica atualiza o lado negativo da escola em relação à criatividade. É claro que Cameron sabe e reconhece que muitas escolas possuem métodos de ensino inovadores, e por isso prefere acreditar que ainda é possível escolas que facilitem as crianças em seu processo criativo de escrever. Por isso, afirma que não existe uma verdadeira obra literária, como não existe um verdadeiro escritor: todos podemos ser escritores, já que podemos fazer obras escritas. Em seus termos, o pensamento de Bernardini o valor de uma obra está mais ligado ao sofrimento no ato de escrever, publicação e validação externa de uma obra e não a um direito de produzir a escrita como lugar de alegria e contentamento. É por isso que incomoda.

Os novos atores se expressam em livros

Exatamente por que o lugar da escrita é democrático é que mais e mais pessoas puderam deixar registrado sua experiência em livros. Do gari, passando pelo motorista de taxi ao trabalhador manual e crianças, todos vêm reivindicando seu direito à expressão escrita. Isso produz um enorme efeito: a democratização do acesso a produção de publicações, já que, seja no mundo virtual através de blogs ou no real através de livros publicados mesmo em pequenas tiragens, mais cidadãos exercem seu direito de escrever livros. A escrita não é algo reservado aos grandes escritores, e nem a publicação, algo apenas para grandes obras. Eu mesmo me autopublico, o que é satisfatório para mim e o mundo ao meu redor. Não temo o julgamento dos outros, só me concentro no ato de escrever, traduzindo minha experiência de vida em palavras.

Em Inimigos da Esperança: Publicar, Perecer e o Eclipse da Erudição (Unesp, 2006), Lindsay Waters, editora da Harvard Press, aponta que um problema similar ocorre com a produção de ciências humanas. Ela faz a pergunta “O que valem os livros?” Ela apela para que os livros voltem a ser feitos como antigamente “antes que o mercado se torne nossa prisão e o valor do livro seja depreciado” (p. 10). Como editora, ela critica a regra do sistema que diz que obras devem ser de sucesso imediato para garantir que as editoras lucrem mais. “Está provado que os livros são um negócio ruim”, (p.11), ela diz que o pior é o paradigma da produtividade que sufocou a principal pergunta: “porque alguém iria querer falar, escrever ou publicar?” (p. 13). Esse modelo produtivista gerou uma distorção na qual os autores são valorizados pelo número de publicações e não pela qualidade delas. “Protesto em nome dos bons livros que se perdem na enxurrada dos livros ruins.” Mas é em seguida que vem o argumento que valorizo: “E não estou dizendo que as coisas medianas não devam ser publicadas. Os estudiosos precisam escrever. E, de fato, ainda é preciso que saiam muitas coisas mais do que só o que é excelente, porque o que é “excelente”, com frequência, apenas atende à definição atual do que é quente” (p. 25).

Nesse sentido, no seu pensamento, é bem possível que um professor universitário lute por publicações que nunca serão lidas, enquanto um escritor de periferia tenha mais leitores na comunidade em que escreve. Com isso, ela quer salientar que a recepção do trabalho também importa, o que significa, criticar a posição de Bernardini, afinal, “há alguma contribuição para a erudição se ninguém a lê?” (idem). Nesse sentido, a crítica acadêmica feita por Bernardini, na definição de Waters, não passa da versão literária da corrida armamentista, onde a exigência que a tradutora faz para autores lidos, se eles atendem ou não ao que considera boas obras ou o cânone clássico, despreza o trabalho dos demais autores. “A fama passageira não é de forma alguma um indicador,” finaliza Waters (p. 26).

Direito à escrita não significa direito a ser famoso

Quando escrevo, sei que não sou um escritor famoso. Eu sei que tenho o direito de escrever e não hesito. Talvez leve décadas após minha morte para que alguém leia algum estudo que fiz, mas quando isso acontecer, o leitor enxergará pelos meus olhos o mundo que vivi, e isso fará alguma diferença. Só o tempo dá sentido. Para mim foi a exata sensação que tive ao encontrar o livro de Walter Mauro e Elena Clementelli, Los escritores frente al poder (Luis de Carat Editor, 1976). Um livro antigo, provavelmente com poucas edições, mas que me apresentou a vinte e um escritores que passaram pela experiência da prisão, colocando suas histórias e obras a relação ao poder, seja religioso, político ou econômico. Obras assim como as de tantos escritores menores estão condenadas a desaparecer. Mas elas ainda assim fazem parte de alguma biblioteca, seja  “dos escritores de comunidade”, “dos trabalhadores da precarização”, ou “dos aposentados em geral” que justifica sua existência. Por isso eu posso estar errado, mas entendo que a crítica de Aurora Bernardini é desrespeitosa. Para mim ela colabora no desmantelamento da prática de escrever. Ela quer que os autores assumam uma responsabilidade por seus escritos que não cabe a eles assumir, a de serem uma obra clássica desde o momento de seu nascimento. Ela não respeita o direito de cada escritor de fazer a obra que bem entender: ela oferece um limitador, um divisor de águas que separa as boas das más obras. Nos termos de RichardSennett, em Respeito: a formação do caráter em um mundo desigual (Record, 2004), ela quer que os autores sejam como os virtuoses da música à procura de um dueto perfeito. Os talentos de escrita, como os da música, são desiguais, mas as habilidades de um e outro permanecem.

Um sistema que enquadra perdedores

A avaliação de Bernardini é como os concursos de música de que fala Sennet: apontam para a desigualdade de talento como forma de inibir sua expressão e desafiam a autoconfiança dos autores porque colocam uma régua de qualidade que não podem atingir. “Cada pessoa é talentosa à sua maneira,” diz Sennet, o que vale para musicistas e escritores. Se aceitarmos a avaliação de Bernardini de que Torto Arado é um fracasso como obra literária, estaremos aceitando um sistema de avaliações que institucionaliza vencedores e perdedores na escrita. Não creio que esta seja a forma correta de avaliar atividades desta natureza. Não é possível enquadrar o talento e obras que estão no mundo para serem apropriadas. Hans Jellouschek, em Espelho, nosso espelho: encontros e desencontros refletidos em contos de fadas e mitos (Verus, 2013), faz exatamente isso: ele vai aos contos de fadas para usá-los como chaves para interpretar os conflitos dos casais. O mesmo faz Denis Caniaux em Villes de papier (Editions Confluences, 2004):   o autor vai a literatura para falar das cidades desejadas, sonhadas, pesquisadas, exploradas por romancistas e poetas ao longo do tempo, constituindo uma espécie de poética urbana que faz falta hoje na cidade administrada pelo capital.

Talvez estejamos confundindo o direito de escrever com o desejo de ser famoso. Na escrita, como em qualquer outra atividade, algumas pessoas se tornam famosas, enquanto outras, igualmente talentosas, continuam no anonimato.  O direito de escrever envolve um ato de expressão; o sucesso no escrever é a obtenção de bons resultados junto ao público; o primeiro é um direito, o segundo é uma qualidade conquistada com esse direito. Você é livre para escrever e transmitir suas ideias e pensamentos através da escrita, pois é livre para expressar-se de diferentes formas e para estruturar seus textos. O sucesso em escrever é efeito de uma conquista de público que, regra geral, exige textos de fácil compreensão, bem estruturados e que vão direto ao ponto.

A serendipidade

Há um outro fator indicado por Cass Sustein em seu Como ser famoso (Vestígio, 2025). Ele afirma que existem pelo mundo inteiro pessoas de talento extraordinário que nunca tiveram a chance de ser um sucesso, “foram esquecidas e se perderam no tempo”. Ter sucesso como escritor é como ser atingido por um raio: depende da conjunção de inúmeros fatores, que o autor chama de serendipidade, expressão para “o acaso feliz de fazer descobertas valiosas sem tê-las buscado diretamente. A serendipidade combina sorte e percepção: trata-se de encontrar o que não se procurava, e saber reconhecer seu valor. É, novamente, a questão do cânone evocado por Bernardini: o que faz com que uma obra de literatura tenha sucesso ou não? “Muito do que foi perdido é realmente muito bom. Diversas vezes, redescobrimos o que foi perdido e ficamos maravilhados. Algumas pessoas pegam uma onda enorme, e para outras, não há onda para pegar. Muitas pessoas produzem algo extraordinário, mas nunca têm uma chance.” E finaliza: “as histórias da recepção literária (…) mostram que a sobrevivência a longo prazo dependeu mais de circunstâncias externas e vantagens acidentais do que do valor literário intrínseco” (p. 124).

Minha conclusão é que, no debate iniciado por Bernardini, ser um escritor melhor ou pior depende mais da análise do público do que das condições da obra ou crítica literária. O que sua crítica faz é apenas retomar a desigualdade em um novo patamar: a da escrita. Se todos temos o direito de escrever, e o fazemos, por que apenas alguns encontram condições favoráveis para conquistar o sucesso e outros enfrentam desvantagens? No meu caso eu consigo enxergar claramente: da falta de condições econômicas, passando pela ausência de um mentor, a falta de inserção em um sistema de divulgação e publicação de caráter nacional: existe uma loteria da escrita para o sucesso que não é para todos, ainda que a escrita seja democrática. “Se inovadores foram perdidos, isso não se deveu apenas a características demográficas, mas a uma série de outros fatores que não trabalharam a seu favor. Talvez pudéssemos dar outra chance a muitas pessoas, exatamente pelo mesmo motivo.” Sou grato a Luiz Fernando Moraes e Benedito Tadeu Cesar pelo espaço em Sler e RED exatamente por isso.


Leia também Escola não se Gerencia como Empresa.

Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: IA

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