Por EDSON LUÍS KOSSMANN*
A democracia é, por natureza, um projeto inacabado e frágil. Sustenta-se não pela perfeição, mas pela necessária coragem de se autocorrigir e pela força institucional de se defender. O atual julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que apura a tentativa golpe de estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito por parte do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados é muito mais do que um processo penal; é a materialização de um dos pilares fundamentais do pacto social brasileiro: a resistência institucional contra o arbítrio.
Nosso ponto de partida, como sempre lembrado, é a Constituição de 1988. Ela não é uma mera carta de intenções, mas a expressão máxima de um país que, após anos de autoritarismo, escolheu se reerguer sob a égide do Estado Democrático de Direito. O artigo primeiro é claro, e o §4º do artigo 60 é ainda mais enfático: a forma democrática é cláusula pétrea. Intocável. Inegociável. Qualquer ação que vise a sua subversão – seja através de violência, de disseminação de notícias falsas que minem a credibilidade das urnas, ou de conspirações para interromper o regular exercício do poder – é uma agressão direta ao núcleo duro da República.
Nesse contexto, a função do STF assume seu papel histórico de guardião da democracia. As “grades protetoras” da democracia não são feitas de ferro como aquelas utilizadas como armas no fatídico 08 de janeiro de 2023, mas de leis, de instituições, de ritos processuais estabelecidos e, acima de tudo, das necessárias consequência jurídicas. Um crime contra a democracia que fica impune é o equivalente a arrancar essas grades, deixando o edifício constitucional vulnerável a novos e futuros assaltos golpistas. O julgamento em curso é, portanto, o ato de reestabelecer essas grades, demonstrando que o sistema possui anticorpos capazes de combater o vírus do autoritarismo.
Alguns podem argumentar sobre o caráter político do julgamento. De fato, ele é político, no sentido mais nobre do termo: diz respeito à polis, à coisa pública. Não se trata de perseguição, mas de precedência. A mensagem que se emite é cristalina: no Brasil, tentativas de golpe de Estado não são uma estratégia política legítima contra o resultado das urnas, mas sim um crime de extrema gravidade, com consequências penais. A democracia, como poder do povo, não pode ser defendida apenas no voto; ela precisa ser defendida diariamente nas instituições, para que o voto continue a ter valor.
Por fim, este processo serve como um espelho para a nação e o mundo. Reflete um país que, embora profundamente dividido entre os defensores da democracia e os seus predadores, ainda é capaz de acionar seus mecanismos de defesa institucional. Esse julgamento ficará para a história não como uma vitória de um grupo sobre o outro, mas como um testemunho sobre a solidez das nossas instituições. Será a resposta a uma pergunta crucial: afinal, nossas “grades protetoras” são fortes o suficiente para proteger a nossa democracia de arroubos golpistas?
A democracia exige mais do que adesão em tempos de paz; exige coragem para defendê-la em tempos de crise. O STF, ao cumprir com o seu dever constitucional, reafirma que a sua função não está sujeita a pressões e ameaças internas ou externas; nem mesmo, aos ruídos de multidões barulhentas que se curvam ao alienante canto das sereias do golpismo.
*Edson Luís Kossmann é advogado, doutor e pós-doc em direito público, autor de vários livros e artigos publicados em revistas especializadas e periódicos nacionais e internacionais.
Foto de capa: Pedro Ladeira/Folhapress




