Por FLÁVIO AGUIAR*
Diz a vox populi marxista de fundo hegeliano (perdão, Marx, perdão Hegel) que a história acontece primeiro como tragédia e depois se repete como farsa. Pois bem, o julgamento de Bolsonaro e de seus cúmplices golpistas não é uma farsa. Pelo contrário, vem sendo chamado, com justiça, de o julgamento do século. Eu até diria: “dos séculos”, sæcula sæculorum, tamanho é seu ineditismo na história brasileira. Mas é evidente que a quadrilha de réus é composta por farsantes, e daqueles da pior espécie. Ser farsante no teatro é uma graça bem-vinda: Aristófanes, Plauto, Gil Vicente, Molière, Martins Pena, Qorpo-Santo, Artur Azevedo, Nelson Rodrigues e Ariano Suassuna que nos digam. Mas a banda ou o bando de réus hodiernos são atores medíocres, cuja farsa não convence ninguém, nem eles mesmos. Atinge até seus defensores profissionais: só pode se ler como farsa a comparação cometida pelo advogado de defesa ao comparar o farsante ex- presidente ao trágico capitão Alfred Dreyfus, quando, na verdade, ele estaria mais próximo de uma versão muito empobrecida do Doente Imaginário de Molière.
A tentativa de golpe pela qual são julgados não passou de uma farsa, nem por isto menos perigosa nem menos golpista.
Dizem alguns deles que tudo não passou de algumas anotações pessoais, como se fossem pupilos de algum educandário fazendo exercícios hipotéticos. Dizem outros, que defendem os golpistas, que o golpe era inimaginável, pois carecia de tropas e de blindados nas ruas. Há algo de verdade nisto. Mas nem por isto seus atos e anotações deixam de ser passíveis de julgamento e condenação. Afinal, eles não eram pupilos num educandário; eram o Presidente da República e seu séquito, aboletados no Palácio do Planalto como se seus proprietários fossem. A ponto de a primeira dama assassinar carpas para coletar moedas no espelho d’água palaciano.
O tom ao mesmo tempo patético e farsesco, lamurioso e arrogante das defesas dos golpistas fracassados não impede que este julgamento revele sua dimensão épica e histórica. Afinal, não são apenas os quadrilheiros de ontem e hoje que estão no banco dos réus. Com eles, simbolicamente, entram em julgamento os golpistas do golpismo brasileiro de 1945 para cá. Digo de 45 porque foi nesta data que os generais que apoiavam o Getúlio do Estado Novo o depuseram não por seu autoritarismo, mas porque começava a fazer a “perigosa” inflexão popular do queremismo, adernando à esquerda.
Estão em julgamento os coronéis e demais golpistas de 1954, os que tentaram impedir a posse de Juscelino em 55 e a de Jango em 61; os golpistas de Jacareacanga e Aragarças; e sobretudo os de 64, reincidentes em 68 com o Ato 5, que ensanguentaram este país até 1985 e que tanto são louvados pelos fracassados de 2022 e 2023. Os golpistas de 64, civis e militares, deveriam ter sido julgados em 85, quando da redemocratização do país.
Escaparam dos tribunais então; por tabela, não estão escapando do julgamento da história de hoje.
De certo modo é pena que todo este cortejo de traidores da pátria e da democracia sejam representados por estes patéticos patetas de hoje, embora não menos perigosos que os de antanho. Acompanhados pelas trumpices de Trump e seus embaixadores no Brasil, norte-americanos e brasileiros, pelos gestos politicamente obscenos e cada vez mais histéricos de seu embaixador filial junto à Casa Branca, pelos comentaristas midiáticos que insistem que não houve tentativa de golpe porque a tropa e os tanques não saíram às ruas, embora chamados pelos arquitetos do Palácio do Planalto e pelas manifestações diante dos quartéis, eles são a imagem melancólica e algo esfarrapada do que resta daquele golpismo histórico brasileiro embora, repito, não sejam menos perigosos.
Além de condenados pelo planejamento de um golpe de estado, eles merecem ter outra condenação: a de serem, em termos de farsa, os piores atores da cena política brasileira, torpes e mal ensaiados.
Afinal, quem definiu melhor o caráter destes personagens foi a chanceler conservadora da Alemanha, a estadista Angela Merkel, dizendo a Bolsonaro, quando este, caminhando de costas, pisou-lhe o pé:
– É, só podia ser você.
Pano rápido, como diria o Millôr, outro mestre da boa farsa.
*Flávio Aguiar é jornalista, analista político e escritor, é professor aposentado de literatura brasileira na USP. Autor, entre outros livros, de Crônicas do mundo ao revés (Boitempo).
Foto de capa: Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil




