Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
Quando se trata da política brasileira, o realismo mágico de García Márquez parece, às vezes, um tratado de sociologia. Estamos na iminência da condenação de Jair Bolsonaro por sua tentativa de golpe de Estado, e, não por acaso, um grupo de valorosos defensores da moral, da família e do livre mercado articula, entre orações e planilhas, uma anistia generosa. Não é para os oprimidos, claro — mas para si mesmos.
O governador Tarcísio de Freitas, aquele mesmo que até ontem fazia questão de parecer um técnico impoluto, virou protagonista do espetáculo. Com sua nova vocação de articulador político, tenta costurar nos bastidores uma saída elegante para o ex-chefe. Quer, dizem, a bênção de Bolsonaro. E o ex-presidente, num gesto de notável grandeza, estaria disposto a concedê-la — desde que, em troca, receba a graça salvadora que o livre da incômoda prisão.
Trata-se de um escambo cívico, elevado e patriótico: Bolsonaro entrega a bênção à candidatura de Tarcísio à Presidência da República e, em troca, seus aliados tentam criar caminhos de impunidade para o ex-presidente. Uma troca simbólica de alta voltagem: você me dá meu nome nas urnas, eu te dou sua liberdade nos autos.
Essa articulação política se divide em dois movimentos distintos, mas igualmente escandalosos. De um lado, Tarcísio de Freitas assumiu para si o papel de fiador de Bolsonaro no futuro, declarando que, se eleito presidente, seu primeiro ato seria conceder-lhe indulto. O gesto soa como jura de lealdade, mas é juridicamente impossível: a Lei nº 14.353/2022, sancionada pelo próprio Bolsonaro, não proíbe o indulto em geral, mas veda explicitamente o benefício para condenados por crimes graves, entre eles golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, exatamente os que pesam sobre ele.
De outro lado, Arthur Lira, ex-presidente da Câmara e mestre do pragmatismo do Centrão, foi quem costurou o acordo da anistia: em troca da liberação da Mesa Diretora da Câmara tomada ilegalmente pelos aliados bolsonaristas, o Congresso se comprometeria a tentar apagar judicialmente os crimes do 8 de Janeiro. Uma barganha política que, se aprovada, seria imediatamente derrubada pelo STF, por flagrante inconstitucionalidade.
Ambos os arranjos — o indulto sonhado por Tarcísio e a anistia articulada por Lira — são imorais, inviáveis e, no fundo, peças de teatro para salvar a própria pele dos envolvidos.
Mais irônico ainda é ver Bolsonaro sendo descartado por seus próprios pares. O “mito”, antes idolatrado como salvador da pátria, agora é visto como uma relíquia incômoda. A bênção que se busca é sua última utilidade. Depois disso, cada um seguirá seu rumo — de preferência, longe da barra dos tribunais. O bolsonarismo se reinventa, mas seu núcleo duro permanece fiel a um princípio inabalável: salvar a própria pele.
Nesse cenário tragicômico, a advertência do ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello, surge como um lembrete necessário de que ainda existe Constituição. Ao comentar o projeto de anistia em tramitação na Câmara, o decano afirmou que a proposta incorre em flagrante inconstitucionalidade, pois “visa beneficiar quem atentou contra o Estado Democrático de Direito” e, além disso, busca transformar o Congresso em um “anômalo órgão revisional (ou instância de superposição) em face das decisões do Supremo Tribunal Federal”, violando assim o princípio da separação de poderes. Sua análise, precisa e serena, expõe o vício de origem da manobra e o risco de erosão institucional que ela representa.
Resta saber se o Supremo Tribunal Federal participará desse teatro. Até aqui, tem agido com firmeza. Se por acaso aceitar essa anistia — um perdão antecipado a crimes contra a democracia — a Corte deixará de ser guardiã da Constituição para se tornar parte do conchavo. Algo que, até onde se pode perceber, não está nos planos do Judiciário.
Afinal, há limites para tudo. Até mesmo para a ironia da história.
Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Ilustração da capa: Jair Bolsonaro, Tarcísio de Freitas e Arthr Lira costuram anistia sob medida – Imagem gerada por IA ChatGPT
Tags:
Tarcísio de Freitas; Bolsonaro; anistia; STF; Arthur Lira; Centrão; golpe de Estado; Celso de Mello; separação de poderes; política brasileira; ironia política.




