Por MARIA LUIZA FALCÃO SILVA*
Um país em duas faces
O Brasil de 2025 apresenta uma contradição fascinante: por um lado, surpreende o mundo com inflação em baixa, crescimento superior à média global e exportações em alta; por outro, vive uma turbulência política inédita, marcada pelo julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e de generais por tentativa de golpe de Estado. É como se duas narrativas convivessem: a da bonança econômica e a do turbilhão democrático.
A força dos números
Enquanto os Estados Unidos mergulham em guerras tarifárias e a Europa patina no baixo crescimento, o Brasil aparece como exceção positiva. A inflação está sob controle, o PIB cresce acima da média mundial e as exportações seguem robustas — não apenas de commodities agrícolas e minerais, mas também de produtos industriais como aeronaves da Embraer.
Esses resultados dão lastro para que Lula se apresente no cenário internacional como líder capaz de combinar estabilidade macroeconômica e compromisso climático. No palco global, seja no G20 de Johanesburgo que se aproxima, seja na preparação da COP30 em Belém, ambos em novembro, o Brasil reaparece como ator central.
O freio interno
Mas essa narrativa encontra resistências. A taxa SELIC ainda é das mais altas do mundo, travando crédito e investimentos. E, mais grave, Lula governa diante de um Parlamento dominado por forças conservadoras e oposicionistas, que não apenas impõem custos astronômicos em emendas, mas também conspiram abertamente contra a democracia.
Essa maioria de oposição ensaia uma estratégia de “retomada” do poder pela direita, não pelo voto, mas pela erosão institucional. A prova mais clara é o projeto de anistia a golpistas, discutido em pleno momento em que o Supremo Tribunal Federal julga Bolsonaro por tentativa de golpe.
A democracia em xeque
Trata-se de uma aberração institucional: enquanto a Justiça busca afirmar o princípio de que golpe é crime e não se perdoa, setores do Congresso tentam resgatar a lógica da impunidade que historicamente protegeu conspiradores.
Nesse contexto, Lula já sinalizou que vetaria qualquer projeto que ataque a democracia brasileira. É um gesto de defesa institucional, mas que pode aprofundar o confronto com a maioria parlamentar.
Esse julgamento não ocorre no silêncio de Brasília — repercute mundo afora. Como observou a Al Jazeera, trata-se de uma “tentativa golpista após a derrota de 2022”. Já The Guardian definiu o processo como histórico: o ex-presidente responde por planejar um golpe militar violento. A revista The Week reforça: “Esse julgamento histórico marca um momento decisivo na história política da nação — evidencia a luta do Brasil para sustentar normas democráticas após um passado de autoritarismo.”
As investigações revelaram um aspecto sombrio: o golpe em curso não se limitava à derrubada das instituições. Havia planos para assassinar o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o vice-presidente Geraldo Alckmin e o presidente do Supremo Tribunal Federal. Trata-se de um ponto de ruptura sem precedentes, que expõe o grau de violência e desespero da extrema direita ao tentar impor seu projeto de poder.
A cena se torna mais grave porque Bolsonaro não está só: conta com apoio explícito do ex-presidente norte-americano Donald Trump, que o defende como aliado político e ideológico.
A intersecção entre extrema direita nacional e internacional transforma o julgamento em evento de repercussão global.
O paradoxo brasileiro
Aqui está o paradoxo: um país que cresce acima da média, exporta mais e conquista aplausos internacionais, mas que precisa atravessar o risco de convulsão política ao colocar no banco dos réus um ex-presidente autoritário. A bonança econômica pode ser real, mas o turbilhão político tem potencial de corroer seus efeitos.
Como resumiu o cientista político Steven Levitsky, “ao responsabilizar um líder autoritário, o Brasil demonstra uma maturidade democrática que, em certos aspectos, supera a dos Estados Unidos”. A agência AP News também destacou que o processo simboliza um rompimento com a impunidade que durante décadas acobertou golpes e militares no país.
Se o julgamento consolidar o Estado de Direito e derrotar as manobras de anistia, Lula sairá fortalecido, com mais credibilidade para falar de democracia e multilateralismo no cenário internacional. Mas se a instabilidade predominar, o Brasil pode perder a janela histórica aberta pela combinação de bons indicadores e liderança climática.
A força que falta
Um elemento decisivo para o desfecho desse processo é a participação popular. Sem mobilização social, Lula fica preso entre um STF pressionado e um Congresso hostil. É a sociedade civil, nas ruas e nos movimentos, que pode transformar o julgamento em marco histórico e não em farsa política.
A imprensa tradicional, por sua vez, rejeita Bolsonaro e seus filhos, mas abre os braçospara Tarcísio de Freitas, um governador que se coloca como herdeiro “aceitável” da extrema-direita, alinhado a Trump e a Netanyahu. Essa operação midiática busca trocar a truculência caricata do bolsonarismo por uma versão mais palatável, mas igualmente perigosa para a democracia.
O Brasil vive um momento raro: a chance de alinhar crescimento econômico, relevância internacional e fortalecimento democrático. Mas a travessia não é simples. A história está em curso no Supremo Tribunal Federal, no Congresso e, sobretudo, na mobilização do povo brasileiro. Como resumiu The Economist, o Brasil “oferece um exemplo de instituições comprometidas em sustentar o Estado de Direito” mesmo sob ataque.
Sem participação popular, a democracia fica vulnerável ao jogo das elites e aos acenos da mídia. Com ela, o país pode sair deste turbilhão mais forte do que entrou e se afirmar no mundo como exemplo de desenvolvimento com justiça e democracia.
*Maria Luiza Falcão Silva é PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED). Entre outros, é autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England/USA.
Foto de capa: IA




